domingo, 18 de maio de 2014

A Grande Compaixão

Saigon, 22 de maio de 1966,
 
Não é provável que esta coleção de escritos no meu diário, que eu estou chamando de "Perfumadas Folhas de Palmeira", vá passar pelos censores. Se ela não puder ser publicada, espero que meus amigos circulem entre eles os textos. Hoje à noite o céu está estranhamente brilhante. Vou deixar o Vietnã amanhã, mas eu já sinto falta de casa. Eu sei que onde quer que eu vá haverá estrelas, nuvens e lua, mas estou determinado a voltar para casa. Meu coração está um pouco inquieto, mas no geral eu estou em paz. Quero compartilhar esses pensamentos, embora incompletos, enquanto eu estou sentindo essa calma.
 
Para alcançar o entendimento, você tem que descartar tudo o que você aprendeu. Isso é o que o Sutra do Diamante quer dizer onde está escrito: "A só é A, quando não é A." Eu sei que isso soa estranho, mas quanto mais eu vivo, mais eu vejo que é verdade. Apegar-se ao que você aprendeu é pior do que não aprender de início. Tudo que me foi ensinado no Instituto Budista foi virado de cabeça para baixo. É por isso que eu posso entender o que aprendi lá.
 
Momentos atrás, enquanto o nosso DC-4 se aproximava de Saigon, vi as formações de nuvens mais requintadas. O sol já havia se posto, mas havia luz suficiente no céu para ver as nuvens suaves e puras espalhadas por baixo do avião como um mar, onda após onda, mais branco que o branco da mais pura neve. Tornei-me um com as nuvens, tão suave e puro como uma nuvem. Por que os seres humanos são tão atraídos por nuvens e tapetes de pura neve, macios e brancos? Talvez seja porque gostemos de coisas que são puras, belas e saudáveis, coisas que reflitam a maneira que queremos nos ver. Pureza, beleza e salubridade não têm uma existência objetiva própria. São apenas nossos pontos de vista.
 
Nós reagimos a uma folha de papel branco, um riacho de água límpida, um doce refrão da música ou um homem ou mulher atraente da mesma maneira. Uma mulher bonita é muitas vezes comparada à neve, lua ou flores. Quando ela é compassiva, nós a chamamos de uma deusa ou um Buda, porque deusas e Budas são conhecidos por serem belos e gentis. Queremos ser associados com o que nós consideramos belo, puro e saudável e queremos que essas coisas permaneçam da mesma forma.
 
Mas o que dizer da corrupção, feiúra, crueldade e decadência? Lutamos para permanecer no lado puro e bonito e queremos manter o outro lado longe. O Budismo Mahayana descreve o nirvana como permanência, felicidade, liberdade e pureza. Eu acho que a escolha dessas quatro virtudes para descrever o nirvana demonstra como nós, seres humanos, somos ligados a uma determinada idéia de felicidade.
 
O Sutra do Coração foi composto para nos ajudar a quebrar tais pontos de vista. Avalokita, depois de olhar profundamente para as coisas, sorri e anuncia: "Todos os fenômenos são marcados com o vazio, pois eles não são produzidos nem destruídos, nem profanos nem imaculados, nem crescem nem diminuem, Desta maneira, na vacuidade não há nem forma, nem sentimentos, nem percepções, nem formações mentais, nem consciência; nem olho, ou ouvido, ou nariz, ou língua, ou corpo, ou mente; nem forma, nem som, nem cheiro, nem sabor, nem tato, nem objeto da mente".
 
Enquanto eu me sentava no avião, vi tudo isso a partir de uma perspectiva diferente. Sorri enquanto pensava sobre as diferentes formas da água. Ela pode ser um líquido claro, gelo, vapor, nuvens ou neve. Todas essas formas são H2O, mas a própria H2O está vazia, sem permanência. Ele pode ser dividida em hidrogênio e oxigênio, mas eles também são vazios. Examine o oxigênio e você vai ver que ele é composto de elementos que não são oxigênio, que também são vazios e feitos de outros elementos. Eles são todos interdependentes e interligados. Você não pode separar o oxigênio do não-oxigênio, mas também não se pode dizer que o oxigênio e o não-oxigênio são a mesma coisa.
 
Neste mundo de constantes mudanças, queremos nos agarrar a algumas verdades permanentes. Suponha que eu me pergunte qual é a coisa mais linda e importante do mundo, e suponha que eu responda "água". A água pode ser clara como um espelho. Ela pode cobrir um pico de montanha ou ficar girando em ondas brancas à beira-mar. Sem água, a Terra iria secar e morrer. Por isso, eu digo que a água é a coisa mais linda e importante.
 
Mas se eu parar e considerar o fogo, percebo que a vida também não seria possível sem a luz e o calor do sol. De fato, sem luz, como alguém poderia distinguir o que é belo e o que não é? Sem luz, quem poderia ver a água límpida como um espelho, a neve que cobre o pico da montanha ou as ondas girando à beira-mar? Posso entender isso também, mas se eu for obcecado com a água, vou fechar os olhos e me agarrar apenas à água. Isso seria ignorância, não é?
 
Alguns argumentam que a contínua transformação dos fenômenos apóia a crença na reencarnação. Você pode ter descartado essa crença quando ainda era jovem, entendendo que essa idéia pressupõe a existência de uma alma ou eu permanente e separado que pode transmigrar. Na realidade, não há um eu separado, não há oxigênio ou hidrogênio com uma identidade própria e permanente. No entanto, o mundo do vazio revela-se como eternamente milagroso. Há uma espécie de reencarnação, embora se olharmos profundamente, veremos que nada é permanente ou impermanente, puro ou corrupto, gentil ou cruel, bonito ou feio. Por favor, não repita essas coisas para as crianças, porque os olhos delas não estão abertos o suficiente ainda. Elas podem concluir que não há nenhuma razão para se viver de acordo com a ética se não há nem bom nem mau.
 
Dada uma escolha, você não iria escolher pureza sobre a corrupção, a felicidade sobre o sofrimento, bondade sobre a crueldade? Isso parece óbvio. Mas, para escolher pureza, felicidade e bondade, a maioria das pessoas assume que nós temos que destruir a corrupção, o sofrimento e a crueldade. É possível destruí-los? Se o ensinamento do Buda: "Isto é assim, então aquilo é assim," é verdadeiro, então, dentro da pureza há corrupção. Se você destruir a corrupção, destrói simultaneamente a pureza. "Este não é, porque aquele não é." Isso quer dizer que devemos nutrir corrupção, crueldade e sofrimento? Claro que não!
 
Todos os pares de opostos são criados por nossas próprias mentes a partir da nossa consciência armazenadora. Fazemos da felicidade e sofrimento uma enorme luta. Se pudéssemos penetrar a verdadeira face da realidade como Avalokita fez, todas as nossas tristezas e desgraças desapareceriam como fumaça e de fato nós iríamos "superar o mal-estar."
 
Olhe para o sorriso do Buda. É completamente pacífico e compassivo. Isso quer dizer que o Buda não leva o seu e o meu sofrimento a sério? O Buda enviou Bodhisattva Sadaparibhuta para nos informar que o Buda não olha para ninguém, porque cada ser se tornará um Buda.
 
Talvez a minha reação ao sorriso do Buda seja causada por um sentimento infantil de inferioridade - que certamente não surge de um sentimento de auto-respeito. É fácil nos sentirmos insignificantes, desajeitados e estúpidos diante do Buda, que vê o nirvana e samsara como meros lampejos de vazio. No entanto, estou certo de que o Buda sente compaixão por nós, não porque sofremos, mas porque não vemos o caminho, o que é a causa do nosso sofrimento.
 
Desde que eu era jovem, tento entender a natureza da compaixão. Mas a pouca compaixão que aprendi não foi proveniente de investigação intelectual, mas da minha experiência real do sofrimento. Eu não tenho orgulho do meu sofrimento mais do que uma pessoa que confunde uma corda com uma cobra é orgulhosa de seu medo. Meu sofrimento foi uma mera corda, uma mera gota de vazio tão insignificante que deve se dissolver como a névoa ao amanhecer. Mas não foi dissolvido e eu sou quase incapaz de suportá-lo. Será que o Buda não vê o meu sofrimento? Como ele pode sorrir?
 
O amor busca uma manifestação - o amor romântico, o amor maternal, amor patriótico, amor à humanidade, o amor por todos os seres. Quando você ama alguém, se sente ansioso para que ele ou ela estejam seguros e por perto. Você não pode simplesmente tirar seus entes queridos de seus pensamentos. Quando o Buda testemunha o sofrimento sem fim dos seres vivos, ele deve sentir uma profunda preocupação. Como ele pode apenas sentar lá e sorrir?
 
Mas pense nisso. Somos nós que o esculpimos sentado e sorrindo, e fazemos isso por uma razão. Quando você fica acordado a noite toda se preocupando com o seu ente querido, você está tão ligado ao mundo fenomenal que pode não ser capaz de ver a verdadeira face da realidade. Um médico que entende com precisão a condição de seu paciente não se senta e fica obcecado em mais de mil explicações ou ansiedades diferentes como a família do paciente. O médico sabe que o paciente vai se recuperar, e assim ele pode sorrir, mesmo quando o paciente ainda está doente. Seu sorriso não é cruel, é simplesmente o sorriso de alguém que capta a situação e não se envolve em preocupação desnecessária. Como posso colocar em palavras a verdadeira natureza da Grande Compaixão?
 
Quando começamos a ver que a lama preta e branca de neve não é nem feia nem bonita, quando podemos vê-la sem discriminação ou dualidade, então começamos a compreender a Grande Compaixão. Aos olhos da Grande Compaixão, não há nem esquerda nem direita, nem amigo nem inimigo, nem perto nem longe. Não pense que a Grande Compaixão é sem vida. A energia da Grande Compaixão é radiante e maravilhosa. Aos olhos da Grande Compaixão, não há separação entre sujeito e objeto, não há eu separado. Nada pode perturbar a Grande Compaixão.
 
Se uma pessoa cruel e violenta estripá-lo, você pode sorrir e olhar para ela com amor. É a sua educação, a sua situação e a sua ignorância que o leva a agir de forma tão estúpida. Olhe para ele - aquele que causa a sua destruição e joga montes de injustiça em cima de você - com olhos de amor e compaixão. Deixe a compaixão derramar de seus olhos e não deixe que nem uma onda de culpa ou a raiva suba em seu coração. Ele comete crimes sem sentido contra você e te faz sofrer, porque ele não pode ver o caminho para a paz, a alegria ou compreensão.
 
Se algum dia você receber a notícia de que eu morri por causa de atos cruéis de alguém, saiba que eu morri com o meu coração em paz. Saiba que em meus últimos momentos eu não sucumbi à raiva. Nunca devemos odiar um outro ser. Se você puder dar origem a essa consciência, será capaz de sorrir. Lembrando-se de mim, você vai continuar em seu caminho. Você terá um refúgio que ninguém poderá te tirar. Ninguém será capaz de perturbar a sua fé, porque ela não dependerá de qualquer coisa no mundo fenomenal. Fé e amor são um e podem apenas surgir quando você penetrar profundamente a natureza vazia do mundo fenomenal, quando puder ver que você está em tudo e tudo está em você.
 
Há muito tempo atrás eu li uma história sobre um monge que não sentia raiva contra o rei cruel que tinha cortado a sua orelha e perfurado sua pele com uma faca. Quando li isso, pensei que o monge deveria ser algum tipo de deus. Isso era porque eu ainda não conhecia a natureza da Grande Compaixão. O monge não tinha raiva dentro de si. Tudo o que ele tinha era um coração de amor. Não há nada que nos impeça de ser como aquele monge. O amor ensina que todos nós podemos viver como o Buda. Amanhã de manhã eu tenho que partir. Eu não vou ter tempo hoje de ler o que eu escrevi, mas vou ver brevemente Hung amanhã e vou dar-lhe o manuscrito antes de eu deixar a nossa bendita terra natal.
 
(Do livro de Thich Nhat Hanh - "Fragrant Palm Leaves” – Diário de Thich Nhat Hanh - Tradução Leonardo Dobbin)

quarta-feira, 14 de maio de 2014

Dúvidas sobre a Prática

Pergunta: Por que praticar a plena consciência é tão importante?
 
Thich Nhat Hanh: Todo mundo é capaz de estar atento. Todos são conscientes em certa medida. A questão é como ser mais consciente. Muitas pessoas se perdem na preocupação com o futuro e arrependimentos sobre o passado. Eles são apanhados em seus projetos e fantasias e suas mentes não estão ligadas a seus corpos. Se o corpo não está unido com a mente, não estamos realmente vivos. O andar atento e o respirar conscientemente ajudam a trazer a mente de volta para o corpo, para que possamos estar verdadeiramente presente no aqui e agora e nos tornarmos realmente vivos.
 
Praticar a consciência pode ser uma espécie de ressurreição, de repente, você se torna vivo novamente. Plena consciência (mindfulness) aumenta a concentração e permite-nos ver as coisas mais profundamente e deixamos de ser vítimas de percepções erradas. Nós vamos criar menos sofrimento para nós e para outras pessoas. Vamos começar a saborear a alegria de viver e ajudar os outros a desfrutar de suas vidas diárias. Não podemos forçar as pessoas a praticar a atenção plena, mas se praticarmos e nos tornarmos felizes, poderemos inspirar outras pessoas para a prática.
 
P: Um dos termos mais usados em ensinamentos budistas é "olhar profundamente." O que significa olhar profundamente?
 
Thay: Olhar profundamente significa estar profundamente consciente do objeto de nossa concentração. Nós usamos a energia da consciência para abraçar o objeto e nos concentrarmos nele. Podemos usar não só os nossos olhos, mas também os nossos ouvidos para olhar profundamente. Olhar e escutar em profundidade são essencialmente a mesma coisa. Nós podemos ouvir a nós mesmos e aos outros com os nossos ouvidos e isso vai resultar numa melhor compreensão e discernimento. Todos nós temos olhos e ouvidos, mas sem a energia da consciência para capacitá-los, não poderemos praticar o olhar e o ouvir em profundidade Podemos olhar profundamente, mesmo com nossos olhos e ouvidos fechados. Para olhar profundamente a natureza da nossa inspiração, nós não precisamos de olhos ou ouvidos; quando plena consciência (mindfulness) está presente na nossa consciência mental, ela faz o trabalho de olhar profundamente.
 
Às vezes podemos até usar o pensamento. Em muitos casos, o pensamento pode nos desviar do caminho e podemos nos perder. Mas se soubermos lidar com nossos pensamentos, ele pode nos ajudar a ver mais profundamente. Todos nós já tivemos a experiência de ler algo e nos enganarmos a nós mesmos ou ter a ilusão de que havíamos entendido. Mas, ao relê-lo ou referindo-nos aquilo, descobrimos que não  absorvemos ou entendemos realmente.
 
A mesma coisa é verdadeira ao olhar profundamente. Podemos pensar que é fácil perceber que uma flor é impermanente. Nós aceitamos a impermanência da flor. Mas não é através do uso de seu intelecto que você toca na raiz da impermanência. Você tem que tocar a natureza da impermanência de uma forma profunda, a fim de ir além de sua noção de impermanência e também da raiz dessa noção. Este é o núcleo da prática chamada de meditação de insight ou olhar profundamente (vipashyana). A fim de fazer isso com sucesso, você deve cultivar a sua atenção e concentração, que são os poderes que lhe permitem aprofundar a natureza das coisas.
 
P. Eu venho praticando sozinho por muitos anos, mas eu continuo a achar que é difícil estar atento. Eu posso manter a concentração por algumas semanas, mas minha mente é facilmente agitada e algo vem sempre para me distrair. Quais são seus pensamentos sobre isso?
 
Thay: É porque nossas mentes são agitadas que temos que praticar. Todos os praticantes têm os seus altos e baixos. Isso é natural. Mas se você tem uma comunidade de companheiros praticantes, a Sangha, para se refugiar, você será apoiado nestes momentos em que você se sente por baixo. A Sangha vai encorajá-lo e ajustá-lo em seu caminho.
 
Refugiar-se na Sangha é uma tarefa crítica. Sem uma Sangha, não podemos continuar nossa prática por muito tempo. Se você deixou sua Sangha, tem que voltar imediatamente. Se você não esteve em contato com uma Sangha, tente o seu melhor para encontrar uma. Todos nós podemos construir Sanghas onde quer que estejamos. Pessoas em todos os lugares precisam de estabilidade, calma e atenção. O obstáculo pode ser que queiramos usar termos budistas. Há muitas pessoas que querem apenas sentar e não fazer nada, tornarem-se pacíficas e calmas, estarem atentas a cada momento de suas vidas diárias.
 
Se necessário, você pode abster-se de usar termos budistas, basta incorporar o Dharma em sua vida consciente, ter frescor e ser comunicativo. Se você usar uma linguagem budista, no início, você vai afastar as pessoas e não vai ser bem sucedido. Ouça as pessoas profundamente, usando o discurso amoroso. Então você vai fazer amigos. Você também pode ter árvores, rios e rochas como os membros de sua Sangha. O ar que você respira é um elemento de sua Sangha. O caminho que você usar para a meditação andando é um elemento de sua Sangha. As pessoas não precisam se ajoelhar e receber os Cinco Treinamentos de Consciência, a fim de ser membros de sua Sangha. A criança com quem você fala, o vizinho com quem você faz amizade podem ser membros de sua Sangha. Todo mundo que você encontra, todos com quem você faz negócios, podem ser um membro de sua Sangha.
 
Apenas ter um grupo de pessoas para conversar, para se conectar, pode ser uma espécie de Sangha. Você não tem que usar a palavra "Sangha". Se convidar as pessoas para o chá, não diga: "Vamos ter a meditação do chá." Diga: "Vamos tomar um chá em paz e estar cientes de que temos algum tempo para passar juntos, apreciando o nosso chá e nossa união." Se você aprender a usar esse tipo de linguagem, em breve vai ser capaz de construir uma Sangha.
 
P: É muito difícil para mim relaxar. Sou inquieto e tenho dificuldade de ficar parado quando medito. Como posso me tornar menos agitado?
 
Thay: Muitos de nós têm uma forte energia nos empurrando para seguir em frente. É por isso que são oferecidas as práticas de sentar, andar, comer e respirar. Enquanto comemos, aproveitamos cada pedaço de comida que mastigamos. Se formos bem sucedidos com a primeira mordida, pode ser que sejamos bem sucedidos com a segunda e a terceira. A prática da alimentação nos ajuda a relaxar. A prática da caminhada também nos ajuda a relaxar. Se você sente que não pode relaxar, pratique a meditação andando, dando um passo de cada vez. Se você puder dar um passo que traz solidez e descanso, então você poderá dar um outro passo.
 
Se estiver agitado ou inquieto e não sabe como lidar com essa energia, você deve reconhecer e nomear essa energia como "inquietude" ou "agitação". Inspirando, você diz: "Eu te conheço, energia de inquietação." Use sua inspiração e expiração para reconhecê-la e sorrir para ela. Tenha fé na prática. Comece com um pedaço de comida, uma inspiração e um passo. Tudo o que você estiver fazendo, esfregando o chão ou dando um passo, respire e recupere a liberdade para se tornar você mesmo. Então você não será mais uma vítima da energia da inquietação.
 
P. Como podemos aprofundar a nossa prática?
 
Thay: Aprofundar a nossa prática significa ter uma prática genuína, praticando não apenas na forma. Quando sua prática é genuína, ela vai trazer alegria, paz e estabilidade para você mesmo e para as pessoas ao seu redor. Eu prefiro a expressão "verdadeira prática." Para mim, a prática deve ser agradável. A verdadeira prática pode trazer-nos a vida de imediato. Ao praticar a respiração consciente, você se torna vivo, se torna real e não apenas quando você sentar ou andar, mas quando está preparando o café da manhã ou realizando qualquer atividade. Se você sabe como inspirar e expirar conscientemente ao preparar o café da manhã com um sorriso, vai cultivar a vivacidade, a alegria e a compaixão e a liberdade de pensar sobre o passado ou de se preocupar com o futuro. Isso é a verdadeira prática, e seu efeito pode ser visto imediatamente.
 
P: Eu fico ocupado desde o início da manhã até tarde da noite. Eu raramente estou sozinho. Onde posso encontrar um tempo e lugar para contemplar em silêncio?
 
Thay: O silêncio é algo que vem de seu coração, não de fora. O silêncio não significa  deixar de falar e não fazer as coisas, significa que você não está perturbado por dentro, não existe fala dentro de você. Se você é realmente silencioso, então não importa em que situação se encontre, poderá desfrutar do silêncio. Há momentos em que você acha que está em silêncio e tudo está em silêncio, mas a fala está acontecendo o tempo todo dentro de sua cabeça. Isso não é silêncio.
 
A prática é encontrar o silêncio em todas as suas atividades. Vamos mudar a nossa maneira de pensar e a nossa maneira de olhar. Temos de perceber que o silêncio vem do nosso coração e não da ausência de conversa. Sentar-se para comer o seu almoço pode ser uma oportunidade para que você possa desfrutar de silêncio, embora os outros possam estar falando, é possível que você seja muito silencioso por dentro. O Buda foi cercado por milhares de monges. Embora andasse, sentasse e comesse entre os monges e as monjas, ele sempre habitou em seu silêncio. O Buda deixou bem claro que, ficar sozinho, ficar quieto, não significa ter que ir para a floresta. Você pode viver na Sangha, pode estar no mercado, mas ainda desfrutar do silêncio e da solidão.
 
Estar sozinho não significa que não há ninguém ao seu redor. Estar sozinho significa que você está firmemente estabelecido no aqui e no agora e se torna consciente do que está acontecendo no momento presente. Você usa sua consciência para tornar-se consciente de cada sentimento, cada percepção que você tem. Está ciente do que está acontecendo ao seu redor na Sangha, mas você está sempre com você, e não se perde. Essa é a definição da prática ideal da solidão do Buda: não ser capturado pelo passado ou levado pelo futuro, mas sempre estar aqui, com corpo e mente unidos, conscientes do que está acontecendo no momento presente. Essa é a solidão real.
 
(Do livro de Thich Nhat Hanh - "Answers from the heart” - Tradução Leonardo Dobbin)