segunda-feira, 30 de junho de 2014

Segundo Treinamento - Verdadeira Felicidade

Consciente do sofrimento causado pela exploração, injustiça social, roubo e opressão, eu me comprometo a praticar a generosidade no meu modo de pensar, de falar e de agir. Estou determinado a não roubar e a não possuir nada que porventura pertença a outros, e a compartilhar meu tempo, energia e recursos materiais com aqueles que precisam. Praticarei a observação profunda para ver que a felicidade e o sofrimento dos outros não estão separados da minha própria felicidade e sofrimento. Praticarei para ver que a verdadeira felicidade não é possível sem compreensão e compaixão - e que buscar riqueza, fama, poder e prazeres sensoriais podem gerar muito sofrimento e desespero. Estou consciente de que a felicidade depende da minha mente e não de condições externas, e que posso ser feliz no momento presente, bastando me lembrar de que já possuo todas as condições para isso. Eu me comprometo a praticar o Meio de Vida Correto de forma a reduzir o sofrimento dos seres vivos na Terra e, especialmente, reverter o processo de aquecimento global.

O Segundo Treinamento da Plena Consciência é sobre tomar somente o que é nos dado livremente e tratar o meio ambiente com cuidado. Trata-se de aprender a partilhar os bens materiais, tempo e energia com aqueles que estão necessitados. O objetivo deste treinamento é acabar com a avidez ou cobiça. Por causa da nossa cobiça por recursos naturais, por causa da avidez do mercado para que nós consumamos os seus bens, governos não hesitam em trazer seu exército para invadir outro país e acabar com inúmeras vidas.

Devido a esta cobiça, nós permitimos que a pobreza e a fome existam, com medo de não termos o suficiente para nós mesmos se todo mundo tiver o que precisa. A cobiça leva à destruição do meio ambiente e da poluição da água, do solo e do ar.

Ver a conexão entre nós e as outras pessoas é parte da prática do Segundo Treinamento. As pessoas de quem tomamos as coisas não são nada mais do que nós mesmos. Quando nos países mais ricos da Europa e nos Estados Unidos, esquecemos o sofrimento causado pela pobreza em outras partes do mundo ou mesmo das pessoas em nosso próprio país, nós consumimos de uma forma que explora os pobres. A pobreza gera violência e, mais cedo ou mais tarde, a violência vai trazer sofrimento para os países mais ricos e as pessoas mais ricas. O sofrimento dos pobres está diretamente relacionada com o sofrimento dos ricos.

Além disso, ser rico não significa ser feliz. A felicidade só é possível quando há paz de espírito, e paz de espírito não é possível sem compreensão e amor. Muitas pessoas pensam que a felicidade vem do dinheiro, fama e prazeres sensuais. Mas isso não é correto. As pessoas que têm uma abundância dessas coisas podem sofrer muito e algumas até mesmo tiram suas próprias vidas, porque não têm a capacidade de compreender e amar. Se conhecermos o ensinamento sobre como viver feliz no momento presente, se soubermos como fazer uso da atenção plena para ir ao lar do momento presente, perceberemos que há muitas condições de felicidade que já estão presentes. Você não precisa correr para o futuro para obter mais condições. Se estamos felizes vivendo no momento presente não precisamos recear tanto que o nosso medo nos leve a acumular mais riqueza e poder.

Cada um de nós tem uma idéia sobre a felicidade. Achamos que temos que obter isto ou nos livrarmos daquilo, antes de podermos ser verdadeiramente felizes. Temos muitas idéias, tais como, "Eu realmente quero aquele diploma", ou "Se eu tivesse essa posição." Nós temos uma idéia sobre o que nos fará felizes. Às vezes, uma nação inteira pode abraçar uma determinada política ou caminho ideológico pensando que é o único caminho para a felicidade.

Se você não foi capaz de ser feliz, talvez seja porque você está se agarrando com firmeza a sua idéia de felicidade. Solte essa idéia e a felicidade pode vir com mais facilidade. Imagine que há muitas portas que se abrem para a felicidade. Se você abrir todas as portas então a felicidade tem muitas maneiras de chegar a você. Mas o que acontece é que você fechou todas as portas exceto uma e é por isso que a felicidade não pode vir. Portanto, não feche as portas. Abra todas as portas. Não basta comprometer-se com uma ideia de felicidade. Solte a idéia de felicidade que você tem e então a felicidade poderá vir hoje. Muitos de nós estão presos a uma idéia sobre como podemos ser verdadeiramente felizes. Para ser um bom praticante, sente-se e reavalie a sua idéia de felicidade.

Muitos de nós estão ligados a uma série de coisas que achamos que são cruciais para o nosso bem-estar. Embora possamos ter sofrido muito por causa delas, nós estamos com medo de liberar essas coisas a que estamos ligados. Nós podemos estar ligados a uma pessoa, um bem material, ou uma posição na sociedade. Pensamos que, sem essa coisa, não estaremos seguros. Precisamos ter o insight que nos dará a coragem de nos livrarmos desse apego, para que possamos, finalmente, sermos livres. Alegria e felicidade podem nascer de liberar, de abrir mão de nossas idéias e apegos.

Gandhi expressou a mesma idéia da seguinte maneira: "Nossos antepassados sabiam como parar a fim de praticar o contentamento, eles não se satisfaziam sem restrição e não se afogavam no gozo dos prazeres sensuais Eles viram que a felicidade dependia da nossa maneira de ver as coisas. Se a nossa mente tiver amor e compreensão, teremos a felicidade. Não é necessariamente verdade que porque alguém é rico, é feliz, ou quando ele é pobre sofre". Aqueles que vivem uma vida simples tem contentamento. Embora possam não ter um grande salário, podem sorrir durante todo o dia e oferecer amor a cada dia.

O Segundo Treinamento também trata de ver a nossa profunda conexão com a Terra. Nós tendemos a ver a Terra como algo diferente de nós mesmos, algo que existe para nós usarmos, para explorarmos ou, na melhor das hipóteses, para protegermos. Com a Visão Correta e o insight da interexistência, vemos que somos compostos de elementos da Terra, como a água e sais minerais e de partículas que vêm do sistema solar. A Terra não está separada de nós. Quando exploramos e destruímos o meio ambiente, prejudicamos a nós mesmos, nossos descendentes e outras espécies. Ao poluir a água, o solo e a atmosfera, poluímos a nós mesmos. Se reconhecermos que viemos da Terra e somos parte da Terra, então sentiremos amor e gratidão pela Terra e, naturalmente, a trataremos com cuidado e respeito.

Podemos usar o Segundo Treinamento como um lembrete para a prática da gratidão para com os nossos antepassados, professores, amigos, todos os seres e a Terra. Nossos ancestrais não são apenas seres humanos. Nós, seres humanos viemos de outras espécies animais, vegetais e minerais. Os seres humanos são habitantes muito recentes do planeta Terra, por isso somos muito gratos a todas as espécies que habitaram a Terra há muito mais tempo que nós.

Na China e no Vietnã, temos a expressão "gratidão aos céus que nos cobrem e à Terra que nos carrega." Devemos gratidão a tudo o que nos rodeia. Quando vemos a água que vem da torneira, podemos estar cientes de que a água é proveniente de fontes da montanha e das profundezas da Terra. Podemos dizer: "A água flui maravilhosamente para nós e nossa gratidão está transbordando." Somos gratos ao ar, ao calor do sol, até o nosso sentimento de gratidão tornar-se tão vasto quanto o próprio universo.

Nos Estados Unidos, no dia de Ação de Graças, as pessoas decoram suas casas e jardins com abóboras e espigas de milho. Estes são os frutos da Terra. Todos os dias nós comemos e recebemos os frutos da Terra. Podemos praticar a gratidão por todas as espécies a cada minuto da nossa vida. A verdadeira gratidão é um sentimento que não tem limites. Geralmente pensamos em nossos pais como os que nos deram a vida e nos nutriram até a maturidade, mas muitas outras espécies contribuíram para nossa nutrição e crescimento. O sol e a Terra nos nutrem. Os objetos de nossa gratidão e nós mesmos somos um.

(Do livro “The mindfulness survival kit”– Sister Dang Nghiem)
(Traduzido por Leonardo Dobbin)

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Primeiro Treinamento - Compaixão

Apresentaremos nas próximas postagens os Cinco Treinamentos para desenvolver a atenção plena, adaptados por Thich Nhat Hanh, mestre da Ordem Interser, à realidade de nossa vida moderna. Originalmente estes Cinco Preceitos foram sugeridos por Buda a seus alunos leigos, no intuito de ajudá-los a viver de maneira mais plena e feliz, em paz e harmonia consigo e com o mundo a sua volta.
 
Primeiro Treinamento: "Consciente do sofrimento causado pela destruição da vida, eu me comprometo a cultivar o insight do Interser e da compaixão, e a aprender maneiras de proteger a vida das pessoas, animais, plantas e minerais. Estou determinado a não matar, a não deixar que outros matem e a não apoiar nenhum ato de matança no mundo, seja na minha maneira de pensar ou no meu modo de vida. Ao ver que as ações que causam sofrimento surgem a partir da raiva, do medo, da avidez e da intolerância - que, por sua vez, baseiam-se no pensamento dualista e discriminativo - cultivarei a abertura, a não discriminação e o não apego a pontos de vista para transformar a violência, o fanatismo e o dogmatismo em mim mesmo e no mundo."

O Primeiro Treinamento da Plena Consciência nos lembra de praticar a proteção da vida e não matar. Esta é uma prática que se destina a nos lembrar das violências tanto pequenas como grandes. Tal como acontece com cada um dos treinamentos da consciência plena, é destinado a não ser absoluto, mas um caminho para andar. Não é possível evitar a morte por completo. Por exemplo, você pode dizer que você vai ser vegetariano para que esteja menos envolvido na morte de animais, mas quando você cozinha os legumes para comer muitos microorganismos morrem. Assim, até mesmo a sua dieta vegetariana não é totalmente vegetariana. Tudo bem. Você está trabalhando em direção a menos sofrimento. Não é que não haja sofrimento. Mas você escolheu o caminho para minimizar o sofrimento. Podemos reduzir o sofrimento um pouco a cada vez que agimos, a cada vez que comemos todos os dias.

Em um mundo em que as pessoas usam a violência em nome do idealismo, religião ou Deus, o Primeiro Treinamento nos ajuda a transformar o nosso desejo, raiva e ignorância. A Segunda Nobre Verdade nos lembra que nosso sofrimento vai continuar enquanto mantivermos visões erradas. Nosso desejo e raiva surgem da ignorância, assim, com a visão correta, já não somos capazes de justificar a violência e, ao praticarmos a não-violência, salvamos e protegemos a vida, o Primeiro Treinamento.

Quando praticamos o Primeiro Treinamento da Plena Consciência, fortalecemos nossos olhos de interser. O nosso olhar tem que ser amplo e aberto para que possamos ver sem sermos pegos em ideologias e dogmas. Podemos ver que quando matamos alguém nos matamos. Quando encontramos alguém que pensamos ser um inimigo, temos a tendência de pensar que precisamos nos proteger e que ferir a outra pessoa vai nos ajudar a ficar seguros. Mas ferir a outra pessoa não nos manterá seguros. Podemos pensar que a única maneira de ficarmos seguros é atacando a outra pessoa. Mas ferir ou matar a pessoa que consideramos ser nosso inimigo só vai fazer mais inimigos.

Nós temos que entender a nossa própria raiva e sofrimento e ajudar a pessoa que consideramos ser nosso inimigo a aliviar seu próprio sofrimento. A violência não pode acabar com o sofrimento. Só compreensão e amor podem transformar o sofrimento.

Em 2007, voltei ao Vietnã depois de muitos anos de exílio. Organizamos uma série de cerimônias memoriais e as oferecemos para os sete milhões de vietnamitas que morreram na guerra com os Estados Unidos. Nessa cerimônia, fizemos este voto: "Diante de nossos antepassados espirituais e de sangue, juramos que a partir de hoje em diante, nunca devemos permitir que outra guerra ideológica aconteça." A guerra que aconteceu no Vietnã foi uma guerra ideológica. As ideologias comunistas e capitalistas não são ideologias vietnamitas, assim como as armas que usamos para matar uns aos outros em nome dessas ideologias também não eram vietnamitas.

Na primavera de 2013, visitei a Coréia do Sul. Dei uma palestra lá sobre a paz entre a Coreia do Sul e a Coreia do Norte, onde que eu propus que não seria suficiente limitar o desenvolvimento de um programa de armas nucleares. Temos que abordar a grande quantidade de medo que temos dentro de nós. Se não houvesse nenhum medo, raiva ou suspeita, as pessoas não iriam usar armas nucleares ou qualquer outro tipo de arma. Não é a ausência de armas nucleares por si só que garante que dois países possam se reconciliar e ter paz. É através da remoção de medo, raiva e suspeita que podemos fazer a verdadeira paz possível.

Quando você tenta fabricar armas nucleares, não é realmente porque queira destruir o outro lado, é porque você está com medo de que eles vão atacá-lo primeiro. Se você quiser oferecer ajuda em qualquer lugar do mundo, seja nos Estados Unidos, Coreia do Sul e do Norte, Oriente Médio, ou em qualquer lugar, você pode ajudar a trabalhar na remoção do medo, raiva e desconfiança de ambos os lados.

Israelenses e palestinos, por exemplo, ambos têm o desejo de sobreviver como uma nação e um povo. Ambos estão com medo de que o outro lado vá destruí-los. Ambos têm suspeitas, porque no passado o que eles receberam do outro lado tem sido a violência. Então, para fazer a paz verdadeira possível, você tem que tentar remover o medo, raiva e desconfiança. Isso não é só para os políticos. Cada um de nós pode agir de tal maneira que podemos diminuir a enorme quantidade de medo, raiva e suspeita que existe?

Na primavera de 2013, em Newtown, em Connecticut, um jovem entrou em uma escola e começou a atirar em crianças e professores. Muitas pessoas foram mortas. Após o evento, alguns políticos tentaram, sem sucesso, aprovar leis que limitavam os tipos de armas que são vendidos e tentaram reforçar as leis que restringem compras de armas, bem como as normas de segurança que regem o seu uso. Embora tais leis possam ser úteis, ainda não abordam as questões subjacentes, que são o sofrimento das pessoas, violência, raiva e doença mental. Muitas pessoas compram armas porque têm medo e querem se proteger. Assim, a principal questão não são as armas comuns ou armas nucleares, é o medo.

Em um relacionamento, se a reconciliação parece ser difícil, normalmente não é porque as duas pessoas não estejam dispostas a se reconciliar, mas é porque a quantidade de raiva, medo e desconfiança em cada uma já é muito grande. Costumamos dizer que a culpa é da outra pessoa; queremos reconciliar, mas o outro não. Mas isso é raramente o caso. A outra pessoa pode querer reconciliar, mas ele ou ela ainda tem um monte de raiva, medo e desconfiança. Dizendo isso para a outra pessoa não vai ajudar. Se você quiser ajudar alguém a reduzir o seu medo, raiva e desconfiança, primeiro você tem que praticar para reduzir a quantidade de medo, raiva e desconfiança em você mesmo. Oração ou boa intenção não são suficientes para mudar uma situação de raiva ou violência.

O Primeiro Treinamento é um lembrete de que você tem que praticar, treinar-se para diminuir a violência através da compreensão. Você pode fazer isso através da prática de atenção plena. Praticar a atenção plena significa que em vez de reagir a qualquer estímulo que esteja em torno de nós ou nos provoca, voltamos à nossa respiração, acalmamos o nosso corpo, paramos o nosso pensamento e trazemos a mente para o corpo no momento presente.

Nós nos tornamos mais conscientes de nossas motivações, nossos pensamentos, nossas ações e suas conseqüências, bem como a forma como falamos com os outros. Entendemos melhor a nós mesmos. Vemos a nossa contribuição para a situação e vemos que podemos abrigar equívocos sobre a outra pessoa ou grupo. Com essa visão mais clara, podemos ver que os outros são seres humanos como nós, com os mesmos sentimentos, motivações e preocupações. A menos que tenhamos a prática de compreensão e compaixão, mesmo se tentarmos ajudar em uma situação em que há tensão, poderemos não ter sucesso.

Suponha que a Coreia do Sul envia a Coreia do Norte um grande carregamento de grãos e outros alimentos, dizendo que o Norte precisa de muita comida para os pobres sobreviverem. A Coréia do Sul pode ser motivada pela boa intenção de evitar a fome no Norte, mas o Norte pode ver isso como uma tentativa de desacreditá-los, como se o Sul estivesse dizendo que o Norte não seja capaz de alimentar a sua própria população.

Qualquer coisa que você faça ou diga pode ser distorcida e criar mais raiva, medo e desconfiança. Nossos líderes políticos não foram treinados na arte de ajudar a remover o medo, raiva e desconfiança. É por isso que nós temos que pedir ajuda para aqueles de nós que praticam a compaixão e a escuta profunda e que tiveram algum sucesso em transformar o medo, raiva e desconfiança em si mesmos. Podemos usar o Primeiro Treinamento como um lembrete para continuar nossa prática do Quarto Treinamento (escuta profunda e a fala amorosa), a fim de reduzir o medo, a raiva e a desconfiança. Se fizermos isso como uma grande comunidade, a nossa visão vai crescer e vai trazer mais paz ao mundo.

(Do livro “The mindfulness survival kit”– Thich Nhat Hanh)

(Traduzido por Leonardo Dobbin)