segunda-feira, 24 de março de 2014

Impermanência (2)

A prática e entendimento da impermanência não é apenas outra descrição de realidade. É uma ferramenta que nos ajuda em nossa transformação, cura e emancipação. Impermanência significa que tudo muda e que nada permanece o mesmo em dois momentos sucessivos. E embora as coisas mudem a todo momento, elas ainda não podem ser descritas com precisão como as mesmas ou como diferente do que eles eram a um momento atrás.

Quando hoje nós tomamos banho em um rio que nos banhamos ontem, é o mesmo rio? Heráclito disse que nós não podemos entrar duas vezes no mesmo rio. Ele tinha razão. A água no rio hoje é completamente diferente da água que nós tomamos banho ontem. Ainda é o mesmo rio. Quando Confúcio estava na margem de um rio assistindo seu fluxo, ele disse: "Oh, flui assim dia e noite, sem fim".

O insight da impermanência nos ajuda a ir além de todos os conceitos. Nos ajuda a ir além de mesmo e diferente, vindo e indo. Nos ajuda a ver que o rio não é o mesmo rio mas também não é diferente. Nos mostra que a chama que acendemos na vela antes de dormir não é a mesma chama queimando na manhã seguinte. A chama não é duas chamas diferentes, mas também não é a mesma chama.

Nós estamos freqüentemente tristes e sofremos muito quando as coisas mudam, mas a mudança e a impermanência têm um lado positivo. Graças à impermanência, tudo é possível. A própria vida é possível. Se um grão de milho não for impermanente, nunca pode ser transformado em um talo de milho. Se o talo não fosse impermanente, nunca poderia nos proporcionar a espiga de milho que nós comemos. Se sua filha não for impermanente, ela não pode crescer se tornando uma mulher. Então seus netos nunca vão se manifestar. Portanto em vez de se queixar da impermanência, nós deveríamos dizer, "Acolhida calorosa e vida longa a impermanência." Nós deveríamos estar contentes. Quando nós pudermos ver o milagre da impermanência, nossa tristeza e sofrimento passarão.

A impermanência também deveria ser entendida a luz do inter-ser. Porque todas as coisas inter-são, elas constantemente estão influenciando umas as outras. É dito que as asas de uma borboleta que agitam em um lado do planeta podem afetar o tempo no outro lado. As coisas não podem ficar do mesmo modo porque elas são influenciadas por tudo mais.

Todos nós podemos entender a impermanência com nosso intelecto, mas isto não é, contudo a verdadeira compreensão. Apenas nosso intelecto não nos conduzirá a liberdade. Não nos conduzirá ao esclarecimento. Quando somos sólidos e concentramos, nós podemos praticar o olhar em profundidade. E quando nós olhamos profundamente e vemos a natureza da impermanência, nós podemos ficar concentrados neste insight profundo. Isto é como o insight da impermanência se torna parte de nosso ser. Se torna nossa experiência diária. Nós temos que manter o insight da impermanência para poder ver e viver a impermanência todo o tempo. Se nós pudermos usar impermanência como um objeto de nossa meditação, nós nutriremos a compreensão da impermanência de tal modo que ela viverá diariamente em nós. Com esta prática, a impermanência se torna uma chave que abre a porta de realidade.

Nós também não podemos descobrir o insight da impermanência por só um momento e depois encobri-lo e ver tudo novamente como permanente. A maior parte do tempo nós nos comportamos como se nossos filhos sempre fossem estar em casa conosco. Nós nunca pensamos que em três ou quatro anos eles nos deixarão para se casar e ter as próprias famílias. Assim nós não valorizamos os momentos que nossos filhos estão conosco.

Eu conheço muitos pais cujos filhos aos dezoito ou dezenove anos deixam a casa e vão morar sozinhos. Os pais perdem os seus filhos e se sentem muito arrependidos. Os pais não valorizaram os momentos que eles tiveram com os seus filhos. O mesmo é verdade para maridos e esposas. Você pensa que seu cônjuge estará lá por toda sua vida, mas como você pode estar tão seguro? Nós realmente não temos nenhuma idéia de onde nossos parceiros estarão em vinte ou trinta anos ou mesmo amanhã. É muito importante se lembrar da prática da impermanência diariamente.

Quando alguém diz algo que te dá raiva e você deseja que ele fosse embora, por favor olhe profundamente com os olhos da impermanência. Se ele ou ela tivesse ido, o que você sentiria realmente? Você estaria contente ou se lamentaria? Praticando este insight pode ser muito útil. Há um gatha, ou poema que nós podemos usar para nos ajudar:

Com raiva na última dimensão
Eu fecho meus olhos e olho profundamente. 
Trezentos anos no futuro
Onde você estará e onde eu estarei? 

Quando nós estamos bravos, o que fazemos normalmente? Nós gritamos, e tentamos culpar a outra pessoa por nossos problemas. Mas olhando para raiva com os olhos da impermanência, nós podemos parar e podemos respirar. Com raiva do outro na dimensão última, nós fechamos nossos olhos e olhamos profundamente. Nós tentamos ver trezentos anos no futuro. Como estará você? Como estarei eu? Onde você estará? Onde eu estarei? Nós só precisamos inspirar e expirar, olhar para nosso futuro e o da outra pessoa. Nós não precisamos olhar para trezentos anos a frente. Poderia ser agora, cinqüenta ou sessenta anos no futuro quando nós estaremos falecidos.

Olhando para o futuro, nós vemos que a outra pessoa é muito preciosa para nós. Quando nós sabemos que nós podemos a perder a qualquer momento, nós não ficamos mais bravos. Nós queremos abraçar o outro e dizer: "Como é maravilhoso você ainda estar vivo. Eu estou tão contente. Como eu poderia estar bravo com você? Nós dois vamos morrer em algum dia, e enquanto nós ainda estamos vivos e juntos é bobagem ficar bravo um com o outro.”

A razão pela qual nós somos tolos o bastante para nos fazer sofrer e fazermos a outra pessoa sofrer é que nós esquecemos que nós e a outra pessoa somos impermanentes. Em algum dia quando nós morrermos, perderemos todas nossas posses, nosso poder, nossa família, tudo. Nossa liberdade, paz e alegria no momento presente são as coisas mais importantes que nós temos. Mas sem um entendimento desperto da impermanência, não é possível estar contente.

Algumas pessoas nem mesmo querem olhar para uma outra pessoa quando a pessoa está viva, mas quando a pessoa morre, eles escrevem obituários eloqüentes e fazem oferecimentos de flores. Naquele momento a pessoa morreu e não pode mais desfrutar da fragrância das flores. Se nós realmente entendemos e nos lembramos que aquela vida era impermanente, nós faríamos tudo o que podíamos para fazer a outra pessoa feliz aqui mesmo e agora mesmo. Se nós passamos vinte e quatro horas com raiva de nosso amado, é porque nós somos ignorantes sobre a impermanência.

"Com raiva na dimensão última/ Eu fecho meus olhos." Eu fecho meus olhos para praticar visualização do meu amado cem ou trezentos anos no futuro. Quando você se visualiza e ao seu amado trezentos anos no futuro, se sente muito feliz de vocês estarem vivos hoje. Você abre seus olhos e toda sua raiva se foi. Você abre seus braços para abraçar a outra pessoa e você pratica: "Inspirando você está vivo, expirando eu estou tão contente." Quando você fechar seus olhos para visualizar a outra pessoa trezentos anos no futuro, você está praticando a meditação na impermanência. Na dimensão última, não existe raiva.

Ódio também é impermanente. Embora nós possamos ser consumidos pelo ódio neste momento, se nós soubermos que o ódio é impermanente, nós podemos fazer algo para mudar essa situação. Da mesma forma que com a raiva, nós fechamos nossos olhos e pensamos, onde nós estaremos em trezentos anos? Com a compreensão do ódio na dimensão última, ele pode evaporar em um momento.

Porque somos ignorantes e nos esquecemos de impermanência, nós não nutrimos nosso amor corretamente. Quando nos casamos, nosso amor era grande. Nós pensávamos que se nós não tivéssemos um ao outro não poderíamos viver nem mais um dia. Porque não soubemos praticar a impermanência, depois de um ou dois anos nosso amor se tornou frustração e raiva. Agora desejamos saber como poderemos sobreviver mais um dia tendo que conviver com a pessoa que amamos tanto no passado. Nós decidimos que não há nenhuma alternativa: queremos o divórcio. Se nós vivermos com a compreensão da impermanência, cultivaremos e nutriremos nosso amor. Só assim ele durará. Você tem que nutrir e cuidar seu amor para ele crescer.

(Do livro “No death, no fear” – Thich Nhat Hanh)

Não ser Enganado Pelas Palavras e Idéias

Mestre Linji avisava a seus amigos no caminho para que aqueles que sinceramente estavam tentando viver o Dharma não fossem enganados pelos demônios, as pessoas carecas vestindo robes de monges, vivendo nos templos e prostrando em frente do Buda, enquanto ainda desejavam riqueza e ganho pessoal.
As palavras do século nono são um pouco diferentes daquelas do século vinte e um, mas têm o mesmo significado. Dizemos: “Seja você mesmo. Não tente ser ninguém mais. Ser uma pessoa comum já é maravilhoso.”
Prática não é trabalho duro. Quando trabalhamos duro em alguma coisa, sejam negócios ou iluminação, então não podemos parar de forma a ver todas as maravilhas da vida dentro de nós e à nossa volta. O Sutra do Coração (Prajna Paramita) diz isso claramente: “Sem ganho, sem realização.” Porque você já é o que deseja ser. Não há nada a se obter. Pare. Não faça nada. Pode parecer que não vamos a nenhum lugar, mas de fato estamos profundamente no momento presente e somos capazes de tocar a dimensão última.
Nossa mente comum já está no caminho. Se nós continuarmos pensando sobre ir lá fora e achar algo na vizinhança de nossa casa, então já estamos errando. Sabemos quem o Buda é? Sabemos quem somos? Podemos ter uma idéia sobre nós mesmos, mas nossa idéia não é ainda quem realmente somos. Não achamos ainda nosso verdadeiro ser.
A palavra “Buda” é só uma palavra. O mestre Linji disse “Não procure o Buda, Buda é apenas um termo vazio. Você conhece aquele que está buscando? Os mestres e os Budas das três eras apenas buscaram o Dharma. No presente você olha para dentro do Zen e estuda o caminho de forma a buscar o Dharma. Se você perceber o Dharma então tudo está resolvido. Se você não percebeu isso, continuará a renascer nos cinco destinos.”
Podemos pensar que o mestre Linji está dizendo: “Não busque o Buda, ao invés disso procure o Dharma.” Mas isso também é perigoso porque também temos nomes e palavras que carregam uma imagem do Dharma e não sua verdadeira natureza. Dharma é o Dharma da mente. Mente não tem forma, é difundida nas dez direções, e está manifestando sua atividade bem em frente de nós. O que estamos procurando é tão diferente da realidade, assim como a terra é do céu. Nossa mente é como um pintor criando uma versão da realidade.
A realidade última apenas parece difícil porque logo que tentamos explicá-la, já estamos discriminando e, portanto perdemos a essência da dimensão última que é não discriminação. Nossas mentes têm a tendência a discriminar. Nossa mente divide o mundo entre sujeito e objeto. Eu sou diferente de você, o pai é diferente do filho, as nuvens são diferentes dos rios.
A mente é como uma faca afiada que corta a realidade em pedaços separados. Dizemos: “Eu amo isso, odeio aquilo; gosto disso, desgosto daquilo. Eu amo o Buda, odeio Mara.” Amamos a beleza, odiamos a feiúra, amamos a vida e odiamos a morte. Mas morte e vida intersão. Em cada minuto, cada segundo, muitas de nossas células estão morrendo e muitas outras estão nascendo. Portanto morte e nascimento são apenas dois lados da mesma realidade. Quando o pensamento dualista não está presente, tudo se torna claro. Isto é expresso nas linhas de um poema atribuído ao Terceiro Patriarca, Sengcan:
O grande caminho, a verdade absoluta não é difícil.
Apenas fica difícil porque há discriminação.
Nós apenas precisamos não amar ou odiar,
Então naturalmente ele se tornará muito claro.
Palestras de Dharma não são a verdade. O Dharma verdadeiro existe na mente dos estudantes como sementes e as palestras de Dharma são apenas como pequenas nuvens que liberam chuva e fazem com que as sementes nas mentes dos praticantes brotem e se manifestem. Os professores de Dharma não podem transmitir a verdade mais que um pai pode transmitir totalmente suas experiências aos filhos. Quanto mais um pai persiste com o filho, mas ele se torna bloqueado. O melhor que o pai pode fazer é ser como a nuvem de chuva e nutrir as semente de sabedoria no filho. Quando o filho crescer e passar por dificuldades e tiver suas próprias experiências; então a sabedoria que foi regada se manifestará.
Mestre Linji ensinou: “Eu falo do Dharma da Mente-Terra para ajudar as pessoas a penetrarem no sagrado e no profano; no puro e no corrupto; na verdade e na prática estabelecida. Contudo a verdade e a prática estabelecida, o sagrado e o profano dentro de você não podem ser descritos em termos e conceitos de sagrado, profano, verdade e convencional. O profano, o sagrado, a verdade e a prática estabelecida nunca se referem a elas mesmas como profano, sagrado, convencional e verdadeiro.”
Mesmo que tenhamos a dimensão última, o comum, o santo e o profano dentro de nós, não deveríamos usar essas palavras porque sua verdade é algo diferente. Quando pensamos em Paris, temos uma idéia, uma visão sobre Paris e palavras para descrever Paris. Mas Paris é muito diferente da visão e das palavras que temos. Talvez tenhamos ido fazer compras em Paris por alguns dias e por isso pensamos que a conhecemos. Há aqueles que viveram dez, vinte anos em Paris e não descobriram toda a verdade sobre a cidade. Não deveríamos confundir a palavra e a idéia com a verdade.
Se pudermos agarrar firmemente esta chave, esta essência, então deveríamos aplicá-la imediatamente na nossa vida diária. Nós somos pobres, mas pensamos que somos prósperos. Somos escravos, mas pensamos que somos mestres. Somos a continuação de nossos ancestrais, mas pensamos que estamos sozinhos. Não deveríamos ser capturados por palavras e terminologias.
Mestre Linji ensinou: “O Dharma deste monge-montanha é muito diferente do Dharma de pessoas que estão apegadas ao mundo. Mesmo se Manjushri e Samantabhadra aparecessem diante de mim nas suas diferentes manifestações e perguntassem sobre o Dharma, tão logo eles abrissem suas bocas e dissessem “Mestre”, eu iria ser capaz de farejá-los.”
Ele está dizendo que pode olhar para alguém e saber quem ele é. Baseado nas aparências externas, eu não discrimino entre comum e santo. Só porque um monge tem o nome de Manjushri, o nome do bodisatva da grande sabedoria, não significa que ele é santo. Apenas porque uma mulher tem um nome comum, eu não penso que ela não é santa.
Comumente, mesmo antes das pessoas abrirem suas bocas, discriminamos. Um francês sentando a nossa frente e imediatamente temos alguma idéia do que significa ser francês. Não permitimos que a realidade daquela pessoa se revele para nós. Se sabemos que alguém é um padre católico ou um monge budista, imediatamente temos uma idéia do que significa essa pessoa. Muitas pessoas se disfarçam como o Bodisatva Manjushri ou o Bodisatva Samantabhadra. Se nos livramos da discriminação, então não poderemos ser enganados.
Quando estudamos budismo, procuramos por um professor e acreditamos que o professor tem a sabedoria. Temos que acreditar que aquele professor é sagrado e outras pessoas são comuns de forma que possamos seguir esse professor. O professor coloca o robe da santidade e acreditamos que imediatamente ele se torna santo. Este é o lugar que nos mata. É um tipo de morte quando fugimos do comum em direção ao que pensamos ser sagrado. Nós fugimos de nós mesmos.
Mestre Linji não podia mais ser enganado porque não mais discriminava entre o sagrado e o profano. Uma pessoa aparecia diante dele e se a pessoa dissesse ser um bodisatva ou uma pessoa comum, mestre Linji veria sua natureza verdadeira.
(Traduzido do livro “Nothing to do Nowhere to go” – Thich Nhat Hanh por Leonardo Dobbin)

quarta-feira, 19 de março de 2014

Impermanência

Se você sofre, não é porque as coisas são impermanentes. É porque você crê que as coisas são permanentes. Quando uma flor morre, não sofremos muito, porque entendemos que as flores são impermanentes. Mas você não pode aceitar a impermanência de uma pessoa amada, e sofre profundamente quando ela morre. Se você olhar a impermanência em profundidade, fará o melhor que puder para fazer essa pessoa feliz agora. Consciente da impermanência, você se torna positivo, amoroso e sábio. Impermanência é boa notícia. Sem impermanência nada seria possível. Com impermanência toda porta é aberta para a mudança. Em lugar de lastimar, deveríamos dizer: Longa vida para a impermanência. Impermanência é um instrumento para nossa liberação.

Thich Nhat Hanh em Cultivando a Mente de Amor, Editora Palas Athena, São Paulo, 2000.