sexta-feira, 27 de março de 2015

Cultivando a Liberdade

Para mim, não há felicidade sem liberdade e a liberdade não nos é dada por nenhuma pessoa; temos que cultivá-la por nós mesmos. Vou compartilhar com vocês como podemos conseguir uma maior liberdade para nós mesmos. Durante o tempo em que nos sentarmos, andarrmos, comermos ou trabarlhamos, cultivaremos a nossa liberdade. A liberdade é o que praticamos todos os dias. Não importa como ou onde você se encontre, se você tem liberdade, está feliz.

Eu tenho muitos amigos que passaram algum tempo em campos de trabalho forçado e porque sabiam como praticar, não sofreram tanto. Na verdade, eles cresceram em suas vidas espirituais, pelo que estou muito orgulhoso deles.

Por liberdade quero dizer liberdade das aflições, da ira e do desespero. Se você tem raiva em você, tem que transformá-la, a fim de obter a sua liberdade de volta. Se houver desespero em você, é preciso reconhecer esta energia e não a deixar oprimi-lo. Você tem que praticar, de tal maneira que transforme sua energia do desespero e atinja a liberdade que você merece, a liberdade do desespero.

Você pode praticar a liberdade a cada momento de sua vida diária. Cada passo que você dá pode ajudá-lo a recuperar sua liberdade. Cada respiração que você dá pode ajudá-lo a desenvolver e cultivar a sua liberdade. Quando você comer, coma como uma pessoa livre. Quando andar, ande como uma pessoa livre. Quando respirar, respire como uma pessoa livre. Isso é possível em qualquer lugar.

Ao cultivar a liberdade para si mesmo, você vai ser capaz de ajudar as pessoas com quem você vive. Mesmo morando no mesmo lugar, com as mesmas condições físicas e materiais, se você pratica, será uma pessoa muito mais livre, uma pessoa mais sólida. Observando a maneira que você anda, a maneira como se senta, e a maneira como come, as pessoas vão ficar impressionadas. Elas vão ver que a alegria e a felicidade são possíveis para você e vão querer ser como você, porque você é o seu próprio mestre, não é mais uma vítima da raiva, da frustração e do desespero. A prática que tenho seguido como um monge budista é a prática da liberdade. Quando eu me tornei um noviço, meu professor me deu um pequeno livro intitulado "Entrando na Liberdade: Um Manual para um Noviço".

Ser capaz de inspirar e expirar é um milagre. Uma pessoa em seu leito de morte não pode respirar livremente e vai logo parar de respirar completamente. Mas eu estou vivo. Eu posso respirar e ter consciência de minha inspiração. Eu posso expirar e tornar-me consciente da minha expiração. Eu sorrio para minha expiração e estou ciente de que estou vivo. Então, quando você inspira, esteja ciente de sua inspiração. "Inspirando, eu sei que esta é a minha inspiração." Ninguém pode impedi-lo de desfrutar de sua inspiração. Quando você expira, esteja ciente de que esta é a sua expiração. Respire como uma pessoa livre.

Para mim, estar vivo é um milagre. É o maior de todos os milagres. Sentir que você está vivo e está respirando é a realização de um milagre, um que você pode realizar a qualquer momento. Sentir que está vivo e que está dando um passo é um milagre. Mestre Linchi, um mestre de meditação conhecido que viveu no século IX, disse que o milagre não é andar sobre a água, mas andar na Terra.

Todo mundo caminha sobre a Terra, mas há aqueles que andam como escravos, sem liberdade. Eles são sugados pelo futuro ou pelo passado e não são capazes de habitar no aqui e agora, onde a vida está disponível. Se somos capturados por nossas preocupações, nosso desespero, nossos arrependimentos sobre o passado e nossos medos do futuro em nossas vidas diárias, não seremos pessoas livres. Nós não seremos capazes de estabelecer-nos no aqui e agora.

De acordo com o Buda, meu professor, a vida só está disponível no aqui e agora. O passado já se foi, e o futuro ainda está por vir. Há apenas um momento para eu viver, o momento presente. Então, a primeira coisa que faço é voltar para o momento presente. Ao fazer isso, toco a vida profundamente. Minha inspiração é a vida, minha expiração é a vida. Cada passo que eu dou é a vida. O ar que respiro é a vida. Eu posso tocar o céu azul e a vegetação. Eu posso ouvir o som dos pássaros e o som de outro ser humano. Se pudermos voltar para o aqui e agora, seremos capazes de tocar as muitas maravilhas da vida que estão disponíveis.

Muitos de nós pensam que a felicidade não é possível no momento presente. A maioria de nós acredita que existem mais algumas condições que precisam ser satisfeitas antes que possamos ser felizes. É por isso que são sugados para o futuro e não são capazes de estar presentes no aqui e agora. É por isso que passam por cima de muitas das maravilhas da vida. Se continuarmos a fugir para o futuro, não poderemos estar em contato com as muitas maravilhas da vida e não poderemos estar no momento presente, onde há cura, transformação e alegria.

Quando eu como uma laranja, posso comê-la como ato de meditação. Segurando a laranja na palma da minha mão, olho para ela com atenção plena. Eu gasto um longo tempo olhando para o laranja, com plena consciência. "Inspirando, há uma laranja na minha mão. Expirando, sorrio para a laranja." Para mim, uma laranja é nada menos que um milagre. Quando olho para uma laranja no aqui e agora, eu posso vê-lá com os meus olhos espirituais: a flor de laranjeira brotando, o sol e a chuva penetrando nas flores, a pequena laranja verde e, em seguida, a árvore trabalhando ao longo do tempo para trazer a laranja para o seu tamanho final. Eu olho para a laranja na minha mão e sorrio. Não é nada menos que um milagre. Inspirando e expirando conscientemente, eu me torno plenamente presente e plenamente vivo e agora eu me vejo como um milagre.

Queridos amigos, você não é nada menos que um milagre. Pode haver momentos em que você se sente inútil. Mas você não é nada menos que um milagre. O fato de que você está aqui, vivo e capaz de inspirar e expirar é a prova cabal de que você é um milagre. Um feijão contém todo o cosmos nele: luz do sol, chuva, toda a Terra, tempo, espaço e consciência. Você também contém todo o cosmos.

Nós contemos o Reino de Deus, a Terra Pura do Buda, em cada célula do nosso corpo. Se soubermos como viver, o Reino de Deus se manifestará para nós no aqui e agora. Com um passo, podemos penetrar no seu interior. Nós não temos que morrer para entrar no Reino de Deus; na verdade, nós temos que estar muito vivos. O inferno, também, está em todas as células do nosso corpo. Cabe a nós escolher. Se continuarmos a regar a semente do inferno em nós a cada dia, então o inferno será a realidade em que viveremos, vinte e quatro horas por dia. Mas se nós soubemos como regar a semente do Reino de Deus em nós a cada dia, então o Reino de Deus se tornará a realidade em que viveremos a cada momento de nossas vidas diárias. Esta é a minha experiência.

Não há um dia que eu não ande no Reino de Deus. Se eu estou neste lugar ou em outro lugar, sou sempre capaz de caminhar conscientemente e o chão sob os meus pés é sempre a Terra Pura do Buda. Ninguém pode tirar isso de mim. Para mim, o Reino de Deus é agora ou nunca. Não está situado no tempo e no espaço; ele está em nossos corações. Você tem que desenvolver o andar atento e tocar a Terra como se fosse um milagre. Se você sabe como voltar para o aqui e agora, se você sabe como tocar o Reino de Deus em cada célula do seu corpo, ele irá se manifestar a você imediatamente no aqui e agora.

(Do livro “Be free where you are are”, de Thich Nhat Hanh)
(Tradução para o português: leonardo Dobbin)

sexta-feira, 20 de março de 2015

Se eu Morresse Amanhã

Um dia em 1981, vendo o quanto eu estava absorvida enrolando pacotes para crianças famintas no Vietnã, Thay Nhat Hanh me perguntou: “Se você morresse hoje a noite, estaria preparada?” Ele disse que devemos viver nossas vidas de forma que se morrermos de repente, não tenhamos nada a lamentar. “Chan Khong você tem que aprender a viver livre como as nuvens ou a chuva. Se você morrer hoje a noite, não deveria sentir nenhum medo ou lamento. Você se tornará alguma coisa diferente, tão maravilhosa como é agora. Mas se você lamentar perder sua forma atual, não estará liberada. Ser liberada significa perceber que nada pode te obstruir, te impedir, mesmo enquanto cruza o oceano do nascimento e morte.”

Suas palavras me perfuraram e eu permaneci em silêncio por vários dias. Não, eu não estava preparada para morrer. Meu trabalho era minha vida. Eu tinha encontrado meios de ajudar as crianças famintas, apesar das dificuldades, e estava feliz de novo. Se eu morresse de repente, quem continuaria esse trabalho?

Eu contemplei muitas questões práticas como essa, enquanto seguia cada inspiração e cada expiração. Eu não estava exatamente tentando achar a solução. Eu sabia que a habilidade de achar uma estava em mim e quando eu estivesse calma o suficiente, uma resposta se revelaria por si. Portanto eu continuei a respirar e sorrir, e alguns dias depois, eu realmente vi a solução. Eu sabia que a única maneira que me permitiria morrer em paz seria se eu renascesse em outros que desejassem fazer o mesmo trabalho.

Então minha aspiração poderia continuar mesmo se esse corpo falecesse. Eu pensei sobre os jovens que vinham para praticar plena atenção com Thay e decidi compartilhar com eles minhas experiências e desejos profundos sobre ajudar pessoas que sofrem. Eu os ensinaria como escolher remédios, como embrulhar pacotes, como escrever cartas pessoais aos pobres, e como manter os ocidentais em contato com o sofrimento das pessoas no Vietnã. Alguns jovens ficaram inspirados a começar seus próprios comitês, e hoje há trinta e oito comitês para crianças famintas. Se eu morrer hoje a noite de acidente de carro ou de ataque cardíaco, estas trinta e oito reencarnações me permitirão morrer em paz.

Nguyen Anh Huong, que chegou aos Estados Unidos em 1981, ouviu atenta a tudo que eu disse e me perguntou como começar um projeto. Como refugiada recém-chegada, ela conhecia melhor que eu as muitas famílias em grande sofrimento no Vietnã. Eu a encorajei a preparar sua própria lista de famílias que precisavam de ajuda e a achar patrocinadores para elas. Quando as crianças famintas escrevessem agradecendo, ela poderia traduzir as cartas e mandá-las aos patrocinadores.

Lentamente, Anh Huong foi capaz de ajudar centenas de famílias. Bui Than Vu em Paris tem muitas famílias, Bui Ngoc Thuy em Sceaux na França tem oitenta e seis famílias, Annabel Laity em Plum Village está encarregada de quarenta famílias. Adicionalmente, quase todas as irmãs vietnamitas da ordem Tiep Hien (Ordem Interser) na Suíça, Austrália, Canadá, Alemanha e França têm ajudado grupos de famílias famintas.

Se hoje a noite meu coração parar de bater, você verá meu trabalho em todas essas irmãs e irmãos. Há aqueles que continuam meu trabalho pelas crianças famintas, outros que gostam de meu trabalho de ouvir o sofrimento das pessoas de forma que possam ser curadas. Você pode ver meu sorriso no seu olhar e minha voz nas suas palavras. Mas não verá minhas deficiências neles. O samsara de minhas deficiências terminará no dia que esse corpo for transformado em cinzas e então se tornar flor de novo.

Onde quer que eu faça algo, eu vejo os olhos de meus pais e avós em mim. Quando eu trabalhei com aldeões, sempre tinha a impressão que estava fazendo o trabalho conjuntamente com eles e também com as mãos amorosas daqueles amigos que economizaram um punhado de arroz ou poucos dólares para apoiar o trabalho. Minhas mãos eram suas mãos. Meu amor era o amor maravilhoso da rede de ancestrais, pais, parentes e amigos nascidos em mim. O trabalho que eu tenho feito é o trabalho de todos. Não é apenas meu trabalho. Enquanto você lê essas linhas e sabe que, em uma remota área do Vietnã, crianças que são severamente mal nutridas estão recebendo recursos de Plum Village, você pode ver o ato de amor do trabalho coletivo de milhares de mãos e corações. Todos nós, de fato, intersomos. Eu continuarei em cada um e cada coisa que eu já toquei. Não tenho nada a temer e nada a lamentar.

Queridos leitores, agradeço pela sua paciência em ler esse texto. Eu estou com você da mesma forma que você tem estado comigo, e nos encorajamos a perceber nosso mais profundo amor, carinho e generosidade. Juntos no caminho do amor, podemos tentar fazer pequenas diferenças na vida de alguém. O que mais há para fazer?

Quem é a irmã Chan Khong? Quem é Cao Ngoc Phuong? Ela é feita dos seus ancestrais, da terra chamada Vietnã, do ar, do sofrimento, das amizades, dos ensinamentos, da cruel ignorância dos que fazem a guerra, e do amor e entendimento de muitos professores e amigos durante seus primeiros trinta anos naquela parte do mundo e então quase quarenta anos entre muitos bodisatvas no ocidente. As experiências que compartilho são as experiências coletivas de todos que compartilharam a vida comigo.

Se você puder visitar Plum Village onde eu vivo, verá que não precisamos muito para sermos felizes. Um pedaço de madeira sobre quatro tijolos para uma cama, uma fina espuma de colchão, um saco de dormir, um lençol fino, algumas caixas para nossos arquivos e muita inspiração e expiração consciente para termos consciência de nossa boa sorte por estar em paz e liberdade para trabalhar por aqueles em necessidade.

Cartas vêm todo dia, trazendo boas notícias de trabalhos inspiradores. Mas algumas cartas e telefonemas trazem notícias que nosso trabalho falhou em algumas áreas. Respiração consciente sempre ajuda-nos a acalmar e nos renovar de forma que possamos melhor lidar com as dificuldades e transformá-las. Sabemos que você pode fazer até melhor do que fizemos. Portanto é meu desejo que esse texto, este trabalho pelas crianças famintas, este trabalho organizando retiros tenha sido útil para você como testemunha de nossa prática de interser nesta maravilhosa viagem juntos.

Como eu visto um robe, às vezes amigos têm uma profunda confiança que sou relutante em aceitar e tenho o sentimento que não mereço este respeito. Um dia alguém me pediu e, como sempre, eu recusei; mas ao ver sua dor e seu sincero chamado por ajuda eu sentei quietamente, inspirei e expirei e em um estado de concentração e compaixão, chamei a energia de Avalokiteshvara em mim e ao meu redor. Eu disse silenciosamente, “Possa o grande amor de Avalokiteshvara em mim e no universo ajudar esta mulher a aliviar sua dor.”  E neste estado, eu coloquei minhas mãos na sua cabeça, e nos seus ombros.

Por algum tempo depois ela sentiu alívio. Ela disse que a experiência tinha sido confortante e calmante. Eu fiquei altamente surpresa e pensei que certamente tinha algo a ver com sua fé em mim. Eu estou mais acostumada a ajudar pessoas ao oferecer propostas racionais para ajudá-las a resolver seus problemas, baseadas no olhar profundo e na compaixão nascidas de minha meditação. Ninguém nunca deveria subestimar o poder da fé e da devoção.

Ser uma monja na comunidade de Plum Village me dá muitas oportunidades para me curar e ajudar as pessoas a se curarem. Uma vez que alguém transforma suas próprias dificuldades, se torna professor de Dharma e ajuda a aliviar o sofrimento dos outros.

Nosso professor Thich Nhat Hanh sempre nos lembra que seja o que for que ensinemos, tem que vir de nossa experiência – não podemos simplesmente repetir as palavras do Buda. Thay somente nos ensina o que ele experimentou e é por causa de sua autenticidade que seus ensinamentos nos emocionam tão profundamente. Eu espero que meu trabalho tenha inspirado àqueles que silenciosamente e dedicadamente continuam o que iniciei de sua própria maneira.


(Traduzido do livro “Learning True Love” – Sister Chan Khong por Leonardo Dobbin)

sexta-feira, 6 de março de 2015

Métodos para Cultivar os Hábitos da Felicidade

Com base no que aprendemos sobre o corpo e a mente, eu gostaria de lhes oferecer exercícios para cultivar a concentração, a consciência plena e o insight. Estes exercícios são: as três concentrações, as seis paramitas, a construção da Sanga, e a não-discriminação. Estes ensinamentos estão no coração da prática budista e do segredo da felicidade. Estes ensinamentos se apóiam e se sustentam. Se a sua concentração for suficientemente forte, você fará uma descoberta, obterá um insight. Você precisa estar presente, com o corpo e a mente unidos e totalmente presentes – isto é atenção plena. Se você estiver neste estado de consciência, será possível para você se concentrar. Se a sua concentração for poderosa, você tem uma chance de fazer uma importante descoberta que lhe ajuda a alcançar a felicidade.

Existem três tipos diferentes de concentração. A primeira é a vacuidade. Vacuidade aqui é uma concentração e não uma filosofia. A vacuidade não é uma tentativa de descrever a realidade. A vacuidade é oferecida como um instrumento. E nós temos que manusear a noção da vacuidade habilidosamente para não sermos aprisionados nesta noção. A noção da vacuidade e o insight de vacuidade não são duas coisas diferentes. Vamos considerar uma vela. Para acender uma vela, você acende um fósforo, você precisa de fogo. E o fósforo é apenas um instrumento, um meio. Sem o fósforo você não consegue produzir o fogo. O seu objetivo último é a chama e não o fósforo. Buda lhe oferece a noção de vacuidade, porque ele tem que usar noções e palavras para se comunicar.

Habilidosamente, fazendo uso da noção de vacuidade, você pode produzir o insight de vacuidade. Uma vez que o fogo se manifeste, ele consumirá o fósforo; quando o insight da vacuidade se manifesta, ele destruirá a noção da vacuidade. Se você for suficientemente habilidoso para fazer uso da noção da vacuidade, você então tem o insight da vacuidade e está livre da palavra “vacuidade”. Eu espero que você consiga ver a diferença entre vacuidade enquanto insight e vacuidade enquanto noção.

Samadhi não é uma doutrina, não é uma tentativa de descrever a verdade, mas é um meio hábil de lhe ajudar a alcançar a verdade. É como o dedo apontando para a lua. A lua é muito bela. O dedo não é a lua. Se eu aponto e digo, “Querido amigo, esta é a lua” e você pega este dedo e diz: “Oh! Isto é a lua!” – você não tem a lua. Você está aprisionado no dedo, você não consegue ver a lua. O Darma de Buda é o dedo, não a lua.

O Sutra do Coração diz: “forma é vacuidade, vacuidade é forma” – o que isto significa? O bodisatva Avalokiteshvara disse que tudo é vazio. E queremos perguntá-lo: “Senhor Bodisatava, você diz que tudo é vazio, mas eu quero lhe perguntar, ‘vazio do que’?” Porque vazio é sempre vazio de algo. Esta é uma maneira habilidosa de destruir a palavra “vacuidade” para conseguir o insight da vacuidade. Imagine um copo. Concordamos que ele está vazio.

Mas é importante fazer a pergunta que parece inútil, mas que não é: “vazio de que?” Vazio de chá, talvez. Vazio significa vazio de algo. É como consciência, percepção, sentimento. Sentir significa sentir algo. Estar consciente significa estar consciente de algo. Estar atento significa estar atento a algo. O objeto existe ao mesmo tempo em que o sujeito. Não pode haver mente sem objeto da mente. Isto é muito simples, muito claro. Assim nós concordamos que este copo está vazio de chá. Mas não podemos dizer que este copo está vazio de ar. Ele está cheio de ar.

Quando observamos uma folha, vemos que ela está cheia, totalmente cheia. Eu olho para a folha, eu toco a folha e com o maravilhoso instrumento chamado mente, posso ver que enquanto eu toco a folha estou também tocando uma nuvem. A nuvem está presente na folha. Eu sei muito bem que se não houver nuvem, não há chuva e então nenhuma árvore de álamo pode crescer.

Por isso quando toco a folha, eu toco elementos que não são folha. Um destes elementos que não são folha é a nuvem. Eu toco a nuvem; eu toco a chuva tocando a folha. Ao tocar a folha eu sei que água, chuva e nuvem estão ali dentro da folha. Eu também toco os raios de sol dentro da folha. Eu sei que sem raios de sol nada consegue crescer. Eu estou tocando o sol sem me queimar. E sei que o sol está presente na folha. Se continuar minha meditação eu verei que estou tocando os minerais dentro do solo, estou tocando tempo, estou tocando o espaço, estou tocando a minha própria consciência. A folha está cheia do cosmos – espaço, tempo, consciência, água, solo, ar e tudo, então como podemos dizer que ela é vazia?

É verdade que a folha está cheia de tudo, exceto uma coisa, e esta uma coisa é uma existência separada, um “eu”. Uma folha não consegue existir por si só, a folha tem que interexistir com tudo o mais dentro do cosmos. Uma coisa tem que contar com todas as outras coisas para se manifestar. Uma coisa não consegue ser ela mesma sozinha. Então vacuidade é antes de mais nada vazio de um eu separado. Tudo contém tudo o mais. Olhando dentro da folha nós vemos somente os elementos que não são folha. Buda está constituído somente de elementos que não são Buda. E o meu eu está constituído somente de elementos que não são eu.

A segunda concentração é animita, a insubstancialidade dos sinais. Insubstancialidade dos sinais significa não ser capturado pela aparência. Parece que a nuvem que observamos no céu tem um início, e falamos do “nascimento” da nuvem. Parece que uma nuvem pode morrer a qualquer hora hoje à noite e não mais existirá no céu. Temos uma noção de nascimento e morte. Mas com a prática da contemplação profunda, podemos tocar a natureza sem nascimento e sem morte da nuvem.
 
Se vivermos a vida conscientemente, então seremos capazes de tocar a natureza da insubstancialidade dos sinais. Bebendo o seu chá, você reconhece que a sua amada nuvem está dentro do seu copo. A nuvem pode tomar a forma de um cubo de gelo. A nuvem pode tomar a forma da neve sobre os Pirineus. A nuvem pode estar dentro do sorvete que sua filha está tomando. Então com a sabedoria da insubstancialidade dos sinais, você descobre que nada nasce e nada pode morrer – e você não tem medo. A verdadeira felicidade, perfeita felicidade não pode ser possível sem destemor. Olhando profundamente e tocando a natureza sem nascimento e sem morte elimina o medo dentro de nós.

Existe o elemento de delusão dentro de nós e existe o elemento de luminosidade dentro de nós. Devido ao elemento de delusão, sofremos. Devido ao elemento de luminosidade, podemos nos tornar um Buda. É assim que a dualidade entre o cérebro e a mente pode ser resolvida. A realidade se expressa enquanto cérebro ou enquanto consciência. Não é verdade dizer que o cérebro nasce da mente, ou que a mente é uma propriedade emergente do cérebro – você não tem que fazer isto.

Você pode dizer que mente e cérebro se manifestam a partir do solo da consciência armazenadora, e eles se apóiam mutuamente em suas manifestações. Sem mente, cérebro não é possível; sem cérebro, mente não consegue se manifestar. Tudo conta com tudo o mais para se manifestar. Tal como a folha, como a flor – a flor tem que contar com elementos que não são flor para se manifestar. O mesmo acontece com a mente. O mesmo acontece com o cérebro.

A terceira concentração é apranihita, ausência de objetivo. Sem preocupação, sem ansiedade estamos livres para desfrutar cada momento de nossas vidas. Sem tentar, sem fazer grandes esforços, apenas sendo. Que alegria! Isto parece contradizer o nosso modo normal de operar. Estamos tentando tão duramente atingir a felicidade, lutar pela paz. Mas talvez nossos esforços, nossas lutas, nossos objetivos sejam o próprio obstáculo da nossa conquista da felicidade, para que fomentemos a paz. Todos nós tivemos a experiência de buscar uma resposta e então quando soltamos e relaxamos a resposta surge, sem esforço. Isto é ausência de objetivo.

Desfrutamos nossa respiração, bebemos chá, sorrimos conscientemente, caminhamos com a mente atenta e os insights surgem e a compreensão naturalmente chega. Ausência de objetivo é uma prática maravilhosa. É tão prazerosa, tão refrescante. Eu acredito que os cientistas necessitam desta prática tanto quanto os meditadores, para abrir as mentes cerradas deles, para abrir às possibilidades que estão além da imaginação deles. Muitas descobertas científicas aconteceram no solo da ausência de objetivos, porque quando você não está programado em seu destino tem mais chance de chegar a um novo e inesperado insight.

(Do livro Buddha Mind, Buddha Body: Walking toward Enlightenment, de Thich Nhat Hanh)
(Tradução para o português: Tâm Vân Lang)