quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Observar a Respiração

Quando cultivamos a capacidade de estar totalmente presentes, estamos cultivando uma energia que chamamos de atenção plena (sati). Atenção plena é uma qualidade natural da nossa mente. Cultivar a atenção plena pode enriquecer nossas vidas desde que esta consciência básica, simples ajude-nos a redescobrir as maravilhas da nossa experiência humana cotidiana. Andando, respirando, comendo — todas essas ações comuns que geralmente não damos atenção — tornam-se profundamente maravilhosas.

Muitos de nós cresceram com a ideia de que há uma separação fundamental entre corpo e mente, a chamada divisão cartesiana. Vemos erradamente a prática espiritual como apenas um exercício intelectual, ao invés de uma encarnação.

Eu gostaria que você tentasse um exercício agora: feche os olhos, inspire e expire e em seguida, usando sua mão direita, aponte para si mesmo. Para onde o dedo está apontando? Estava apontando para sua cabeça ou para o seu coração? Quando eu faço este exercício simples com grupos, cerca de noventa por cento dos participantes apontam para o seu coração — o núcleo do seu ser. Nossos corpos são grandes mestres e quando podemos chegar neles, descobrimos muita sabedoria contida.

Na filosofia védica comum no tempo do Buda, a sede da consciência era o coração e, por extensão, todo o corpo. Como muda a nossa abordagem ao cultivar "atenção plena" se mudarmos o foco do nosso cérebro para o nosso coração ou para todo o nosso corpo? Sati também pode ser traduzida como "relembrar". Eu gosto muito desta tradução. Relembrar é trazer todas as diferentes partes de nós mesmos volta para o aqui e o agora.

Na tradição de Plum Village, nossa prática fundamental é o desenvolvimento da atenção plena da respiração. Em sua forma mais simples, isto significa notar que você está respirando e em seguida expirando.

Prática sugerida: tranquilamente observar a respiração

Encontre um lugar calmo, onde você possa sentar ou deitar sem ser perturbado por alguns minutos. Traga sua consciência para seu corpo e simplesmente observe como a sua respiração flui para dentro e para fora. Se você achar útil, enquanto você inspira, pode notar: "inspirando"; enquanto você expira: "expirando". Permaneça descansando com a respiração por alguns minutos. Pode ser maravilhoso começar e terminar nosso dia com esta prática.

Seja sentado, caminhando ou comendo, trazemos uma consciência gentil e amorosa para nossa respiração. Cultivar a atenção plena é um presente que oferecemos a mesmos e não uma briga ou luta.

Ao desenvolver uma intimidade com a respiração, com nosso corpo e com o mundo ao nosso redor enquanto ele se desenrola, começamos a notar os lugares e as situações em que nos retraímos, quando não somos tão abertos como poderíamos ser. Começamos a descobrir nossos padrões de fechamento, de fuga. Eu gosto de chamá-los "os lugares onde nos escondemos" ou às vezes "as faixas no tapete".

Eu adorava visitar a casa dos meus avós. Até a década de 1980, ainda era decorada em estilo dos anos 70: papel de parede marrom e laranja, armários cor de abacate e cadeiras de cor de mostarda. Uma das coisas que eu mais amava era me deitar no seu tapete macio. Ao longo dos anos, vias ou faixas começaram a aparecer no tapete: uma faixa indo e voltando da cozinha, outra indo e voltando de uma cadeira especial e assim por diante. Meus avós tinham caminhos definidos por onde costumavam andar.

Nós também temos nossas "faixas no tapete" — vias neurais que viajamos continuamente, energias de hábito que continuamente se manifestam, nossos rituais diários. Para cultivar uma autêntica transformação do coração, precisamos entender que a meditação não é um lugar para se esconder ou se sentir "confortável", mas sim para se envolver com a vida, como ela se apresenta para nós em cada momento. Ao desenvolver a capacidade de estar presente com nossas experiências, começamos a notar nossos padrões habituais e somos capazes de sorrir para eles.

Embora intelectualmente possamos apreender que a essência da prática de atenção plena é escolher estar presente em cada momento cem por cento, muitas vezes lutamos contra aonde estamos, o que estamos fazendo ou com quem estamos com este momento devido as “faixas no tapete" que criamos para nós mesmos. Nós queremos estar em outro lugar, com outra pessoa, fazendo algo diferente.

Atenção plena é sempre a consciência de algo. É estabelecida e firme. Podemos trazer a atenção consciente à nossa respiração, ao nosso corpo, aos nossos sentimentos, aos nossos pensamentos, para contemplar uma situação e assim por diante.

Quando eu era muito jovem praticante no início de 1990, tive a oportunidade de fazer um curso de budismo básico em um templo chinês fora de Brisbane. Durante uma das lições, o Reverendo nos perguntou o que pensávamos que era meditação. Um de cada vez, os participantes ofereciam suas respostas e quando foi a minha vez, eu respondi, "meditação está relacionada com o balanceamento do microcosmo do corpo com o macrocosmo do universo."

O Reverendo, em seu crédito eterno, olhou para mim com muita compaixão naquele momento e simplesmente acenou com a cabeça antes que mudasse para a próxima pessoa. Quando todo mundo tinha respondido, o Reverendo olhou para nós e compartilhou que meditação budista era aprender a trazer a nossa mente para descansar em um ponto.

Eu amo essa descrição de meditação. Quando desenvolvemos nossa capacidade de estar presentes com nossas próprias experiência (atenção plena ou sati), naturalmente se aprofunda a concentração (samadhi). Concentração na meditação budista não é o tipo de concentração que normalmente associamos a estudar para os exames e que nos deixa exaustos depois de algumas horas. É descrito como "trazer a mente para descansar." Você já andou muito em um dia quente, ensolarado e em seguida, sentou-se debaixo de uma árvore grande, com sombra, com as costas encostadas no tronco? Esta é a experiência da concentração na meditação budista. Também ouvi a concentração sendo descrita como mergulhar em um lago fresco: muito refrescante!

Lembro-me de um ensinamento que Thay nos deu em 1998. Ele compartilhou que no estilo de prática Plum Village, uma hora de estudo devem ser iguais a sete horas de prática; para cada hora de aprendizagem em um livro, precisamos ter sete horas de colocar isso em prática, aplicá-lo de verdade. Muitos de nós são muito bons em aprender um monte de conceitos e terminologias budistas: lendo livros de Dharma, sutras, comentários e assim por diante, mas na verdade não são tão bons pegando estas práticas e aplicando-as nas nossas vidas diárias. Alguma vez você já se perguntou porque é assim? Como isto se relaciona com as “faixas no tapete", nossas energias de hábito ou zonas de conforto que mencionamos anteriormente?

(Do livro “Nothing To It: Ten Ways to Be at Home with Yourself”)
Phap Hai é professor de Dharma e o monge sênior da tradição de Plum Village)
(Traduzido por Leonardo Dobbin)

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Meditação e Consciência

Existem muitos níveis de consciência, os níveis mais baixos, brutais, animalescos, e instintivos, e os mais elevados. Infelizmente, hoje em dia, muitos de nós vivemos nestes níveis mais baixos de consciência. Estes estados são muito populares em filmes, onde a violência e os desejos mais inferiores são cultivados.

Acima deste estado da consciência vem o próximo nível que é das opiniões e crenças. Este é o nível mais comum das pessoas hoje em dia. A maioria das pessoas vai viver uma vida inteira oscilando entre estes dois estágios de consciência. Então, entre estes dois níveis, nós desenvolvemos nossa religião, nossa cultura, todas nossas ideias, e nossa ideia de “Ser”. Estes dois estágios são alimentados pela mente sensorial, pelos nossos conceitos sobre as sensações e pelas experiências que nós vivenciamos durante a vida. É uma variação de consciência muito limitada.

A consciência dorme enquanto descansamos o corpo e dorme também enquanto estamos acordados. Nós vemos isto em nossas vidas agora, enquanto muitas pessoas vivem como que por instinto, tentando satisfazer seus desejos instintivos, e sendo arrastadas pelo medo. Esta é sua única motivação na vida, são arrastadas pela insegurança, sentem medo, como se fossem perder tudo e ficar sem dinheiro por exemplo. Esto é instintivo e mecânico, e muitas pessoas vivem neste estado de inconsciência completamente apavoradas.

Algumas outras vivem suas vidas inteiramente no mundo da mente, entre ideias e conceitos, e para elas este ensinamento é apenas outro conceito, apenas mais uma ideia. Para elas este ensinamento torna mais um pouco de lixo mental.

Quando aprendemos a prestar atenção de forma prática e direta, a cada momento do nosso dia nos forçando a nos separarmos dos conceitos, crenças, ideias, emoções e sensações, podemos mudar tudo isto.

Precisamos nos forçar a estarmos conscientes. Fazemos isto aprendendo a estar atentos, a nos auto observarmos. Percebemos os três cérebros (mente, coração e corpo), mas vemos que não somos eles, aprendemos a nos separarmos deles. Nós observamos nossos pensamentos, observamos nossos sentimentos, e observamos nossas ações, mas sempre temos um senso de separação interna destes elementos. Este esforço precisa ser consistente, persistente e contínuo. Quando se torna contínuo, pode se tornar consciente. A contínua auto-observação enquanto também se percebe o Ser Interior, significa que eu estou presente, eu observo e simultaneamente estou ciente do Ser que está além dos cinco sentidos em mim. Eu estou consciente de tudo que estou fazendo.


Isto não tem nada a ver com uma ideia ou conceito. Não tem nada a ver com uma crença. Nem com se sentir bem ou se sentir mal, parecer bom ou ruim. Isto é pura consciência, pura plena atenção, só isso.

A atenção consciente está além de quem nós pensamos que somos, de quem queremos ser, de quem queremos que as pessoas pensem que somos. Está além de tudo isto. E ninguém pode fazer isto por nós, ninguém!

Se conseguirmos estabelecer uma continuidade de atenção consciente, então nós entramos no próximo nível de consciência – o Terceiro Nível de Consciência. Isto significa que somos capazes de nos observar com os três cérebros, como se o corpo fosse um ator e interiormente tivéssemos um diretor. O diretor é nossa consciência que está diretamente conectada com nossa Divindade Interior. É esta parte em nós que deveria estar tomando as decisões e que realmente sabe distinguir o bom e o ruim.

Se estabelecer no Terceiro Nível, é ter lembrança contínua de Deus, nosso Ser Interior, nosso Pai Interior, cuja presença está em nós pela contínua e ativa direção de nossa atenção consciente. Quando a mente está dominando nossas ações, nos prendemos em desejos, não ouvimos e ignoramos nossa consciência.

Aprender a meditar é aprender como tornar esta voz interior mais forte, tornar a consciência mais forte para que seja ela que controle o show e não mais a mente, não mais os desejos, mas sim uma parte superior que existe em nós.

Nos estabelecermos no Terceiro Nível de Consciência nos traz mudanças radicais, porque é a partir deste ponto que começamos a renunciar qualquer coisa que esteja abaixo disto, renunciamos as coisas que pertencem aos níveis mais inferiores de consciência. Se tivermos opiniões e crenças baseadas em orgulho e medo, se tivermos comportamentos instintivos baseados em orgulho e medo, vícios e todos os tipos de problemas, nós começamos a mudar e renunciar estas coisas. Fazemos uma revisão de nossos valores.

Meditação é a função da consciência. A consciência é atenção. Shamatha é a Mente Calma que resulta do direcionamento da atenção, é a auto observação. Tudo depende de desenvolver a atenção, tudo.

Se você realmente quer aprender isto, aprenda a meditar durante todo o dia. Aprenda a nunca estar distraído. Existem algumas maneiras de fazer isto. Nunca faça mais de uma coisa por vez até que você aprenda a fazê-la conscientemente. Muitas pessoas não gostam disto. Significa que você não deve comer um hamburguer enquanto dirige o carro, ou falar ao telefone e ouvir rádio ao mesmo tempo. Isto significa que não devemos trabalhar no computador e ver TV ao mesmo tempo, porque agindo assim dispersamos nossa atenção para muitas coisas impedindo a concentração. Temos que reconhecer os comportamentos que criam obstáculos para a meditação.

Temos que aprender a focar nossa atenção em apenas uma coisa por vez. Faça uma coisa e a faça inteiramente focado. Muitas pessoas pensam que isto vai deixar o seu trabalho mais lento e que vão fazer menos coisas por dia, mas a verdade é o oposto disto. Vamos fazer melhor e mais rápido aquela atividade que estamos fazendo.

Se quiser aprender a meditar, você tem que mudar seus hábitos do dia a dia. Encontre as coisas que te mantém distraído e mude-as. Se você quer enxergar o seu verdadeira “Ser”, pare de se distrair. Nós lemos estórias imundas, vemos bobagens na TV, falamos muito ao telefone, fofocamos, vamos ao shopping muitas vezes para gastar um dinheiro que não temos para comprar coisas que não precisamos, e todas estas coisas são distrações que nos ajudam a evitar a verdade. Não digo que precisamos não fazer nunca mais estas coisas, mas sim que a próxima vez que formos ao shopping por exemplo, nís iremos com plena atenção, conscientes do que estaremos fazendo.

Então, desenvolver a concentração é uma preliminar a meditação. O objetivo é desenvolver uma concentração estável e atenta durante todo o dia, e quando sentarmos para meditar poderemos desenvolver a Shamatha (concentração plena). A razão para desenvolver a Shamatha é aprender a meditar. A prática da concentração e a prática dos mantras, são preliminares. A real meditação é uma forma de obter informação.

Com a concentração correta o insight eventualmente vai surgir nos dando o poder de perceber e penetrar no Ser Superior ou na Suprema Sabedoria que está em todos nós, removendo a ilusão e modificando nossa mente, nos elevando assim a Quarto Nível de Consciência. Este é o nível do Samadhi, e para estar neste nível, a pessoa precisa ser um Ser muito desenvolvido espiritualmente, muito puro, e até chegarmos lá, poderemos experimentar este estado de graça de tempos em tempos, conforme vamos evoluindo e nos separando completamente do “Eu”.

Qualquer pessoa que esteja tentando aprender a meditar, mas não esteja aprendendo a se auto observar durante todos os momentos, dia e noite, vai gastar anos nesta tentativa e vai se frustrar. Meditação é apenas uma auto observação mais profunda. Só isto! É mais profunda e mais focada. Sem auto observação não pode haver meditação. Haverá apenas fantasias mentais, e isto não é meditação.

Uma vez que estas coisas sejam entendidas e comecemos a trabalhar com a consciência para aprender a mudar, para parar de agir mecanicamente, para mudar nossa raiva e nossos hábitos negativos, e começar a eliminar coisas que são irrelevantes em nossas vidas, aí sim, começaremos realmente a aprender a meditar. Começaremos a ver a verdade sobre a consciência. Isto significa que teremos que ter coragem suficiente para enfrentar nossas ilusões, nossos enganos, nosso desejo inconsciente de permanecer ignorantes, ignorando a verdade sobre nosso “ser”, nossa mente, quem eu sou, como me comporto, o que faço, e o que desejo. Você não pode mais evitar enfrentamentos internos se quiser entender o que é meditação.

Meditação é mudança. É mudar a nós mesmos para nos tornarmos uma pessoa melhor.

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Momento de Gratidão

Existem momentos em que sentimos gratidão pela pessoa que compartilha a nossa vida. Apreciamos profundamente a presença dela. Ficamos cheios de compaixão, gratidão e amor. Todos já tivemos momentos assim na vida. Nós nos sentimos gratos pela outra pessoa estar viva e ter estado ao nosso lado durante momentos muito difíceis. Sugiro que, quando sentir isso de novo, você usufrua esse momento.

Para realmente se beneficiar, retire-se para um lugar onde você possa se isolar. Vá para o seu quarto ou para um local tranquilo e mergulhe nesse sentimento de gratidão. Coloque então no papel seus sentimentos, sua gratidão, sua felicidade. Em meia ou uma página, expresse da melhor maneira o que está sentindo, ou grave numa fita, e guarde em seguida.

Esse momento de gratidão é um instante de iluminação, de plena consciência, de inteligência. É  uma  manifestação  que  vem  das  profundezas  da  sua  consciência.  Você  possui  essa compreensão dentro de si. Mas, quando você se zanga, sua gratidão e seu amor simplesmente parecem não estar presentes. Você se sente como se eles nunca tivessem existido e é por isso que precisa escrevê-los num papel ou gravá-los numa fita e guardá-los em segurança. De vezem quando, leia ou ouça novamente o que você expressou.

O Sutra do Coração, uma escritura que é entoada diariamente por muitos budistas, é a essência dos ensinamentos do Buda sobre a sabedoria. O que você escreveu é um Sutra do Coração porque ele saiu do seu coração. Ele é o seu Sutra do Coração.

Todos podemos aprender alguma coisa com a história da mulher que foi salva pelas cartas de amor que ela guardava numa caixa de biscoitos. Essas cartas saídas do coração foram a sua salvação. Seu salvador não veio de fora, veio de dentro. Você tem a capacidade de amar a outra pessoa, de sentir gratidão. Isso é uma bênção. Você sabe que tem a sorte de possuir um companheiro,  de ter a pessoa que você ama na sua vida. Por que deixar essa verdade ir embora? Ela está no seu coração. Entoe então seu Sutra do Coração todos os dias. Todas as vezes que você entra em contato com o amor e o apreço que existem em você, sinta de novo a gratidão e volte a valorizar a presença da outra pessoa.

Precisamos estar sozinhos para poder valorizar totalmente a presença da outra pessoa. Se estamos sempre juntos, nós nos habituamos à presença dela e nos esquecemos de apreciar sua beleza e sua bondade. Por isso, afaste-se de vez em quando por três ou sete dias. Afaste-se um pouco da pessoa para poder apreciá-la mais. Embora esteja fisicamente longe dela ela se torna mais  real  para você,  mais  concreta  do que,  quando vocês  estão constantemente juntos. Durante o período em que estiverem separados, você se lembrará do que ela tem de essencial e como é importante e preciosa para você.

Escreva ou crie então o seu próprio Sutra do Coração, ou mais de um, e conserve-o num lugar sagrado.  Procure  entoá-lo  com frequência,  porque,  se  a  raiva  vier  e  você  não  conseguir abraçá-la,  seu Sutra  do Coração será extremamente útil.  Pegue o papel  no qual  ele  está escrito,  inspire e expire profundamente e leia o Sutra.  Você começará imediatamente a se voltar para dentro de si mesmo e sofrerá muito menos. Quando ler seu Sutra do Coração, você saberá o que fazer e como reagir. Pode ser que neste momento, enquanto lê minha sugestão,você esteja achando complicado fazer isso. Mas é extremamente simples: deixe fluir o que está no seu coração num momento de gratidão e amor. Registre e guarde. Você vai descobrir o enorme benefício que esta prática trará.

Você ainda está na margem do sofrimento e da raiva. Por que não deixa essa margem e vai para a outra -  a margem da ausência da raiva,  da paz e da libertação? Ela é muito mais agradável. Por que você precisa passar várias horas, uma noite ou até mesmo dias sofrendo por causa da raiva? Existe um barco no qual você pode atravessar rapidamente para a outra margem. Esse barco é a prática de nos voltarmos para nós mesmos, para podermos examinar profundamente  nosso  sofrimento,  raiva  e depressão  e  sorrir  para  eles.  Ao  fazer  isso, dominamos nossa dor e atravessamos para a outra margem.

Não permaneça na margem em que você continua a ser vítima da raiva. A ausência da raiva está  presente  em você,  ela  é  possível.  Então,  simplesmente  atravesse  o rio  e  vá  para  a margem da ausência da raiva. É um lugar tranquilo, agradável e refrescante. Não se deixe tiranizar pela raiva. Livre-se, liberte-se. Atravesse com a ajuda de um mestre, de outros amigos que se dedicam à prática, e da sua própria prática. Conte com esses barcos para atravessar o rio e chegar ao outro lado.

Neste momento você pode estar na margem da confusão, da raiva ou da dúvida. Não fique aí,vá para o outro lado. Com sua prática de andar e respirar, sua prática de realizar um exame profundo e de entoar seu Sutra do Coração, você fará rapidamente a travessia. Talvez em poucos minutos.  Você tem o direito de ser  feliz.  Você tem o direito de sentir  compaixão e carinho.  A semente do despertar  está  em você. Através da prática, você pode transformar imediatamente essa semente numa flor. Você pode acabar com o seu sofrimento, porque a eficácia do dharma é imediata. É mais rápida do que aspirina.

Há ocasiões em que estamos zangados com alguém e tentamos fazer tudo que é possível para transformar nossa raiva, mas nada parece funcionar. Neste caso, o Buda propõe que demos um presente à outra pessoa. Parece infantil, mas é uma atitude extremamente eficaz. Estamos com  raiva dela, queremos magoá-la. Dar um presente a essa pessoa transforma esse sentimento na vontade de fazê-la feliz. Assim, quando você se zangar com uma pessoa, mande um presente para ela. Depois de o enviar, você deixará de sentir  raiva. É muito simples e sempre dá certo.

Mas não espere sentir  raiva para comprar  o presente.  Quando você sentir  muita  gratidão,quando sentir que ama muito a pessoa, compre imediatamente um presente. Mas não o  envie.Guarde-o. Você pode ter dois ou três presentes guardados em segredo na gaveta. Um dia,quando você se zangar, pegue um deles e mande entregar. Isso é extremamente eficaz. O Buda era muito esperto.

Quando você sente raiva, quer diminuir seu sofrimento. Esta é uma tendência natural. Existem muitas maneiras de sentir alívio, mas o maior alívio provém do entendimento. Quando existe a compreensão, a raiva irá embora por si mesma. Quando você entende a situação da outra pessoa, quando você compreende a natureza do sofrimento, a raiva desaparece, porque se transforma em compaixão.

O exame profundo é o remédio mais recomendado para a raiva. Se você parar e se dedicar a entender, você compreenderá as dificuldades da outra pessoa e o desejo mais profundo que ela  nunca  conseguiu  realizar.  Então,  você  sentirá  a  compaixão  surgir  em  você,  e  este sentimento, como já disse, é o antídoto da raiva. Se você deixar que a compaixão emane do seu coração, a chama da raiva se apagará imediatamente.

Quase todo o nosso sofrimento nasce porque nos vemos como seres separados. Se compreendermos que não existe separação, que a outra pessoa é você e você é a outra pessoa, a raiva desaparecerá.  

(Do livro “Aprendendo a lidar com a raiva” – Thich Nhat Hanh)

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Como Podemos Ajudar Nossos Líderes a Se Tornarem Melhores?

Pergunta: Como podemos ajudar nossos líderes se tornarem melhores?

Thich Nhat Hanh: Os nossos líderes têm boas sementes neles e também têm sementes negativas. Eles podem estar cercados por pessoas que não sabem como regar as boas sementes e que continuam a regar as sementes de medo, raiva, violência e ganância. É por isso que temos que encontrar maneiras de entrar em contato com nossos líderes políticos e ajudá-los. Protestar é um tipo de ajuda, mas deve ser feito com habilidade, por isso é visto como um ato de amor e não um ato de ódio.

Os líderes políticos e empresariais têm uma grande quantidade de energia e o desejo de satisfazer seus desejos. Alguns desses desejos podem ser muito saudáveis: o desejo de parar a poluição, pôr fim à desigualdade social, restaurar a paz, transformar e trazer a mudança para o mundo. Mas isso não significa que eles também não têm o desejo de serem poderosos, bem sucedidos e famosos. Então, podem haver vários desejos conflitantes em nossos líderes. Podemos ajudá-los a tomar consciência de suas motivações e ver como harmonizá-las. O caminho é ajudá-los a compreender a si mesmo.

Nossos líderes geralmente acreditam que eles entendem a si mesmos e o mundo, e que tudo que têm que fazer é agir. Mas isso não é verdade. Eles não têm entendido a eles mesmos o suficiente. Eles não entenderam o mundo o suficiente. Esta é uma realidade. Nenhum de nós entende perfeitamente a nós mesmos, nenhum de nós entende o mundo o suficiente. É bom para um praticante ser humilde o suficiente para reconhecer que tem de aprender mais sobre si mesmo e muito mais sobre o sofrimento e a situação do mundo.

Nós podemos ajudar nossos líderes para que não tenham tanta certeza de sua compreensão de si e do mundo. Você deve ser capaz de ouvi-los e usar a fala amorosa, a fim de ajudá-los a progredir no caminho da auto-compreensão e do entendimento da situação mundial. Quando eles agem, nós queremos que ajam no contexto de uma Sangha e sejam capaz de fazer uso de uma visão coletiva.

A prática de escutar profundamente a si mesmo e compreender-se bem, de ouvir o mundo e entender o seu sofrimento, é a mesma para todos, sejam eles praticantes individuais, líderes políticos e líderes empresariais. Há muitos empresários que querem fazer coisas boas, que querem usar suas empresas para promover maior igualdade social e bem-estar. Mas eles estão enfrentando uma série de dificuldades. Alguns deles têm que fazer concessões ou podem perder sua posição e sua carreira. Nossos líderes têm as suas próprias dificuldades. Não podemos simplesmente culpá-los pelos problemas do mundo. Temos que entendê-los antes que nós possamos ajudá-los.

Há muitas maneiras de nos aproximarmos de líderes. Todos nós, carpinteiros, mecânicos, jornalistas, escritores, cineastas, educadores, pais, advogados, enfermeiros, podemos escrever cartas, fazer chamadas telefônicas, carregar cartazes. Podemos nos expressar de forma a trazer mais consciência e ajudar a transformação de nossa consciência coletiva. Este é o trabalho na base, transformando a nossa maneira de pensar, ajudando a todos nós a ver as coisas com mais profundidade e clareza. Cada um de nós pode fazer isso em nossa vida diária. Isso vai contribuir muito para o despertar do mundo.

Nossos líderes políticos e líderes empresariais vão lucrar. Temos que falar com eles. Temos que brilhar a luz sobre eles. Mas antes disso temos que brilhar a luz em nós mesmos.

Pergunta: Dr. Martin Luther King, Jr. foi um líder com a capacidade e o conhecimento para realmente transformar o mundo em um lugar de paz e cooperação. Será que algum dia teremos um líder assim de novo?

Thich Nhat Hanh: Martin Luther King Jr. ainda está aqui. Há entre nós mais do que um Dr. King, há continuação. Mas temos que estar muito atentos a fim de sermos capazes de reconhecer a sua presença e oferecer nosso apoio e nossa ajuda. Muitas vezes, sentimos que precisamos de um líder fora de nós mesmos, um Buda, um Gandhi ou um Martin Luther King Jr., para mostrar o caminho. Mas temos o Buda dentro de nós. Temos Gandhi e Luther King dentro de nós também. Estamos interligados. Nós não precisamos esperar por alguma outra pessoa para ser a mudança que queremos ver no mundo.

Uma das maneiras pelas quais podemos ajudar é mostrar as pessoas que têm muito dinheiro e armas que eles podem ser verdadeiramente felizes. Há muitas pessoas que são poderosas e ricas, mas que sofrem profundamente. Elas acreditam que a felicidade não é possível sem dinheiro e poder. Esse tipo de pensamento é a própria raiz da guerra e da injustiça social. Se você puder dar a essas pessoas um sabor da verdadeira felicidade, elas serão capazes de mudar a sua maneira de pensar. Mas você não pode simplesmente mudar seu pensamento, conversando. Você tem que fazer outra coisa. Você tem que mostrar que é realmente feliz, mesmo se não tem um monte de dinheiro.

De acordo com o ensinamento do Buda, essas pessoas têm a semente da iluminação nelas também. Se conseguirmos tocar essa semente, elas vão abandonar a sua maneira de pensar, e vão servir à causa da paz. Desta forma, você ajuda a continuação de Martin Luther King Jr. no mundo.

(Do livro de Thich Nhat Hanh - "Answers from the heart” - Tradução Leonardo Dobbin)

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Eu sou o mesmo que ontem?

Tenho uma foto de mim mesmo quando eu era um garoto de dezesseis anos. É uma fotografia de mim? Não tenho certeza. Quem é esse menino na foto? É a mesma pessoa que eu... ou é outra pessoa? Olhe profundamente antes de você responder.

Há muitas pessoas que dizem que o rapaz da fotografia e eu somos os mesmos. Se aquele menino é o mesmo que eu, por que se parece tão diferente? O rapaz ainda está vivo ou já morreu? Ele não é o mesmo que eu e também não é diferente. Algumas pessoas olham essa foto e acham que o menino já não está por aqui.

Uma pessoa é feita de corpo, sentimentos, percepções, formações mentais e consciência e tudo isso mudou em mim desde que a foto foi tirada. O corpo do menino na fotografia não é o mesmo que o meu, agora que estou nos meus setenta anos. Os sentimentos são diferentes e as percepções são muito diferentes. É como se eu fosse uma pessoa completamente diferente daquele garoto, mas se não existisse o rapaz na foto, então eu não existiria também. Eu sou uma continuação como a chuva é a continuação da nuvem.

Quando você olhar profundamente para a fotografia, já me verá como um homem velho. Você não precisará esperar 55 anos. Quando o limoeiro está em flor, você pode não ver qualquer fruta, mas se olhar bem fundo poderá ver que a fruta já está lá. Você só precisa de mais uma condição para trazer os limões: tempo. Limões já estão lá na árvore de limão. Olhe para a árvore e você só verá galhos, folhas e flores. Mas se o limoeiro tiver tempo se expressará em limões.

Se você vier na França em abril, não verá qualquer girassol. Mas em julho, a área ao redor de Plum Village tem muitos girassóis. Onde estão os girassóis em abril? Se você chegar a Plum Village em abril e olhar profundamente, verá os girassóis.

Os agricultores lavraram a terra e plantaram as sementes, e as flores estão esperando mais uma condição para se mostrarem. Estão esperando pelo calor de maio e junho. Os girassóis estão lá, mas eles não se manifestaram totalmente.

Olhe profundamente para uma caixa de fósforos. Você vê uma chama nele? Se fizer isso, você já é iluminado. Quando olhamos profundamente para uma caixa de fósforos, vemos que a chama está lá. Precisa somente do movimento dos dedos de alguém, para se manifestar. Dizemos: "chama querida, sei que você está presente. Agora vou ajudá-la a se expressar."

A chama esteve sempre na caixa de fósforos e também no ar. Se não houvesse nenhum oxigênio, a chama não poderia se expressar. Se você acendeu uma vela e em seguida, cobriu a chama com algo, a chama se apagou por falta de oxigênio. A sobrevivência da chama depende do oxigênio. Não podemos dizer que a chama está dentro da caixa de fósforos ou que a chama está fora da caixa de fósforos. A chama está em toda parte no espaço, tempo e consciência. A chama está em toda parte, esperando para se manifestar, e nós somos uma das condições que ajudarão a chama a se manifestar. No entanto, se soprarmos a chama vamos ajudá-la a parar de se mostrar. Nossa respiração, quando sopramos a chama, é uma condição que impede a manifestação da chama na sua forma de chama.

Podemos acender duas velas a partir dos fósforos e em seguida soprar a chama dos fósforos. Você acha que a chama do fósforo morreu? A chama não tem a natureza de nascer ou morrer.  A questão é, a chama nas duas velas é a mesma chama ou são duas chamas diferentes? Não é a mesma e não é diferente. Agora outra pergunta: a chama dos fósforos morreu? Está morta e não está morta. Sua natureza é de não morrer e não nascer.

Se deixarmos a vela queimar por uma hora, a chama vai permanecer a mesma ou se tornar outra chama? O pavio, a cera e o oxigênio estão sempre mudando. A parte do pavio e a cera que está queimando sempre estão se transformando. Se estas coisas se transformam, a chama deve mudar também. Então, a chama não é a mesma, mas também não é diferente.

Temos uma ideia de que ser é o oposto de não-ser. Essas ideias são não mais sólidas do que as ideias de direita e esquerda. Olhe para uma caneta. Podemos remover totalmente seu lado direito? Se usarmos uma faca e cortarmos fora metade da caneta, a parte que permanece ainda tem um lado direito. Partidos políticos de direita e esquerda são imortais — não podem ser removidos. Enquanto houver uma ala direita, vai haver uma ala esquerda.

Portanto, aqueles à esquerda do espectro político devem desejar a presença eterna do lado direito. Se removermos a direita, temos que remover a esquerda ao mesmo tempo. O Buda disse: "isso é porque aquilo é. Isto se manifesta porque aquilo se manifestou." Este é o ensinamento do Buda relativo à criação do mundo. Chama-se o ensinamento no co-surgimento. A chama está lá porque os fósforos estão lá. Se os fósforos não estivessem lá, a chama não estaria também.

De onde é que a chama veio? Qual é a sua origem? Devemos investigar profundamente esta questão. Você precisa sentar-se posição de lótus para encontrar a resposta? Tenho certeza que a resposta já existe em você. Só está esperando mais uma condição para se manifestar.

O Buda disse que todo mundo tem a natureza de Buda em si. Natureza de Buda é a capacidade de compreender e tocar nossa natureza real. A resposta já está em você. Um professor não pode dar a resposta. Um professor pode ajudá-lo a estar em contato com a natureza desperta, a grande compreensão e compaixão em você. O Buda convida-o para estar em contato com a sabedoria que já está em você.

Muitos de nós perguntam: "onde você vai quando morrer? O que acontece quando morremos?" Temos amigos que perderam alguém que amam e eles perguntam: "onde está minha amada? Onde ela foi agora?" Os filósofos perguntam: "de onde vem o homem? De onde vem o cosmos ou o mundo?"

Quando olhamos profundamente, vemos que, quando todas as condições são suficientes, algo se manifestará. O que se manifesta, não vem de nenhum lugar. E quando uma manifestação cessa, não vai para nenhum lugar.
  
(Do livro “No Death, No Fear” – Thich Nhat Hanh – traduzido por Leonardo Dobbin)

terça-feira, 14 de julho de 2015

Meditação Sobre o Eu

Sentado confortavelmente, olhos cerrados e a mente relaxada, procure responder as seguintes questões:

Quem sou eu? 
Quem as pessoas pensam que sou?
Por que eu sou assim? 
O que ou quem me influenciou para que eu fosse deste jeito? 
O que eu não gosto em mim?
Quem desperta o pior em mim?
O que provoca isto? 
Por quê?
Como eu seria se não sentisse isto?
Quem está dentro de mim?
Pais, irmãos, família, amigos, namorado, esposo, animais de estimação, inimigos, quem?
Eu seria diferente se esta pessoa não estivesse em mim?
Qual é o meu amor mais incondicional? 
O que desperta o melhor em mim?

A pessoa que eu não gosto está em mim pela raiva que eu sinto, pela emoção que sinto quando a vejo. As coisas que eu preciso para viver fazem parte de mim, o ar que respiro, as pessoas que convivo, as coisas que falo e vejo, o que eu estudo, meus alimentos, os vegetais e animais que como estão em mim. Se não precisasse comer este tipo de comida meu corpo seria diferente, se além disso, respirasse melhor, vivesse uma vida diferente, minhas doenças seriam outras, minhas preocupações seriam outras, o que preciso seria de outra forma e eu seria diferente. Até as idéias originais que eu tenho, eu só posso tê-las depois de alguém ou de algo ter me levado até aquela conclusão. 

Tudo o que sou depende de outras coisas, então o que é o EU? Quem sou eu? Podemos concluir que não somos nada ou que somos tudo, e ambos estão corretos segundo a visão Budista. Somos de tudo um pouquinho e nada, isolados. Um pouquinho de cada pessoa, um pouquinho de cada coisa que comemos, usamos, vestimos, vemos e aprendemos. E então devemos ter respeito e compaixão por todas as pessoas e coisas que nos formam, pois sem elas não seríamos o que somos, e certamente, estas pessoas que formaram o nosso eu, estão tão perdidas e sofrendo quanto nós e não sabem exatamente o que querem, não sabem como conseguir o que querem e acabam, assim como nós, fazendo coisas que machucam a si mesmas e aos outros. Sendo assim, devemos ter compaixão por todas as pessoas, todos os seres, como temos pelas pessoas que cuidam de nós, pois indiretamente, todos influenciamos uns aos outros. 

Ao término da meditação podemos recitar o mantra do Buddha Akshobhya, um dos cinco Budas da Sabedoria, no intuito de superação das paixões, como raiva e ódio em relação a outros seres.

NAMO RATNA TRAYAYA/ OM KAMKANI KAMKANI/ ROCHANI ROCHANI/ TROTANI TROTANI/ TRĀSANI TRĀSANI/ PRATIHANA PRATIHANA/ SARVA KARMA PARAM PARĀNIME SARVA SADVA NAÑCHA SVĀHĀ

Durante toda a semana que segue vamos nos dedicar a perceber quem fez um pedacinho do meu eu, e dedicar compaixão para estes seres.

terça-feira, 7 de julho de 2015

A Ação Correta

Ação Correta significa Ação Correta do corpo. É a prática de entrar em contato com o amor e evitar prejudicar os outros, praticando a não-violência consigo mesmo e com outras pessoas. A base da Ação Correta é agir sempre com atenção plena.

A Ação Correta está ligada a quatro treinamentos (o primeiro, o segundo, o terceiro e o quinto) dentre os Cinco Treinamentos da Atenção Plena.  O Primeiro versa sobre a reverência pela vida: "Cônscio do sofrimento causado pela destruição da vida, eu me comprometo a cultivar a compaixão e a aprender formas de proteger as vidas das pessoas, animais, plantas e minerais. Estou decidido a não matar, não deixar que outros matem, e não dar apoio a qualquer ato desta natureza, nem em meus pensamentos nem em meu estilo de vida."

Nós matamos todos os dias em função da forma pela qual comemos, bebemos e usamos a terra, o ar e a água. Achamos que não matamos, mas não é verdade. A Ação Correta nos ajuda a ter consciência disto, e a contribuir para o fim da matança, salvando vidas.

Segundo Treinamento da Atenção Plena tem a ver com generosidade: "Cônscio do sofrimento causado pela exploração, injustiça social, roubo e opressão, comprometo-me a cultivar a bondade e a aprender formas de contribuir para o bem estar de pessoas, animais, plantas e minerais. Praticarei a generosidade ao compartilhar meu tempo, energia e recursos materiais com aqueles que realmente necessitem. Estou decidido a não roubar nem possuir qualquer coisa que deva pertencer a outra pessoa. Respeitarei a propriedade alheia, mas impedirei que haja o lucro de alguns com a dor humana ou com o sofrimento das outras espécies deste planeta."

Este aprendizado nos ensina a não tocar no que não é nosso e a não explorar os outros. Ele também nos incentiva a viver de forma a contribuir para a justiça e o bem estar sociais. Temos que aprender a viver com simplicidade, e não tentarmos nos apossar de mais do que nos cabe. Quando empreendemos qualquer ato que promova a justiça social, esta é uma Ação Correta.

Terceiro Treinamento da Atenção Plena lida com responsabilidade sexual. "Cônscio do sofrimento causado pela má conduta sexual, comprometo-me a cultivar a responsabilidade e a aprender meios de proteger a segurança e a integridade de indivíduos, casais, famílias e da sociedade. Estou decidido a não ter relações sexuais sem amor e sem compromisso. Para preservar a minha felicidade e a dos outros, respeitarei os compromissos assumidos por mim e também os compromissos assumidos pelos outros. Farei tudo o que puder para proteger as crianças do abuso sexual e impedir que casais e famílias se separem devido à má conduta sexual."

A solidão não pode ser aliviada pela junção de dois corpos, a menos que também haja boa comunicação, compreensão e bondade. A Atenção Plena Correta nos ajuda a proteger os outros e a nós mesmos, inclusive as crianças, de um sofrimento maior. O mau comportamento sexual gera enorme sofrimento. Para proteger a integridade das famílias e indivíduos, agiremos sempre de forma responsável e encorajaremos os outros a fazer o mesmo. Com este aprendizado, protegeremos a nós, os que nos cercam, e toda a espécie humana, inclusive as crianças. Quando a Atenção Plena Correta irradia sua luz em nossa vida cotidiana, conseguimos manter esta prática de forma contínua.

A má conduta sexual já separou inúmeras famílias. Muito sofrimento é gerado porque as pessoas não praticam a responsabilidade sexual. Uma criança vítima de abuso sexual sofrerá por toda a sua vida. Aqueles que passaram por esta experiência podem se tornar bodhisattvas, ajudando a muitas crianças. Nossa mente amorosa pode transformar nossa dor, tornando-nos capazes de compartilhar o que aprendemos com outros. Esta é a Ação Correta, que liberta tanto a nós quanto os que nos cercam. Quando tentamos ajudar os que estão ao nosso redor, ajudamos também a nós mesmos.

Quinto Treinamento da Atenção Plena nos incentiva a comer, beber e consumir conscientemente. Ele está vinculado às Quatro Nobres Verdades e a todos os elementos do Nobre Caminho Óctuplo, em especial à Ação Correta: "Cônscio do sofrimento causado pelo consumo inconsciente e desatento, comprometo-me a cultivar a boa saúde, tanto física como mental, em mim, em minha família e na sociedade, tendo consciência do que irei comer, beber e consumir. Comprometo-me a ingerir apenas coisas capazes de preservar a paz, o bem-estar e a alegria de meu corpo e minha consciência, bem como do corpo e da consciência da família e sociedade. Tenho a firme intenção de não usar álcool ou outros intoxicantes, nem ingerir alimentos ou praticar diversões que contenham toxinas, como por exemplo certos programas de TV, revistas, livros, filmes e conversas. Sei que ao contaminar meu corpo ou minha consciência com estes venenos estou traindo meus ancestrais, meus pais, minha sociedade e as gerações futuras. Comprometo-me a trabalhar para transformar a violência, o medo, a raiva e a confusão existentes dentro de mim e na sociedade, praticando uma dieta que ajuda a mim e também à sociedade. Compreendo que uma boa dieta é fundamental para a transformação do indivíduo e da sociedade."

Ação Correta significa fornecer ao corpo e à mente apenas nutrientes sadios e seguros. Ao comer e beber de modo consciente, evitamos tudo o que possa gerar toxinas, bem como álcool ou drogas, tanto em nível individual quanto familiar e social. Vamos consumir sempre com consciência, para que a vida se torne melhor para todos. Praticaremos o consumo consciente para proteger nosso corpo e nossa mente da ingestão de toxinas. Certos programas de televisão, livros, revistas e conversações têm o dom de introduzir a violência, o medo e o desespero em nossas consciências. Precisamos praticar o consumo consciente para proteger o corpo, a mente, e também a família e a sociedade.

Quando nos propomos a não beber álcool, estamos nos protegendo mas também estamos protegendo a família e a sociedade. Uma mulher de Londres me disse: "Venho bebendo dois copos de vinho por dia há mais de vinte anos, e isso nunca me fez mal. Por que deveria abandonar este hábito?" Eu respondi: "É verdade que dois copos por dia não lhe fazem mal, mas como sabe que isso não prejudica seus filhos? Você pode não ter o gene do alcoolismo, mas talvez um dos seus filhos o tenha. Se abandonar o vinho fará um favor não só a si mesma, mas aos seus filhos e à sociedade." Ela compreendeu, e na manhã seguinte recebeu formalmente os Cinco Treinamentos da Atenção Plena. Esse é o trabalho de um bodhisattva, fazer as coisas não por si mesmo, mas por todas as outras pessoas.

O Ministério da Saúde francês aconselha as pessoas a não beber demais. Eles anunciam na televisão: "Um copo não faz mal, mas três copos são um convite para o desastre." Eles querem que as pessoas sejam moderadas ao beber. Mas se o primeiro copo não for bebido, não haverá o terceiro. Evitar o primeiro copo é a melhor proteção que existe, porque você protege a si mesmo e todos nós ao mesmo tempo. Quando consumimos conscientemente, estamos protegendo nosso corpo e mente, bem como o corpo e a mente da família e da sociedade. Sem o Quinto Treinamento da Atenção Plena, como poderemos melhorar nossa sociedade? Quanto mais consumirmos, mais sofreremos, e mais faremos os outros sofrerem. O consumo consciente parece ser a única forma de sair dessa situação, fazendo cessar a destruição de nossos corpos,. nossas mentes bem como do corpo e da mente sociais.

Observando com profundidade, enxergamos a natureza intercambiável dos Cinco Treinamentos da Atenção Plena e do Nobre Caminho Óctuplo. Usamos a Atenção Plena Correta para verificar se nossa comida, bebida e consumo estão de acordo com a Ação Correta. Tanto a Compreensão Correta quanto o Pensamento Correto e a Fala Correta precisam estar presentes para que possamos praticar o Quinto Treinamento da Atenção Plena. Os Cinco Treinamentos da Atenção Plena são interpenetrados por todos os elementos do Nobre Caminho Óctuplo, em especial a Ação Correta.

A Ação Correta se baseia na Compreensão Correta, no Pensamento Correto e na Fala Correta, e depende do Meio de Vida Correto. Aqueles que ganham o seu sustento fabricando armas, tirando a oportunidade de os outros viverem, destruindo o meio ambiente, explorando a natureza ou as pessoas, ou fabricando coisas que produzem toxinas, talvez ganhem muito dinheiro, mas estão praticando o meio de vida errôneo. Temos que estar conscientes para podermos evitar as ações incorretas. Se não tivermos a Compreensão Correta, o nosso esforço pode estar produzindo resultados não desejados.

Um mestre experiente só precisa observar o praticante caminhando ou tocando um sino para saber quanto tempo ele está na prática do caminho. O mestre observa a Ação Correta do praticante e vê todas as outras etapas que estão contidas nela. Assim também, se observarmos com atenção uma pessoa em relação a uma etapa do caminho, podemos avaliar a sua realização em relação às demais etapas.

Existem muitas coisas que podem ser feitas para se praticar a Ação Correta. Por exemplo, proteger vidas, praticar a generosidade, comportar-se de forma responsável e consumir conscientemente. A base da Ação Correta é a Atenção Plena Correta.

(Do livro “A Essência dos ensinamentos de Buda” – Thich Nhat Hanh)

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Cuidando da Própria Raiva

No momento em que você sente raiva, você tem a tendência de acreditar que seu sentimento foi criado por outra pessoa. Você culpa esta pessoa por todo o seu sofrimento. Mas, ao fazer um exame profundo, você talvez perceba que a semente da raiva que existe em você é a principal causa do seu sofrimento. Muitas outras pessoas, quando confrontadas com a mesma situação, não ficariam com a raiva com que você fica. Elas ouvem as mesmas palavras, presenciam a mesma situação, mas são capazes de permanecer mais calmas, sem se deixarem afetar tanto pelas circunstâncias. Por que você se enraivece com tanta facilidade? Talvez isso aconteça porque a semente da raiva é muito forte, e como você não praticou os métodos destinados a cuidar bem da raiva, a semente dela pode ter sido rega da no passado com excessiva freqüência.

Todos temos uma semente da raiva nas profundezas da nossa consciência. No entanto, em alguns de nós, esta semente é maior do que nossas outras sementes como a do amor e a da compaixão. A semente da raiva pode ser maior por não ter sido cuidada através da nossa prática no passado. Por isso, como já disse, quando começamos a cultivar a energia da plena consciência, a primeira coisa que percebemos com clareza é que a principal causa do nosso sofrimento, da nossa aflição, não é a outra pessoa, e sim a semente da raiva que existe em nós. Nesse momento, paramos de considerar a outra pessoa culpada do nosso sofrimento. Compreendemos que ela é apenas uma causa secundária. Você sente um enorme alívio ao descobrir isso e começa a se sentir muito melhor. Mas a outra pessoa pode ainda estar sofrendo porque não aprendeu a cuidar da própria raiva. Quando isso acontece, está na hora de ajudar o outro.

Quando não sabemos lidar com o nosso sofrimento, deixamos que ele se derrame sobre as pessoas que estão em volta. Quando você sofre, faz com que as pessoas ao seu redor também sofram. Isso é bastante natural. É por esse motivo que temos que aprender a lidar com o nosso sofrimento, para não o espalharmos em torno de nós. Quando você é o chefe da família, por exemplo, você sabe que o bem-estar dos seus familiares é extremamente importante. Como você tem compaixão, não permite que seu sofrimento afete os que estão à sua volta. Você pratica e aprende a lidar com seu sofrimento porque sabe que nem ele nem sua felicidade são uma questão individual.

Quando você está com raiva e não quer lidar com ela, fica sem defesa, sofre, e também faz as pessoas à sua volta sofrerem. Sua primeira reação é achar que a pessoa que causou a raiva merece ser punida. Tem vontade de castigá-la porque ela fez você sofrer. Mas, depois de praticar durante dez ou quinze minutos a respiração, a meditação andando e o olhar consciente, você compreende que ela precisa de ajuda e não de punição. Esta é uma percepção justa. Essa pessoa pode ser alguém muito próximo a você sua esposa, seu marido, algum dos filhos. Se você não ajudá-la, quem o fará?

Depois então de acolher e abraçar a raiva, sentindo-se muito melhor, você nota que a outra pessoa continua a sofrer. Esta percepção gera em você um movimento em direção a ela, num grande desejo de ajudá-la. Trata-se de uma forma completamente diferente de pensar e de sentir, pois o desejo de punir simplesmente desapareceu. A raiva se transformou em compaixão.

A prática da plena consciência nos torna mais atentos e perspicazes. Esta capacidade de discernimento é fruto da prática que pode nos ajudar a perdoar e a amar. Num período de quinze minutos, ou de meia hora no máximo, a prática da plena consciência, da concentração e do discernimento é capaz de libertar você da raiva, enchendo seu ser de amor.

Quando você entende o sofrimento da outra pessoa, você é capaz de transformar seu desejo de punir, passando apenas a querer ajudá-la. Quando isso acontece, você sabe que sua prática teve êxito. Você é um bom jardineiro.

Dentro de cada um de nós existe um jardim, e cada praticante precisa voltar para dentro de si mesmo e cuidar dele. Talvez no passado você tenha se dado conta disso. Agora, então, precisa saber o que está acontecendo no seu jardim e procurar colocar tudo em ordem. Restaure a beleza e restabeleça a harmonia do seu jardim. Muitas pessoas se encantarão com seu jardim se ele for bem cuidado.

Quando éramos crianças, aprendemos a respirar, a andar, sentar, comer e falar. Fizemos tudo isso instintivamente sem pensar. O que eu proponho agora é que tomemos consciência dos nossos atos para renascermos espiritualmente. Para isso, temos que aprender a respirar de novo, de um modo consciente. Aprender a andar de novo, conscientemente. Aprender a ouvir de novo, com consciência e compaixão. Aprender a falar de novo, com a linguagem do amor, para honrar nosso compromisso original. Dizer a nossa verdade, com respeito e suavidade, e acolher a do outro: "Meu amor, estou sofrendo. Estou com raiva. Quero que você saiba disso".

Esta frase expressa a fidelidade ao nosso compromisso. Meu amor, estou fazendo o melhor que posso. Estou cuidando da minha raiva. Para o meu bem e para o seu. Não quero explodir, destruir a mim e a você. Estou fazendo o melhor que posso." Esta lealdade provocará respeito e confiança na outra pessoa. E finalmente diremos: "Meu amor, preciso da sua ajuda." Esta é uma declaração muito poderosa, porque, quando estamos com raiva, geralmente temos a tendência de dizer: "Não preciso de você, não quero te ver pela frente." Se você puder dizer as três frases anteriores com sinceridade, do fundo do coração, o outro passará por uma transformação. Não duvide dos efeitos dessa prática.

Com o seu comportamento, você consegue influenciar a outra pessoa e incentivá-la a começar a praticar. Ela pensará e sentirá: "Meu parceiro está sendo fiel falando a verdade. Ele está de fato tentando fazer o melhor possível. Preciso fazer a mesma coisa." Isso significa que, quando cuidamos bem de nós mesmos, estamos cuidando bem da pessoa que amamos. O amor por nós mesmos é a base da nossa capacidade de amar o outro. Se não cuidamos bem de nós mesmos, se não estamos felizes e tranqüilos, não podemos fazer a felicidade de mais ninguém. Não podemos ajudar nossos seres queridos, não podemos amá-los. Nossa capacidade de amar uma outra pessoa depende totalmente da nossa capacidade de amar e cuidar bem de nós mesmos.

Nossos ferimentos podem ter sido causados pelo nosso pai ou nossa mãe. Eles repassaram o que sofreram quando crianças. Como não sabiam a forma de curar as feridas da infância, eles as transmitiram para nós. Se não soubermos como transformar e curar nossos próprios ferimentos, vamos transmiti-los para nossos filhos e netos. É por isso que temos que voltar à criança ferida que existe dentro de nós para ajudá-la a ficar curada.

Às vezes, essa criança precisa de toda a nossa atenção. Ela pode emergir das profundezas da nossa consciência pedindo atenção. Se você estiver consciente, ouvirá a voz dela pedindo ajuda. Quando isso acontece, é hora de desligar-se de tudo em torno e voltar-se para dentro, acolhendo e abraçando carinhosamente a criança ferida dentro de você. Respire conscientemente dizendo: "Ao inspirar o ar, volto-me para minha criança ferida; ao soltar o ar, cuido amorosamente da minha criança ferida." Você precisa praticar e se voltar para a sua criança ferida todos os dias, abraçando-a com carinho, falando com ela. E você também pode escrever uma carta para ela dizendo que reconhece sua presença e fará tudo que estiver ao seu alcance para curar seus ferimentos.


(Do livro “Aprendendo a lidar com a raiva”  de Thich Nhat Hanh)
Texto publicado pela Sanga Virtual: http://sangavirtual.blogspot.com

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Destemor

A maioria de nós experimenta uma vida cheia de momentos maravilhosos e momentos difíceis. Mas para muitos de nós, mesmo quando estamos mais alegres, há medo por trás de nossa alegria. Tememos que este momento termine, que não conseguiremos o que precisamos, que perderemos o que amamos, ou que não estaremos seguros. Muitas vezes, nosso maior medo é saber que um dia os nossos corpos pararão de funcionar. Então, mesmo quando estamos rodeados de todas as condições para a felicidade, nossa alegria não está completa.

Pensamos que, para sermos mais felizes, devemos afastar ou ignorar o nosso medo. Não nos sentimos à vontade quando pensamos nas coisas que nos assustam, então negamos nosso medo. "Oh, não, não quero pensar nisso." Tentamos ignorar o nosso medo, mas ele ainda está presente.

A única maneira de aliviar o nosso medo e ser feliz é reconhecer nosso medo e olhar profundamente para sua fonte. Em vez de tentar fugir do nosso medo, podemos convidá-lo até nossa consciência e olhar claramente e profundamente.

Estamos com medo de coisas fora de nós mesmos que não podemos controlar. Nos preocupamos em ficarmos doentes, com o envelhecimento e em perder as coisas que valorizamos mais. Tentamos segurar fortemente as coisas que nos interessam — as nossas posições, nossas propriedades, nossos entes queridos. Mas segurar firmemente não alivia nosso medo. Eventualmente, um dia, teremos que nos esquecer de todos eles. Nós não podemos levá-los conosco.

Podemos pensar que se ignorarmos nossos medos, eles vão embora. Mas se nós enterramos preocupações e ansiedades em nossa consciência, elas continuam a nos afetar e a nos trazer mais tristeza. Temos muito medo de ficar sem poder. Mas nós temos o poder de olhar profundamente para os nossos medos, e então o medo não poderá nos controlar. Podemos transformar o nosso medo. A prática de viver plenamente o momento presente — o que chamamos de mindfulness — pode nos dar a coragem para enfrentar nossos medos e não sermos empurrados e puxados por eles. Ser consciente significa olhar profundamente, para tocar a nossa verdadeira natureza de interser e reconhecer que nada está perdido.

Um dia, durante a guerra do Vietnã, eu estava sentado em um aeródromo vazio no planalto do Vietnã. Estava à espera de um avião para ir para o norte para estudar uma situação de inundação e ajudar a trazer alívio para as vítimas das enchentes. A situação era urgente, então eu tive que ir em um avião militar que era geralmente usado para transportar coisas como roupas e cobertores. Eu estava sentado sozinho no aeroporto esperando o avião quando um oficial americano veio até mim. Ele também estava esperando o avião dele. Foi durante a guerra, e havia apenas nós dois  no campo de pouso.

Eu olhei para ele e vi que ele era jovem. Imediatamente, eu tive muita compaixão por ele. Porque ele teve que vir aqui para matar ou ser morto? Então, por compaixão, eu disse, "você deve ter muito medo dos vietcongs." Os vietcongs eram guerrilha comunista vietnamita. Infelizmente, eu não fui muito habilidoso, e o que eu disse regou a semente do medo nele. Ele tocou imediatamente sua arma e me perguntou, "Você é um Vietcong?"

Antes de ir para o Vietnã, oficiais do exército dos EUA tinham aprendido que todos no Vietnã poderiam ser um vietcong, e o medo habitava cada soldado americano. Cada criança, cada monge, poderia ser um agente da guerrilha. Os soldados tinham sido educados assim, e eles viam inimigos em toda parte. Tentei expressar a minha solidariedade para com o soldado, mas assim que  tinha ouvido a palavra Vietcong ele tinha sido esmagado por seu medo e puxou da arma.

Eu sabia que tinha que ficar muito calmo. Eu pratiquei inspiração e expiração profunda e então disse, "Não, eu estou esperando meu avião para ir para Danang para estudar as inundações e ver como posso ajudar." Tive muita simpatia por ele, e isso ficou claro através de minha voz. Enquanto conversávamos, eu fui capaz de comunicar que eu acreditava que a guerra tinha criado uma série de vítimas, não só vietnamitas, mas também americanas. O soldado se acalmou também, e fomos capazes de falar. Eu estava a salvo, porque eu tive suficiente lucidez e calma.

Se eu tivesse agido por medo, ele teria atirado em mim devido ao seu medo. Então não acho que perigos vêm só de fora. Eles vêm de dentro. Se não reconhecermos e olharmos profundamente para nossos próprios medos, podemos criar perigos e acidentes para nós.

Todos nós experimentamos o medo, mas se pudermos olhar profundamente para ele, seremos capazes de nos libertar de suas garras e tocar a alegria. O medo nos mantém focado no passado ou preocupados com o futuro. Se pudermos reconhecer nosso medo, poderemos perceber que exatamente agora estamos bem. Agora, hoje, ainda estamos vivos, e nossos corpos estão trabalhando maravilhosamente. Nossos olhos podem ainda ver o lindo céu. Nossos ouvidos ainda podem ouvir as vozes de nossos entes queridos...

A primeira parte de olhar para o nosso medo é apenas convidá-lo para nossa consciência sem julgamento. Só reconhecemos gentilmente que ele está presente. Isto já traz muito alívio. Em seguida, uma vez que o nosso medo se acalme, podemos abraçá-lo com ternura e olhar profundamente para suas raízes, suas fontes. Compreender as origens de nossas ansiedades e medos nos ajudará a nos soltar deles. Nosso medo vem de algo que está acontecendo agora ou é um velho medo, um medo de quando éramos pequenos, que nos mantivemos dentro de nós?

Quando praticamos convidar todos os nossos medos para virem à tona, tornamo-nos conscientes de que ainda estamos vivos, que ainda temos muitas coisas para valorizar e desfrutar. Se não estamos ocupados empurrando para baixo e gerenciando nosso medo, nós podemos desfrutar do sol, do nevoeiro, do ar e da água. Se você pode olhar profundamente para seu medo e ter uma visão clara dele, em seguida, você realmente pode viver uma vida que vale a pena.

Nosso maior medo é que quando morrermos nos tornaremos nada. Para estar livre do medo, devemos olhar profundamente para a dimensão última e ver a nossa verdadeira natureza de não-nascimento e não morte. Precisamos nos libertar dessas idéias que nós somos apenas nossos corpos, que morrem. Quando entendemos que nós somos mais que nossos corpos físicos, que não viemos do nada e não desaparecemos no nada, nos libertaremos do medo.

O Buda era um ser humano, e ele também conhecia o medo. Mas como ele passou cada dia praticando mindfulness e olhando atentamente seu medo, quando confrontado com o desconhecido, ele era capaz de enfrentá-lo com calma e em paz.

Há uma história sobre um vez que o Buda estava andando e Angulimala, um notório assassino em série, veio em direção a ele. Angulimala gritou para o Buda parar, mas o Buda continuou andando devagar e com calma. Angulimala o alcançou e exigiu saber por que ele não tinha parado. O Buda respondeu: "Angulimala, parei há muito tempo. É você quem não parou." Ele passou a explicar, "Eu parei de cometer atos que causam sofrimento a outros seres vivos. Todos os seres vivos querem viver. Todos temem a morte. Devemos cultivar um coração de compaixão e proteger as vidas de todos os seres." Assustado, Angulimala pediu para saber mais. No final da conversa, Angulimala, jurou nunca mais cometer atos violentos e decidiu se tornar um monge.

Como poderia o Buda permanecer tão calmo e relaxado quando confrontado com um assassino? Este é um exemplo extremo, mas cada um de nós enfrenta nossos medos de uma maneira ou de outra, todos os dias. Uma prática diária de mindfulness pode ser de grande ajuda. Começando com nossa respiração, começando com consciência, somos capazes de conhecer o que vem no nosso caminho.

Coragem não é apenas possível, é a derradeira alegria. Quando você toca o destemor, você está livre. Se eu estou em um avião e o piloto anuncia que o avião está prestes a falhar, vou praticar respiração consciente. Se você receber más notícias, espero que você vá fazer o mesmo. Mas não espere por um momento crítico chegar para você começar a praticar a transformar o seu medo e viver conscientemente. Ninguém pode lhe dar coragem. Mesmo se o Buda estivesse sentado bem aqui ao seu lado, ele não poderia dar isso a você. Você tem que praticar e realizar você mesmo. Se você fez da prática de mindfulness um hábito, quando surgirem dificuldades, você saberá o que fazer.

(Do livro de Thich Nhat Hanh - "Fear” - Tradução Leonardo Dobbin)