sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Vivendo Juntos em Harmonia

Alguém perguntou, "Você pode me dizer o que é um pai ideal?" Alguém mais respondeu, "Um pai ideal é alguém que sabe amar a mãe e como fazer a mãe feliz." Esta parece uma resposta muito simples, mas também é muito profunda. Do que precisa uma criança mais que tudo? Ela precisa de dinheiro para comprar presentes, ela precisa de dinheiro para comprar brinquedos? Do que precisa uma criança mais que tudo? O que uma criança precisa mais que tudo é do amor de seu pai.

Existem muitas crianças que têm muitos brinquedos e muito dinheiro, mas elas não estão contentes porque o seu pai sempre está fazendo sua mãe sofrer, e freqüentemente tais crianças são muito tristes. Elas querem fugir, porque a atmosfera na família é muito pesada, como a atmosfera antes de uma grande tempestade. A atmosfera é de sofrimento, na casa e na família, e o pai provoca esta atmosfera quando ele faz a mãe sofrer. Assim a criança quer fugir, mas para onde ele ou ela podem correr? Antigamente nós poderíamos ter tido uma casa e um jardim agradável, com um pequeno lago, com bastante espaço, e a criança poderia correr para o jardim e poderia se sentar junto ao lago, ou correr para um vizinho, buscar uma tia ou um tio no vilarejo, mas agora podemos estar vivendo em um alto edifício de apartamentos, e a criança neste ambiente não tem nenhum lugar para onde correr - há só um lugar, e é o banheiro ou armário, fugir para lá e fechar a porta. Esta atmosfera sufocante, pesada, destrói e desgasta a criança, assim ela quer fugir, e ela não sabe aonde ir, assim entra no banheiro e grita para ela própria. Mas até mesmo no banheiro ela não se sente segura, porque ainda pode ouvir as vozes da mãe que chora ou do pai falando.

As crianças que vivem diretamente no meio de tal atmosfera não podem crescer de um modo suave e bonito; é como a árvore no jardim quando não há nenhum raio de sol, nenhuma chuva ou nenhum jardineiro para cuidar dela. Quando tal árvore cresce, também tem que ter uma família: tem que ter uma esposa, um marido e filhos. Mas não sabe fazer a família feliz, porque quando criança não aprendeu isso do pai. A criança não sabe amar a mãe, como cuidar da mãe. O pai não soube cuidar da mãe, e porque a criança nunca viu o pai cuidar da mãe, ela não pôde aprender como amar. Quando aquela criança se casa ela ou ele repetem os enganos do pai ou da mãe, e estes enganos novamente provocam sofrimentos para seus entes queridos. Isto é o que nós chamamos Samsara; significa o ciclo de renascimentos que nunca tem um fim, e de uma geração para a próxima este sofrimento continua sendo passado. Só quando nós podemos estar em contato com os reais ensinamentos e aprender modos de prática é que seremos capazes de quebrar este ciclo de sofrimento chamado Samsara.

Quando as crianças vêm a Plum Village, podem aprender modos de quebrar este ciclo, de forma que possam fazer surgir uma nova área na qual o pai terá a capacidade, a arte de trazer felicidade, cuidado e amor à esposa. Muitos jovens dizem que o presente mais precioso que pais podem dar aos seus filhos é a felicidade dos pais. As crianças não precisam muito: tudo que precisam é os pais estarem juntos e felizes, e isso é o bastante para as crianças estarem contentes. Assim, se somos uma mãe ou um pai, temos que saber que o que nossos filhos mais precisam é nossa felicidade, e nossa felicidade com nosso cônjuge. Esse é o maior presente que podemos dar para nossos filhos. E se nossos pais querem fazer um ao outro feliz, deveriam saber praticar o Quarto Treinamento de Plena Consciência, ao máximo. O Quarto Treinamento é a capacidade de escutar profundamente, e falar com suavidade e amorosamente. O Escutar profundamente, a fala amorosa, isto é o que todos os pais precisam aprender, e assim poderão estabelecer a comunicação e não fazerem um ao outro sofrer. Então oferecerão às suas crianças muita felicidade.

Escutar profundamente é algo nós temos que aprender a fazer -- não podemos fazer isto simplesmente. Quando a outra pessoa está falando, ela está tentando expressar suas dificuldades e sofrimentos, e precisa de nós para escutá-la. Mas se não somos capazes de escutar, então a pessoa que está falando não obterá alívio de seu sofrimento, e finalmente deixará de falar. Assim quando amamos alguém, nossa esposa, nosso marido, nossas crianças, nossos pais, precisamos praticar o escutar profundamente aquela pessoa. Talvez nosso pai não saiba escutar a nossa mãe, ou nossa mãe não saiba escutar profundamente a nosso pai, mas e nós? Nós sabemos escutar profundamente a nossa mãe e pai? Às vezes dizemos, "Minha mãe não escuta a meu pai, meu pai não escuta a minha mãe." Mas nós mesmos não escutamos profundamente a nossa mãe ou pai tampouco. Então, a mãe, o pai e o filho, quando eles vão ao templo, quando eles vão ao centro de meditação, tem que praticar o escutar profundamente, porque escutar profundamente é a prática do Bodhisattva Avalokiteshvara. Esta manhã os monges e monjas cantaram o "Elogios Ao Bodhisattva Avalokiteshvara", aquele que tem a habilidade de escutar profundamente. Por isso ele é chamado Quan The Am: isso significa "observando os sons que vêm do mundo”.

Pessoas que sofrem, que possuem sentimentos profundamente ocultos nos seus corações os quais não são capazes de expressar, precisam de uma oportunidade de extravasar este sofrimento, e se ninguém se sentar para escutá-los, como eles podem ter a oportunidade de expressar estes sentimentos ocultos de sofrimento? Então precisamos praticar olhar profundamente o interior daquela pessoa, e esta é a maneira de mostrar que nós as amamos. Se somos um pai e queremos escutar aos nossos filhos, podemos nos sentar ao lado delas em silêncio, e então dizemos: "Meu querido filho, por favor me fale, você tem alguma dificuldade? Você tem qualquer sofrimento? Por favor me fale. Eu quero escutar e ver se posso ajudar." O pai fala assim com coração. E se somos uma esposa, e sabemos que nosso marido tem sofrimentos e dificuldades que ele não pôde expressar, nós vamos até nosso marido, e sentamos em silêncio, muito calmamente ao lado dele, e então dizemos: "Meu querido marido, você tem qualquer sofrimento? Você tem alguma dificuldade escondida em seu coração? Por favor me deixe saber dela." A esposa deve falar assim.

Se somos um marido ou um pai e temos sofrido -- e todos nós sofremos; alguns de nós muito, outros um pouco -- quando a outra pessoa nos fala assim percebemos que se abre uma oportunidade para dizer o que queremos. No princípio é difícil falar. Ninguém tentou nos escutar antes, e agora quando alguém nos convida a falar assim, não estamos seguros se realmente devemos acreditar. Mas a esposa, ou quem faz a pergunta, deve ser paciente e dizer, "Por favor, por favor me fale. Pode ter sido por causa de minha falta de jeito, minha ignorância que você sofre, e eu quero ouvir isto. Por favor me diga se faço qualquer coisa tola ou inadequada que lhe faz sofrer. Eu prometo que me sentarei calmamente e em silêncio, e escutarei, porque eu estou praticando como um discípulo do Bodhisattva Avalokiteshvara. Eu não julgarei, eu não reagirei, eu não ficarei com raiva. Meu mestre e minha Sangha me ensinaram como praticar o estado de ser pacífico e calmo, como comer pacificamente, como caminhar pacificamente, como sentar pacificamente, e agora posso me sentar e escutar. Eu não sou mais como era." Nós podemos tentar persuadir nossos maridos desta forma, assim eles podem falar de suas dificuldades para que possamos ouvir.

Se nós somos jovens, não deveríamos pensar que apenas nós sofremos. O pai sofre, o pai tem dificuldades. Então nós podemos praticar, e podemos dizer, "Papai, eu sei que você é meu pai, mas sei que você tem dificuldades. Às vezes você fica bravo comigo, às vezes você se chateia comigo, às vezes eu não faço o que você gosta, mas isso acontece porque eu não conheço seu coração, eu não sei de suas dificuldades. E agora eu quero ouvi-lo; quero ouvir sobre as coisas que você não gosta em mim, nas quais pensa que posso melhorar. E eu escutarei, escutarei com o coração do Bodhisattva Avalokiteshvara, porque eu fui ao centro de meditação, conheci os monges e monjas, conheci a Sangha e aprendi como me sentar e escutar profundamente. Então por favor, pai, me fale, e eu serei como o Bodhisattva Avalokiteshvara. Eu me sentarei e escutarei muito atentamente. Eu escutarei com todo os meus ouvidos, não com meio ouvido, e escutarei com meu coração, porque Avalokiteshvara é aquele que pode escutar com os ouvidos e com o coração, e é capaz de escutar em momentos como esse." Quando o filho escuta o pai assim durante um tempo, o pai se sentirá muito melhor.

Todos nós temos que praticar na família: mãe, pai, e filho. Nós não podemos escutar profundamente só porque queremos fazer assim, nós temos que praticar primeiro, porque se paramos de escutar no meio do caminho, a outra pessoa pensará: "Que desperdício de tempo!".

Se estamos escutando e as pessoas nos dizem coisas que são completamente erradas -- elas nos entenderam completamente mal --, quando elas descrevem estas coisas, sentimos a sua falta de lealdade conosco, sentimos o seu engano, as ouvimos nos condenando e nos criticando, e enquanto as escutamos assim, pode acontecer que as sementes de nosso sofrimento sejam regadas por isso. Nós poderíamos gritar com elas ou poderíamos fugir, mas se fizermos qualquer uma destas coisas, nós saberemos que não fomos bem sucedidos em nossa prática de escutar profundamente.

O pai e a mãe são capazes de praticar o escutar profundamente? Se a mãe e o pai não têm tido êxito nisso, nós como filhos temos que ajudá-los. Nós temos que escutar o pai e a mãe. Temos que provar que nós como filhos podemos escutar profundamente. Nós podemos entender nosso pai, podemos escutar a nossa mãe e entender nossa mãe. E podemos ir até nossa mãe e dizer, "mãe, saiba que fui até meu pai, eu o escutei profundamente. Agora entendo o meu pai, e vejo meu pai sofrer bem menos. Por favor, mãe, faça a mesma coisa. Eu vou lhe ajudar a ser capaz de se sentar e escutar o pai profundamente."

Se vocês são apenas crianças, podem ser pequenos e não ter grande sabedoria, mas vocês estiveram em contato com o Buda, Dharma, e a Sangha, com os monges e as monjas, e também podem ajudar seus pais. "Pai, você tem procurado escutar a mãe? Minha mãe tem tantas dificuldades e tristezas em seu coração, muitas coisas sobre as quais você não sabe. Então, por favor, pai, escute profundamente a mãe. Eu pratiquei o escutar profundamente minha mãe, e eu sei que você pode fazer o mesmo. Eu o ajudarei. pai, por favor escute profundamente a mãe, por favor faça isso em silêncio, e quando a mãe disser algo que não é verdade, não fique bravo; apenas respire e escute profundamente para que ela sofra menos. Não escute profundamente para culpá-la ou criticá-la. E se não puder fazer isto ainda, pai, por favor vá ao centro de meditação e aprenda a meditação andando, aprenda a meditação sentada, aprenda como andar com consciência e comer com consciência, e então em uma questão de dias você poderá praticar o escutar profundamente".

Escutar profundamente é a prática mais maravilhosa do Buda e do Bodhisattva Avalokiteshvara, e quando nós dizemos o nome do Bodhisattva Avalokiteshvara, significa que aceitamos Avalokiteshvara como nosso professor. Avalokiteshvara tem a capacidade de escutar profundamente. Então, se somos discípulos de Avalokiteshvara, temos que praticar também o escutar profundamente. Hoje, vocês, crianças pequenas, ouviram isto; lembrem-se das palavras que eu lhes ensinei. Quando o pai e a mãe não estão contentes juntos, vocês tem de unir suas palmas e dizer-lhes, “Mãe, pai, onde está meu presente? Meu presente é sua felicidade. Se vocês não me derem este presente eu vou ficar muito triste." Isto será como um sino da consciência para o despertar da mãe e do pai, e então a mãe e o pai tentarão praticar.

(Discussão de Dharma ministrada por Thich Nhat Hanh em Plum Village em 9 de julho de 1998)
(Transcrito e editado por Carol Fegan, Chan An Cu, Traduzido ao Português por Claudio Miklos)

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

As Cinco Consciências no Casamento

Em Plum Village, toda vez que há um casamento, a comunidade inteira celebra a união e leva seu apoio aos noivos. Depois da cerimônia, a cada lua cheia, o casal recita as Cinco Consciências juntos, relembrando que amigos de toda parte apoiam seu relacionamento. Seja a união firmada ou não por lei, ela será forte e mais duradoura se tiver sido realizada na presença de uma Sangha - amigos que amam as duas pessoas e as apoiam dentro do espírito da compreensão e do amor.

Antes das duas pessoas se casarem, elas têm que realizar juntas a prática da plena consciência e, tornando-se casados, deverão continuar praticando as Cinco Consciências como manifestação da Plena Consciência:
  • Somos conscientes de que todas as gerações dos nossos ancestrais e da nossa descendência estão presente em nós.
  • Somos conscientes das esperanças que nossos ancestrais, nossos filhos e os filhos de nossos filhos depositam em nós.
  • Somos conscientes de que nossa alegria, nossa paz, nossa liberdade e harmonia, são a alegria, a paz, a liberdade e a harmonia de nossos ancestrais, de nossos filhos e dos filhos de nossos filhos.
  • Somos conscientes de que a compreensão é o próprio fundamento do amor.
  • Somos conscientes de que reclamações e brigas não nos ajudam e fazem apenas crescer o fosso entre nós. É unicamente graças à compreensão, à confiança e ao amor que podemos nos transformar e crescer.
Na primeira consciência nos vemos como um elemento de continuação dos nossos ancestrais e um elo para as gerações futuras. Quando adquirimos essa visão, sabemos que, tratando bem o corpo e a consciência no momento presente, estamos cuidando de todas as gerações passadas e futuras.

A segunda consciência nos lembra que nossos antepassados têm expectativas em relação a nós, assim como nossos filhos e netos. Nossa felicidade é a felicidade deles, e nosso sofrimento é o sofrimento deles também. Observando a fundo, saberemos o que nossos filhos e netos esperam de nós. Pode ser que ainda não os estejamos vendo em pessoa, mas eles já estão conversando conosco. Querem que vivamos de tal modo que não sejam infelizes quando se manifestarem. Os budistas vietnamitas não se veem como indivíduos separados de seus ancestrais e sim como uma continuação que representa todas as gerações anteriores. As ações do casal não visam apenas satisfazer suas necessidades físicas e espirituais como indivíduos. Elas também têm como objetivo concretizar as esperanças e expectativas de seus ancestrais, bem como preparar as futuras gerações.

A terceira consciência nos diz que a alegria, paz, liberdade e harmonia não são questões individuais. Temos que viver de modo que possamos permitir a libertação dos ancestrais que estão dentro de nós, o que significa nos libertar. Se não agirmos assim, ficaremos amarrados por toda a vida e transmitiremos isso aos nossos filhos e netos. Agora é a hora de libertarmos os nossos pais e os ancestrais que estão dentro de nós. Oferecer-lhes alegria, paz, liberdade e harmonia proporciona, ao mesmo tempo, alegria, paz, liberdade e harmonia a nós mesmos, a nossos filhos e nossos netos. Isso reflete o ensinamento da interconexão. Enquanto nossos ancestrais, que estão em nós sofrendo, permanecerem sofrendo, não poderemos ser realmente felizes. Dando um passo com plena consciência, livre e felizes ao tocar a terra, o fazemos por todos - por nossos ancestrais e as gerações futuras. As três primeiras consciências são aspectos de um ensinamento profundo. Temos que continuar a estudá-las e praticá-las para aprofundarmos a nossa compreensão.

A quarta consciência é também um ensinamento básico do Buda. Onde existe compreensão, existe amor. Quando entendemos os sofrimentos de alguém, ficamos motivados a ajudar, e as energias do amor e da compreensão são liberadas. O que quer que façamos com esse espírito será para a felicidade e libertação da pessoa que amamos. Às vezes, porém, destruímos essa pessoa. É como o general americano, quando disse que suas bombas tinham que destruir a cidade de Bem Tre para salvá-la. Precisamos praticar de modo a que tudo o que fizermos para os outros os torne felizes. Vontade de amar não suficiente. Se as pessoas não se entendem é impossível uma amar a outra.

Quando as pessoas se casam, elas formam uma Sangha de dois a fim de praticarem o amor - cuidar uma da outra, fazer o cônjuge florescer como uma flor, tornando a felicidade algo real. A felicidade não é uma questão individual. A pessoa deve procurar sorrir pelo menos uma vez ao dia, não só por ela mesma, mas pela outra também. Tem que praticar a meditação andando, não só pela outra, mas por si mesma também. Estamos ligados a muitos seres e pessoas. Cada passo, cada sorriso tem um efeito sobre todos os que nos rodeiam. Nossa felicidade é a felicidade de outras tantas pessoas.

Olhemos para a árvore do carvalho. Ela parece feliz e a sua felicidade é a felicidade dos pássaros e de todos nós, pois todos nos beneficiamos da sua presença. Se alguém está feliz, nós também estamos. Se alguém não está feliz, nós também não estamos. Praticamos as cinco consciências não só por nós mesmos, mas por todos. Quando uma pessoa pratica a fundo os votos feitos durante a cerimônia do casamento, o mundo inteiro se beneficia. No entanto, para ajudá-la a cumprir seus votos, ela precisa de uma comunidade - o carvalho, a sangha e todos nós.

"Por meio do amor que sinto por você quero expressar meu amor por todo o cosmo, pela humanidade e por todos os seres. Vivendo com você, quero aprender a amar todas as pessoas e todas as espécies. Se eu for bem sucedido(a) em amá-lo(a), serei capaz de amar todas as pessoas e todas as espécies da Terra". Essa é a verdadeira mensagem de amor. Como uma pessoa pode dar grandes passos se ainda não conseguiu dar pequenos passos? Em um, dois ou três anos, este será seu objetivo: promover a paz, a felicidade e a alegria nessa pequena sangha. Ao mesmo tempo, ela vê a sua pequena sangha no contexto da sangha maior. Está praticando com a ajuda de seus mestres, pais, amigos e todos os seres vivos dos reinos vegetal, animal e mineral. "Expresso meu amor pela sangha maior por meio de você. Portanto, devo ser capaz de amar, cuidar e fazer você feliz".

Se você estiver nesse tipo de relacionamento, lembre-se de praticar em meio a uma comunidade. Faça o que for possível para levar felicidade para o ar, para a água, rochas, árvores, pássaros e seres humanos. Se praticar com esse espírito, seu anel de casamento se tornará o anel do interser, da solidariedade, do amor e da compreensão. Viva diariamente de modo a sentir a comunidade presente dentro de você o tempo todo. Sempre que enfrentar dificuldades na vida e no mundo, basta tocar o Buda, o Dharma e a Sangha dentro de seu coração para receber o tipo de energia de que necessita. O mundo precisa que você viva com plena consciência para estar sempre alerta para o que está acontecendo. A união de vocês lhes dá a oportunidade de praticar com mais profundidade, obtendo o apoio necessário.

Temos que aproveitar profundamente cada momento da nossa vida. Se formos capazes de viver profundamente um momento que seja, poderemos aprender a viver todos os outros momentos da mesma maneira. O poeta francês René Char disse: "se você puder vivenciar em profundidade um momento, será capaz de descobrir a eternidade". Cada momento é uma oportunidade de fazermos as pazes com o mundo, de tornarmos a paz e a felicidade possíveis. O mundo precisa de nossa felicidade. A prática de viver com plena consciência pode ser descrita como a prática da felicidade, do amor. A capacidade de sermos felizes, de estarmos amando é o que temos que cultivar. A compreensão (sabedoria, NT) é o próprio fundamento do amor. Observar profundamente é a prática básica.

Embora saibamos que culpar e discutir não ajuda nunca, esquecemo-nos disso. Por esse motivo praticamos a quinta consciência. A respiração consciente nos permite desenvolver a capacidade de parar no momento crítico e abster-nos de culpar e discutir.
Todos nós precisamos mudar para melhor. Quando se casam, as pessoas fazem uma promessa de se modificar e ajudar o cônjuge a mudar também, para assim crescerem juntas, compartilhando o fruto e o progresso da prática. É sua responsabilidade cuidarem uma da outra. Somos todos jardineiros que ajudam as flores a crescer. Se houver compreensão, as flores crescerão belas.

Toda vez que a outra pessoa faz uma coisa boa, algo no sentido de mudar e crescer, o cônjuge deve se congratular com ela e mostrar sua aprovação. Isso é importante. Ninguém pode considerar que as coisas já estão garantidas. Se a outra pessoa manifestar talento e capacidade de amar e criar felicidade, é preciso que o companheiro(a) esteja atento(a) e expresse sua admiração. essa é a maneira de regar as sementes de felicidade. O casal deve evitar dizer coisas destrutivas, como: "não sei se você pode fazer isso" ou "duvido que você seja capaz de fazer isso". Ao contrário, o melhor é dizer: "isso é difícil, meu bem, mas tenho certeza que você consegue fazer". Essa maneira de falar faz a pessoa se sentir mais forte. E funciona também com as crianças. Temos que fortalecer a auto-estima de nosso filhos. Apreciar e nos congratular por todas as coisas boas que disserem e, assim, ajudá-las a crescer.

Para os que estão casados há 10 ou 12 anos, esse tipo de prática também é pertinente. Podem continuar vivendo com atenção plena, um aprendendo com o outro. Talvez uma das pessoas tenha a impressão de saber tudo a respeito do cônjuge, mas não é assim. Os cientistas nucleares estudam uma partícula de poeira durante muitos anos e não têm a pretensão de dizer que conhecem tudo sobre ela. Se com a partícula de poeira é assim, como uma pessoa pode dizer que sabe tudo sobre o(a) seu (sua) companheiro(a)? Dirigindo o carro, mergulhada em seus próprios pensamentos, uma pessoa está simplesmente ignorando seu cônjuge. Ela pensa "eu já sei tudo sobre ele(a). Não há nada de novo". Isso não é real. Se o(a) companheiro(a) for tratado(a) dessa maneira, aos poucos, morrerá. Essa pessoa precisa da atenção da outra, da sua jardinagem, dos seus cuidados.

É necessário aprender a arte de semear a felicidade. Se durante a nossa infância vimos nossa mãe ou nosso pai fazendo coisas que proporcionaram felicidade á família, já sabemos como agir. No entanto, se nossos pais não souberam cultivar a felicidade, é possível que não saibamos como proceder. Assim, na comunidade de prática, procuramos aprender a arte de fazer as pessoas felizes. O problema não é estarmos certos ou errados, mas sermos mais ou menos habilidosos. Viver com alguém é uma arte. Mesmo com bastante boa vontade, ainda  podemos fazer a outra pessoa muito infeliz. Boa vontade não é suficiente. Precisamos dominar a arte de fazê-la feliz. A arte é a essência da vida. Devemos procurar ser habilidosos no falar e no agir. A substância da arte é a plena consciência. Vivendo com plena consciência, saberemos viver com mais arte. Isso foi uma coisa que aprendi com a prática.

Texto por Thich Nhat Hanh

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Uma Lição para Rahula


Rahula é o nome do filho do Buda. Poucos anos depois de atingira Iluminação, o Buda voltou à sua terra natal, Kapilavastu, e visitou sua família, sendo recebido pelo Rei Suddhodana, seu pai. Voltou com muitos de seus discípulos - todos monges (àquela altura ainda não existiam monjas) - e ofereceu uma linda palestra de Dharma a seu pai no interior do palácio. A palestra foi assistida por muitas pessoas bem informadas do governo e das famílias dos nobres, incluindo muitos dos seus amigos de outrora - Siddhartha tinha muitos amigos antes de deixar seu lar e se tornar monge. Naquela época, seu filho Rahula contava com oito anos e ainda sentia falta do pai. E foi por isso que, quando o Buda voltou para seu abrigo, na vizinhança de Kapilavastu, na companhia dos seus monges, Rahula quis acompanhá-lo. Rahula amou a presença e a companhia do Buda e não quis mais voltar para casa, queria morar num monastério. Até que um dia ele disse, "Buda, quero viver com você, não quero voltar pra casa". Buda então disse, "Ok" e pediu a seu discípulo Shariputra para ordenar Rahula como noviço. O avô ficou furioso. Seu filho se tornou um monge e agora seu neto era ordenado como noviço! Mas o pequeno Rahula estava muito feliz vivendo próximo ao Buda e praticava muito bem junto com o resto da comunidade de monges. Quando Rahula completou dezoito anos, o Buda ofereceu-lhe um lindo discurso sobre o Dharma e eu gostaria de compartilhar este discurso com vocês. O venerável Shariputra estava lá, em pé, bem atrás do Buda e ouviu e recebeu aquele discurso de maneira muito profunda - e o praticou também de maneira profunda, mesmo que ele tivesse sido dado a um monge muito novo, Rahula.

Nessa palestra o Buda aconselhou Rahula a praticar sendo a terra, a grande terra. O Buda disse, "Rahula, pratique como se você fosse como a terra". As pessoas podem jogar na terra coisas como perfume, fezes, urina, todo o tipo de coisa suja, mas a terra sempre recebe tudo sem raiva. Não interessa se é perfume ou jóias ou ouro ou prata ou flores ou lixo ou sujeira ou fezes ou urina, a terra recebe tudo isso sem ressentimento algum, sem raiva alguma, por que a terra é grande e larga. A terra tem o poder de transformar tudo isso. Você, por exemplo, encontra um rato morto na sua cozinha e quer se livrar logo dele - onde você vai pôr? Você o joga na terra. Imediatamente a terra transforma o rato morto em algo que você consiga aceitar. A terra tem um grande poder de transformação porque ela é grande. Assim, pratique de tal modo que o seu coração se torne tão grande quanto a terra. Você só sofrerá se você for pequeno, se seu coração for pequeno. Quando seu coração se expande, você não mais sofre, não precisa mais fazer um esforço para suportar o sofrimento.

Outro dia eu comecei a falar usando a imagem de uma caixa d'água. Ela pode conter algo em torno de 50 litros de água e se você joga algo sujo no seu interior não poderá mais beber a água - você terá que jogar tudo fora. Mas se você jogar aquela sujeira em um grande rio, em um rio imenso, ainda assim você poderá beber da sua água. Imediatamente, o rio, com toda a sua água e lama, transforma a sujeira que você jogou nele e tudo estará perfeito novamente - toda a cidade continuará a beber a água do rio. Não é que o rio tenha que suportar. Estamos falando aqui de indulgência, tolerância, como um barco que carrega você para a outra margem - kshanti-paramita, "cruzando para o outro lado", para a margem da felicidade, da alegria e da libertação pelo barco da indulgência.

Se você tornar o seu coração tão grande quanto a terra, você poderá aceitar qualquer coisa que as pessoas façam ou digam a você sem sofrimento. Mas se o seu coração for pequeno, você sofrerá bastante. Assim Rahula praticou ser como a terra, que é a prática de amor chamada as Quatro Mentes Incomensuráveis. Porque com a prática, seu coração crescerá mais e mais e mais, sempre cada vez maior. E seu coração abraçará a tudo e a todos, sem nenhum inimigo, não existe nenhum inimigo. Cada vez que invocamos o Buda, dizemos, "querido Buda, seu coração é tão grande que você consegue abraçar a todos os seres vivos, sua compaixão abarca a totalidade do cosmos". É a mesma coisa quando seu coração é grande, chamando-os de amigos ou inimigos - você os abraça a todos e os ama, sejam eles cruéis ou menos cruéis, todos são igualmente objeto de sua solidariedade.

Se você é um estudante do Buda, tente praticar de modo que seu coração cresça a cada dia, para que você não sofra, Mesmo se disserem coisas muito cruéis e mesquinhas a você, se fizerem coisas cruéis a você, mesmo que tentem te suprimir e matar. Como se pode matar um rio? Como se pode matar a terra? Ela é tão grande. Alguma sujeira não destruirá o rio, porque o rio é grande. "Rahula, pratique como se você fosse a água. Se as pessoas jogam na água flores, fragrância, comida, leite ou urina, fezes ou corpos de animais mortos, a água continuará a receber tudo sem rancor, sem ressentimento, sem ódio; porque a água tem a capacidade de lavar tudo. Você pode lavar a tigela do Buda com água, lavar as roupas sujas, alguém cheio de sangue, a água receberá tudo, poderá lavar tudo, transformar tudo. Então, Rahula, por favor, pratique para que o seu coração se torne como a água, para poder receber tudo sem ressentimento ou rancor.

Rahula, pratique como o fogo. O que quer que você jogue ao fogo, roupa ou papel ou flores ou coisas sujas, o fogo aceitará e queimará tudo. Quer seja um perfume ou um mal cheiro o fogo aceita tudo e reduz tudo a cinzas e fumaça, porque o fogo tem o poder de transformar. Rahula, pratique como se fosse o ar. Se você joga no ar algo fragrante ou mal cheiroso, se você queima incenso ou borracha, o ar aceita tudo - porque o ar tem o poder de transformar, pois é imenso". O Buda estava instruindo o jovem monge Rahula, mas Shariputra, o tutor de Rahula, estava lá atrás, absorvendo cada palavra, e praticou esse ensinamento por muitos e muitos anos.

Retirado de uma Palestra de Dharma dada em Plum Village em 23 de julho 1996 - Be Like The Earth

(Tradução: Samuel Cavalcante)

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

De Onde Viemos? Para Onde Vamos?

O Buda tem um entendimento muito diferente de nossa existência. É o entendimento que nascimento e morte são noções. 

Elas não são reais. O fato de pensarmos que são verdadeiras cria uma poderosa ilusão que causa nosso sofrimento. O Buda ensinou que não há nascimento nem morte; não há vinda nem ida; não há igual, e não há diferente; não há eu permanente, não há aniquilação. Apenas achamos que há. 

Quando entendemos que não podemos ser destruídos, estamos libertos do medo. É um grande alívio. Podemos desfrutar da vida e apreciá-la de uma nova maneira.

O mesmo ocorre quando perdemos nossos entes queridos. Quando as condições não estão certas para suportar a vida, eles se retiram. Quando perdi minha mãe, sofri muito. Quando temos apenas 7 ou 8 anos de idade é difícil pensar que um dia perderemos nossa mãe. Ao final crescemos e todos perderemos nossas mães, mas se soubermos como praticar, quando a hora da separação chegar você não sofrerá muito. Rapidamente você perceberá que sua mãe está sempre viva dentro de você.

No dia que minha mãe faleceu, escrevi no meu diário: "Um sério infortúnio na minha vida chegou". Sofri por mais de um ano depois de sua passagem. Mas uma noite, nas terras altas do Vietnã, estava dormindo na cabana de meu eremitério. Sonhei com minha mãe. Vi-me sentado com ela e estávamos tendo um conversa maravilhosa. Ela parecia jovem e bonita, sei cabelo esvoaçante. Era muito prazeroso sentar lá e conversar com ela como se nunca tivesse morrido.

Quando acordei eram duas da manhã e eu senti fortemente que nunca havia perdido minha mãe. A impressão que ela estava ainda em mim era muito clara. Entendi então que a ideia de tê-la perdido era apenas uma ideia. Era óbvio naquele momento que minha mãe estava viva em mim.

Abri a porta e sai. Toda a colina estava banhada pela luz da lua. Era uma coina coberta com plantações de chá, e minha cabana estava localizada atrás do templo, no meio da colina. Andando devagar na luz da lua através da plantação, percebi que minha mãe estava ainda em mim. Ela era a luz da lua me acariciando assim como fazia frequentemente, muito carinhosa, muito doce... maravilhosa!

Cada vez que meus pés tocavam a terra, sabia que minha mãe estava lá comigo. Sabia que este corpo não era só meu, mas uma continuação viva da minha mãe e do meu pai e dos meus avós. Todos os meus ancestrais. Estes pés que eu via como meus eram na verdade nossos pés. Juntos minha mãe e eu estávamos deixando pegadas no solo úmido.

Daquele momento em diante, a ideia que eu tinha perdido minha mãe nunca mais existiu. Tudo que eu tenho que fazer é olhar para a palma da minha mão, sentir a brisa no meu rosto ou a terra sob meus pés para me lembrar que minha mãe está sempre comigo, disponível a qualquer momento.

Quando você perde um ente querido, você sofre. Mas se souber como olhar em profundidade, tem a chance de perceber que a natureza dele é a do não nascimento e não morte. Há manifestação e há a cessação da manifestação. Você tem que ser muito perspicaz e muito alerta para reconhecer as novas manifestações de uma pessoa. Mas com a prática e com esforço você pode fazer.

Portanto, pegando na mão de alguém que conheça a prática, faça uma meditação caminhando com ela. Preste atenção em todas as folhas, as flores, os pássaros e gotas de orvalho. Se puder parar e olhar profundamente, será capaz de reconhecer seu amado se manifestando novamente e novamente em muitas formas. Você novamente abraçará a alegria da vida.

Texto de Thich Nhat Hanh

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Nossos Ancestrais Estão Vivos em Nós


Minha mãe, meu pai, estão em mim,
E quando olho, eu os enxergo em mim,
O Buda, os patriarcas, eles estão em mim,
E quando olho, eu os enxergo em mim,
Sou uma continuação da minha mãe e do meu pai,
Sou uma continuação de todos os meus irmãos e irmãs,
É minha aspiração
Preservar e continuar a nutrir
Sementes de testemunho, sementes de habilidade, de felicidade
Que eu tiver herdado;
É também meu desejo reconhecer
As sementes de medo e sofrimento
Que eu tiver herdado,
E pouco a pouco transforma-las,
Sou uma continuação do Buda e dos patriarcas,
Sou uma continuação de todos os meus mestres espirituais,
É minha aspiração profunda
Preservar, desenvolver e nutrir
Sementes de compreensão, de amor, de liberdade
Que eles me transmitiram;
Em minha vida diária também quero semear
Sementes de amor e compaixão
Em minha própria consciência
E no coração das pessoas;
Estou determinado
A não regar sementes de desejo, aversão e violência nos outros,
Resoluto, com compaixão
Esta é a minha aspiração,
Possa a minha prática ser uma oferenda do coração,
Possa a minha prática ser uma oferenda do coração.


Bom dia, querida Sangha. Hoje é Domingo, 13 de Julho do ano 2008. Estamos no Templo do Néctar do Dharma, e hoje é o Dia dos Ancestrais.

As crianças cantaram, “Minha mãe, meu pai, estão em mim, e quando olho eu me vejo neles”.

Isso que você pode enxergar já é algo muito profundo. Você vê sua mãe e seu pai em você. Mas com quanta clareza e profundidade você pode ver isso? E quando você olha para a sua mãe e o seu pai, você se vê neles. Quão profundamente você enxerga isso?

Ontem, nós falamos sobre plantar uma semente de milho em solo úmido. Se você esperar por volta de dez dias, verá uma plantinha de milho surgir. Nas escrituras budistas, fala-se muito sobre sementes. Acho que nos Evangelhos cristãos também. Estamos falando de uma semente de milho, um grão de milho. E quando você vê a plantinha de milho talvez você queira fazer a ela a pergunta, “Plantinha de milho, você se lembra de duas semanas atrás, quando você era uma semente de milho?”

No início do ano nós fizemos um retiro na Itália, e havia muitas crianças nele, incluindo muitas crianças italianas. Havia cerca de oitocentos praticantes. No último dia do retiro eu ofereci uma semente de milho a cada um. Eu havia comprado um saco de sementes de milho numa loja ali perto, e acho que havia mais de mil sementes de milho naquele pequeno saco. Então distribui uma semente de milho a cada um. Pedi que eles a levassem para casa e plantassem, regassem todos os dias, e observassem à medida que fosse crescendo. Não ofereci uma semente de milho somente a cada criança, mas a cada adulto também, porque essa é a continuação da prática.

Quando você observa a planta de milho surgir, vê as primeiras duas folhinhas, depois as primeiras três folhinhas, e já não mais vê a semente de milho. Quando lá está a planta de milho, não se vê mais a semente de milho. Mas você não pode dizer que a semente de milho morreu. Não. Ela não morreu. Ela se tornou uma planta de milho. Então, se você for esperto, se for habilidoso, se for inteligente, quando olhar a planta de milho ainda poderá enxergar a semente de milho.

E quando você perguntar à plantinha de milho, “Minha querida plantinha de milho, lembra-se de que há duas semanas atrás você era uma semente de milho?” -- pode ocorrer que a planta de milho tenha se esquecido disso. Pode ser que a plantinha de milho tenha se esquecido de que há duas semanas atrás era uma semente de milho. Duas semanas não é muito tempo, mas a planta de milho pode esquecer-se. Então, você conversa com a planta de milho. Você diz, “Lembro-me muito bem que duas semanas atrás você era uma semente de milho. E que à medida que eu te dava água todos os dias, você foi capaz de germinar, e daí tornou-se uma plantinha de milho. Lembro-me muito bem. Talvez você não se lembre mais, mas eu sim.”

Assim você lembra à plantinha de milho que ela foi uma semente de milho. E embora agora você não veja a semente de milho, e a plantinha de milho não se enxergue a si mesma como uma semente de milho, a semente de milho está sempre lá. A pergunta que eu fiz às crianças e aos jovens no retiro da Itália era muito difícil, e alguns deles foram capazes de dar uma boa resposta. A pergunta era: a planta de milho e a semente de milho são uma ou duas coisas?

Se elas forem uma coisa, então ambas são a mesma coisa. Ou são elas duas coisas totalmente diferentes? Esta é uma pergunta budista; é uma que é difícil, a planta de milho e a semente de milho. Você sabe que a plantinha de milho vem da semente de milho, e agora a questão é saber se elas são uma coisa só ou se são duas coisas separadas.

Claro, houve crianças que disseram que elas eram uma única coisa. Houve crianças que disseram que elas eram duas coisas diferentes: a semente de milho não é a planta de milho, e a planta de milho não é a semente de milho. São distintas. Mas a resposta correta é a terceira. Algumas crianças disseram, “Bom, elas não são nem a mesma coisa nem duas coisas diferentes”. Essa é uma resposta complicada, mas é a correta.

O ensinamento desta manhã é um pouco difícil. Suponha que esta é a semente de milho e esta é a planta de milho. Sabemos muito bem que a planta de milho vem da semente de milho. Isso está claro, porque você mesmo plantou uma semente de milho e viu a semente de milho germinar e tornar-se uma plantinha de milho. Logicamente, você vê que a semente é uma semente. Uma planta é uma planta. Uma planta não pode ser uma semente, e uma semente não pode ser uma planta. Esta é a lógica formal. Mas se você olhar em profundidade – esta é uma outra palavra para meditação, e meditar é ter o tempo de olhar em profundidade – nós pensamos que estas coisas são duas coisas distintas, mas sem esta a outra não pode ser, porque a outra veio desta.

Então temos três respostas. A primeira é que a semente e a planta são um. A segunda resposta é a de que são duas coisas diferentes. E a terceira resposta diz que não são nem a mesma coisa nem duas coisas distintas. Não são nem a mesma coisa nem duas coisas diferentes porque a planta de fato mostra-se diferente da semente. A terceira resposta é a correta, não são nem o mesmo, nem diferentes.

Suponha que você olhe o álbum de família e se veja quando bebê. Você tinha apenas duas semanas de vida e sua mãe tirou a sua foto. A foto ainda está no álbum. E agora você tem 12 ou 14 anos de idade, e olha para o bebê. Você está tão diferente daquele bebezinho da foto. E você se pergunta, “Sou a mesma pessoa que aquele bebê ou sou uma pessoa totalmente diferente?” Você é bastante diferente em tamanho e muitos outros aspectos. A forma, os sentimento, as percepções, as formações mentais, consciência, todas elas são diferentes. Você está muito diferente do bebezinho da foto. Então dizer que você é o mesmo que aquele bebê está errado de alguma maneira, porque você está muito diferente do bebê. Mas dizer que você e o bebê são duas coisas completamente diferentes também está errado, porque sem aquele bebê você não pode ser você mesmo.

Então a resposta é o caminho do meio, e caminho do meio é uma expressão bastante budista. A resposta dada pelo Buda é que você não é a mesma pessoa nem uma pessoa diferente. Então a resposta budista é: nem o mesmo, nem diferente. E este é um dos ensinamentos mais profundos do Buda, mas eu acredito que mesmo que você seja muito jovem, você pode entendê-lo, porque é a verdade.

Quando você olha a si mesmo em profundidade, você vê o seu pai. Somente com meditação você pode ver isso claramente. A plantinha de milho pode ter dificuldade para enxergar em si mesma a semente de milho, mas fato é que ela é a semente de milho. Ela é a continuação da semente de milho, e a mesma coisa é verdadeira em relação a você. Você é a continuação do seu pai, a continuação da sua mãe. De alguma maneira, você é seu pai, você é sua mãe. Você não se parece exatamente como ele, mas ele está em você, e é esse o significado da frase que as crianças acabaram de cantar, “minha mãe, meu pai, eles estão em mim”.

Há uma meditação guiada aqui em Plum Village:

Inspirando, vejo o meu pai e a minha mãe em cada célula do meu corpo;

Ou

Inspirando, vejo a presença do meu pai e da minha mãe em cada célula do meu corpo;
Expirando, sorrio para o meu pai e a minha mãe em cada célula do meu corpo.

Você precisa visualizar isso. Você tem de ver isso como uma realidade e não somente como uma idéia, porque na meditação você enxerga concretamente, não fica somente com idéias abstratas. E saiba que isso é também muito científico, porque seu pai e sua mãe transmitiram-se a você. Eles não transmitiram outras coisas, como um carro ou a conta bancária. Eles transmitiram a si próprios a você, e estão realmente lá, em cada célula do seu corpo. Você vem do seu pai; você vem da sua mãe.

Há jovens que ficam com raiva de seus pais ou de suas mães; com muita raiva. Eles chegam a dizer até uma coisa assim estranha como, “Aquele homem (o pai dele), não quero ter nada a ver com ele nunca mais”. Quando você se irrita com seu pai, você pode dizer algo como, “Aquele homem, aquele cara, não quero ter nada a ver com ele”. Você está com raiva demais quando diz alguma coisa assim, porque não é a verdade. O fato é que você é a continuação do seu pai. Você é seu pai. Você não pode arrancar o seu pai de você. Impossível.

E o pai pode ficar bravo com o filho, e quando fica assim bravo não consegue enxergar a verdade. Ele pode dizer algo como, “Aquele menino, aquele moleque, ele não é meu filho. Meu filho não seria assim. Eu não o reconheço como meu filho”. Isso também não faz sentido, porque aquele jovem é a continuação dele. Não dá para dizer que não tem nada a ver com ele. Então, pai e filho precisam praticar o olhar em profundidade, de maneira a que cada qual veja a si mesmo no outro.

A mesma coisa é verdadeira com mãe e filha. Cerca de vinte anos atrás eu estava andando por uma rua de Londres, indo a uma livraria. Vi numa vitrine um livro com o título “Minha mãe, eu mesma”. Acho que era um livro de psicoterapia. Não comprei o livro, porque tive a impressão de que sabia o que ele continha. Era sobre mãe e filha. A filha ficando com raiva da mãe, e pensando que não tinham nada em comum, mas de repente vem o insight – você é filha dela. Você é ela. Você é uma continuação da sua mãe.

Numa Palestra do Dharma dada antes, neste mesmo ano, eu disse que temos nosso pai dentro de nós, mas ainda o temos fora de nós. Isso faz sentido. E meu pai dentro de mim pode ser um pouco diferente daquele fora de mim. Por quê? No início, quando ele se transmitiu a mim, o pai dentro de mim e o pai fora de mim eram muito parecidos. Mas porque vivi muitas situações diferentes, em ambientes distintos, o pai dentro de mim evoluiu diferente daquele que há fora. E se eu sou um bom praticante, então meu pai em mim pode ser transformado numa boa direção. Se eu pratico plena consciência, concentração, insight, bondade amorosa, compaixão, então elas penetram no meu pai, também.

Este meu pai evoluiu no caminho da transformação e da cura, então meu pai em mim pode ser mais belo que o pai fora de mim, porque eu sou um bom praticante. O que herdei de meu pai beneficia-se da minha prática. É por isso que meu pai está crescendo de maneiras distintas dentro e fora de mim.

Então, tenho um relacionamento melhor com o pai dentro de mim, e quero melhorar esse tipo de relacionamento com o pai fora de mim, também. No caso de ser um bom praticante, isso não é difícil. Porque você evoluiu juntamente com o seu pai. Você cultivou mais bondade amorosa, paciência, compaixão e compreensão. É por isso que você pode ajudar seu pai fora de você a mudar, a se transformar. Mas se você não pratica, então você ainda terá muita raiva, discriminação e irritação, e nesse caso não poderá ajudar muito o seu pai.

O fato é que meu pai está tanto dentro quanto fora de mim. Quando o pai que está fora de mim morre, o pai dentro de mim continua a viver. E eu vou transmitir meu pai para meu filho e para minha filha.

Meu pai e minha mãe, eles são meus ancestrais, os meus ancestrais mais jovens. Como seres humanos, nós temos ancestrais humanos. Tivemos diversas gerações de ancestrais humanos e, geneticamente falando, todos os nossos ancestrais estão vivos em nós. Pensamos que todos eles já morreram, porém isso não é verdade. Nossos ancestrais de diversas gerações ainda estão vivos em nós, e nós os carregamos futuro adentro. Nós os transmitimos futuro adentro. Então, quando você se casa e tem filhos, você transmite seus ancestrais aos seus filhos. Os seus ancestrais adentram, assim, o futuro.

(Palestra de Dharma de Thich Naht Hanh em Plum Village em 13 de julho de 2008)
(Traduzido por Marcelo Abreu – Sangha Plena Consciência)

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Pais e Filhos


O método de prática conhecido como contemplar com bondade amorosa e compaixão pode trazer grande calma e felicidade. Bondade amorosa é levar felicidade para outras pessoas; compaixão  significa aliviar o sofrimento delas. A chave que abre a porta para a bondade amorosa e compaixão é a nossa capacidade de entender nosso próprio sofrimento e dificuldades, e o sofrimento e as dificuldades dos outros. Se pudermos ver e entender nosso próprio sofrimento, então facilmente poderemos ver e entender as dificuldades da outra pessoa e vice-versa.

Esta é a prática de olhar profundamente para a primeira e segunda das Quatro Nobres Verdades, as quatro verdades sagradas e maravilhosas do budismo. As Quatro Nobres Verdades são: primeira, há o sofrimento; segunda, há um caminho ou uma série de condições que produziram esse sofrimento; terceira, o sofrimento pode ser extinto – felicidade é sempre possível; e quarta, há um caminho que leva à cessação do sofrimento, para a felicidade.

Ao identificar e aceitar nossas dificuldades (a primeira Nobre Verdade), para então olhar em profundidade para elas e suas causas raiz (a segunda verdade), nos torna capazes de ver uma saída, o caminho da liberação (a quarta verdade). A transformação e cessação do sofrimento adquirida ao se tomar esse caminho é a Terceira Nobre Verdade.

Aqui está um exemplo de como a prática funciona. Um pai está fazendo seu filho sofrer. O pai não vê que ele está causando esse sofrimento para o filho e para si mesmo. Ele realmente acredita que o modo que está tratando seu filho é para seu bem. Na verdade não é bem assim.

A verdade é que o pai tem muitas dificuldades e feridas, mas ainda tem que enxergá-las (a primeira Nobre Verdade: aceitação do sofrimento) e olhar para suas causas raiz (a segunda Nobre verdade: o caminho que leva ao sofrimento). Ele não sabe como lidar com seu próprio sofrimento, faz seu filho sofrer e acredita que seu filho é aquele que causa toda a infelicidade.

Talvez desde pequeno o pai era objeto de tratamentos cruéis por seu próprio pai, o avô. O avô despejou toda sua raiva e sofrimento neste pai; e agora o pai está fazendo o mesmo que o avô, despejando sua raiva e dor no seu filho. A roda do samsara gira de novo e de novo, enquanto o sofrimento passa de uma geração para a outra. O pai não vê a segunda Nobre Verdade, a origem do sofrimento. Agora é a hora do filho praticar:

Inspirando, me vejo como uma criança de cinco anos
Expirando, sorrio para a criança de cinco anos que ainda está viva e presente em mim
Inspirando, vejo a criança de cinco anos em mim frágil, vulnerável e ferida
Expirando, abraço a criança de cinco anos em mim com todo meu entendimento e amor

Esta é a primeira parte da prática, voltar a si mesmo, reconhecer e abraçar a pequena criança dentro de você. Até agora você esteve muito ocupado para fazer isto. Agora você volta para falar e abraçar esta criança. O processo de cura pode começar.

Quando você tiver praticado a primeira parte com sucesso, pode ir para a segunda parte:

Inspirando, vejo meu pai como uma criança de cinco anos
Expirando, sorrio para meu pai com cinco anos de idade.

Talvez você nunca tenha imaginado seu pai como um pequeno e gentil garoto. A verdade é que seu pai uma vez foi frágil e vulnerável, podia facilmente ser ferido, assim como todas as outras crianças.

Inspirando, vejo meu pai com cinco anos, frágil, vulnerável e ferido.
Expirando, olho para esta criança ferida com todo meu entendimento e amor

Muitas pessoas tiveram dificuldades dolorosas nas relações com seus pais. Você pode nem ter percebido até agora que a criança de cinco anos de idade que se tornou seu pai está aqui hoje, presente em você, assim como nele. Ambos seu pai e mãe transmitiram nada menos que eles inteiros para você. De fato, você e seu pai não são duas pessoas completamente diferentes, apesar de não serem exatamente a mesma pessoa também. O mesmo é verdade com relação a sua mãe. Este insight maravilhoso pode ser chamado “Nem um, nem dois” – nem exatamente o mesmo, nem totalmente diferente.

Se você puder abraçar a criança de cinco anos de idade dentro de você, poderá abraçar a criança de cinco anos de idade nos outros também, e então a transformação de sua relação pode acontecer muito rapidamente. Se apenas seu pai tivesse tido a chance de aprender isso quando jovem, não teria causado sofrimento a ele e a você.

Mas ele não foi tão afortunado, portanto você tem que praticar por você e também por seu pai em você. Quando você transformar seu pai dentro de você, será capaz de ajudar seu pai fora de você a se transformar muito mais facilmente. Praticando deste modo poderemos efetuar uma transformação em nós mesmos assim como em nossos pais, e evitaremos repetir os mesmos erros com nossos filhos. A roda do sofrimento será parada finalmente.

Este entendimento profundo do sofrimento e de suas causas raiz faz nascer aceitação e amor. Quando podemos amar e aceitar, nos sentimos muito melhor e também seremos capazes de ajudar as outras pessoas a se transformar – uma tia ou tio, um irmão ou irmã, um colega ou amigo.

Em você há uma semente de uma formação mental chamada prajna, “insight”. Significa profundo entendimento. Quando o entendimento profundo está presente, a situação muda imediatamente. Prajna é, primeiramente, ver e entender qualquer sofrimento que esteja presente assim como sua natureza e origem. Praticando o olhar em profundidade, usando os exercícios acima, nos faz aumentar nossa capacidade de estar presente para todas as atividades de nossa mente; mas às vezes esquecemos ou não realmente nos aplicamos em usá-los, especialmente quando as paixões estão inflamadas.

Nesses momentos precisamos da intervenção da plena atenção. Plena atenção é uma formação mental que é a mais essencial e necessária para nossa prática. Deveríamos lembrar que a plena atenção sempre leva ao insight. Quando temos insight, muito naturalmente aceitamos, perdoamos, amamos e somos felizes. Quando falta insight, mudamos a direção para a raiva, ciúme, ódio e sofrimento.


(Do livro “Peace is every breathe” – Thich Nhat Hanh)
(Traduzido por Leonardo Dobbin)

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Ficando Verdadeiramente Vivo


O que você faria se um médico te dissesse que você tem apenas três meses de vida? Você perderia este tempo lamentando seu destino? Você se entregaria à dor e ao desespero? Ou resolveria viver cada momento desses três meses de uma maneira profunda? Se você fizer isso, três meses de vida é muito.

Cerca de vinte anos atrás, um jovem veio até mim e disse exatamente isso – ele tinha apenas três meses de vida. Eu pedi que ele se sentasse e tomasse uma xícara de chá. “Meu amigo”, eu disse a ele, “você deve viver este momento que temos juntos de uma maneira profunda”.

Um dia é muito. Um piquenique dura apenas metade do dia, mas você pode vivê-lo plenamente, com muita felicidade. Por que não três meses? Sua vida é um tipo de piquenique e você deveria arrumá-la de forma inteligente.

Alguém que conheço, uma vez disse a seu professor de budismo, “Mestre, eu gostaria de ir a um piquenique com você”.  O professor estava muito ocupado e, portanto, respondeu. “Claro, claro, iremos a um piquenique um dia desses”. O tempo passou e cinco anos depois eles ainda não tinham ido a um piquenique.

Um dia o professor e o discípulo estavam resolvendo algum assunto juntos, e eles se encontraram no meio de um engarrafamento. Havia tantas pessoas na rua que o mestre perguntou ao discípulo: “O que estas pessoas estão fazendo?” O discípulo viu que era uma procissão de funeral. Ele virou ao mestre e disse, “Eles estão tendo um piquenique”.

Não espere para começar a viver. Viva agora! Sua vida deveria ser real neste exato momento. Se você viver assim, três meses é muito! Você pode viver cada momento de cada dia profundamente, em contato com as maravilhas da vida. Então você aprenderá a viver e, ao mesmo tempo, aprenderá a morrer. Uma pessoa que não sabe como morrer, não sabe como viver e vice-versa. Você deveria aprender a morrer – a morrer imediatamente. Esta é a prática.

Você está pronto para morrer agora? Você está pronto para organizar suas atividades de forma que possa morrer em paz esta noite? Isto pode ser um desafio, mas esta é a prática. Se você não fizer isso, será sempre atormentado pelo sentimento de perda. Se você não quer sofrer, se não quiser ser atormentado pelo sentimento de perda, a única solução é viver cada minuto que tem de uma maneira profunda. Isto é tudo que se tem para fazer. A única maneira para se lidar com a insegurança, medo e sofrimento é viver o momento presente de uma maneira profunda. Se você fizer isso, não terá lamentos.

Foi isto que o jovem que tinha apenas três meses de vida fez. Ele decidiu viver cada momento da sua vida de uma maneira profunda. Quando ele começou a fazer isso, sentiu as fontes do desespero o deixando e ele voltou ao seu centro. Foi um milagre. Embora seu médico tenha pronunciado uma espécie de sentença de morte, ele viveu outros quinze anos. Eu dei a ele o nome de Dharma Chân Sinh, que significa “vida verdadeira”. Antes que dissessem a ele que iria morrer, ele não sabia o que era a vida real. Mas depois que isso aconteceu, ele aprendeu o que era a vida real, porque estava presente para cada momento de cada dia.

Albert Camus no seu romance “O Estrangeiro”, usou o termo “o momento de consciência”. Quando o protagonista do romance, Meursault, sabe que será executado pelo assassinato que cometeu, ansiedade, medo e raiva nasceram nele. Em desespero, ele estava deitado na sua cama na prisão olhando para o teto quando, pela primeira vez, ele vê o quadrado de céu azul. O céu é tão azul – era a primeira vez na sua vida que ele tinha profundo contato com o céu azul. Ele já tinha vivido por décadas sem realmente nunca ter visto aquilo. Talvez ele tenha olhado para o céu de vez em quando, mas não o tinha visto de uma maneira profunda. Agora, três dias antes de sua morte, ele era capaz de tocar o céu azul de uma maneira verdadeira e profunda. O momento de consciência se manifestou.

Meursault decidiu viver cada minuto que ainda tinha plenamente e profundamente. Aqui está um prisioneiro que está praticando meditação profunda. Ele vive seus últimos três dias na sua cela dentro do quadrado de céu azul. Esta é a sua liberdade. Na tarde do último dia, um padre católico vem à cela de Meursault para lhe dar os últimos ritos, mas ele recusa. Ele não quer perder as poucas horas que tem falando com o padre, e não o deixa entrar. Ele diz: ”O padre está vivendo como um morto. Ele não está vivendo como eu, eu estou verdadeiramente vivo”.

Talvez estejamos também vivendo como mortos. Nos movemos pela vida nos nossos próprios cadáveres porque não tocamos a vida em profundidade. Vivemos um tipo de vida artificial, com muitos planos, muitas preocupações e raiva. Nunca somos capazes de nos estabelecer no aqui e agora, e viver nossas vidas profundamente. Temos que acordar! Temos que fazer o possível para o momento de consciência se manifestar. Esta é a prática que irá nos salvar – esta é a revolução.

O momento mais maravilhoso da sua vida já aconteceu? Pergunte a si mesmo isso. A maioria de nós responderá que não aconteceu ainda, mas que poderá acontecer a qualquer momento. Não importa a nossa idade, tendemos a sentir que o momento mais maravilhoso de nossa vida não aconteceu ainda. Tememos que seja muito tarde, mas estamos ainda esperando. Mas a verdade é que se continuarmos a viver no esquecimento – isto é, sem a presença da plena consciência – este momento nunca acontecerá.

O ensinamento do Buda te diz claramente e plenamente para fazer deste o momento mais magnífico e maravilhoso da sua vida. Este momento presente deve se tornar o mais maravilhoso da sua vida. Tudo que você precisa para transformar este momento em uma maravilha é liberdade. Tudo que você precisa é libertar a si mesmo de suas preocupações sobre o passado, futuro e tudo mais.

O profundo insight da impermanência é o que nos ajuda a fazer isto. É muito útil manter viva nossa concentração na impermanência. Você pode pensar que a outra pessoa na sua vida estará presente para sempre, mas isto não é verdade. Esta pessoa é impermanente, assim como você. Portanto se você pode fazer algo para deixar esta pessoa feliz, deveria fazer imediatamente. Qualquer coisa que você possa dizer ou fazer que a deixe feliz – diga ou faça agora! É agora ou nunca.

Na prática do budismo, morrer é muito importante. É tão importante quanto viver. Morrer é tão importante quanto nascer, porque nascimento e morte intersão. Sem nascimento, não poderia haver morte. Sem morte não poderia haver nascimento. Nascimento e morte são amigos próximos e a colaboração entre os dois é necessária para a vida ser possível.

Portanto não tenha medo da morte. Morte é apenas uma continuação assim como o nascimento. A cada momento, a morte está acontecendo no seu corpo – algumas células estão morrendo de forma que outras possam nascer. Morte é indispensável à vida. Se não houvesse morte, não haveria nascimento, assim como não poderia haver esquerda se não houvesse a direita. Não mantenha esperanças que a vida seja possível sem morte. Você deve aceitar a ambos.

Se você praticar bem, poderá ganhar um insight profundo da dimensão última, a dimensão absoluta, enquanto permanece em contato com a dimensão histórica, relativa. E quando você estiver em contato profundo com a dimensão histórica, também tocará a dimensão última, e verá que sua natureza verdadeira é a do não-nascimento e não-morte.

Viver é uma alegria. Morrer de forma a começar novamente é também uma alegria. Recomeçar é uma coisa maravilhosa, e recomeçamos constantemente. Começar de novo é uma das práticas principais em Plum Village e nós devemos morrer todo dia de forma a nos renovarmos, de forma a termos um recomeço refrescante. Aprender a morrer é uma prática muito profunda.

(Do livro “You are here”, de Thich Nhat Hanh)
(Tradução para o português: Leonardo Dobbin)

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Ahimsa: O Caminho de Ser Inofensivo


A palavra sânscrita ahimsa, usualmente traduzida como não-violência literalmente significa, não ferir ou ser inofensivo. Para praticar ahimsa, primeiramente temos que praticá-la dentro de nós mesmos. Em cada um de nós, há certa quantidade de violência. Dependendo do nosso estado, nossa resposta às coisas será mais ou menos não-violenta. Mesmo se formos orgulhosos de sermos vegetarianos, por exemplo, temos que reconhecer que a água em que cozinhamos os vegetais contém muitos micro-organismos. Não podemos ser completamente não violentos, mas sendo vegetarianos, estamos indo na direção da não violência. Se quisermos ir para o norte, podemos usar a Estrela do Norte para nos guiar, mas é impossível chegar até ela. Nosso esforço é apenas nos dirigirmos naquela direção.

Qualquer um pode praticar alguma não-violência, mesmo soldados. Alguns generais, por exemplo, conduzem suas operações de modo a evitar matar pessoas inocentes. Isto é um tipo de não violência. Para ajudar soldados a se moverem para uma direção não-violenta, temos que estar em contato com eles. Se dividirmos a realidade em dois campos – o violento e o não-violento – e ficarmos em um campo enquanto atacamos o outro, o mundo nunca terá paz. Sempre acusaremos e condenaremos aqueles que sentimos que são responsáveis pelas guerras e injustiças sociais, sem reconhecer o grau de violência em nós mesmos. Precisamos trabalhar em nós mesmos e também naqueles que condenamos se quisermos ter um impacto real.

Nunca ajuda desenhar uma linha e responsabilizar algumas pessoas como inimigas, mesmo aqueles que agem violentamente. Temos que abordá-los com amor nos nossos corações e fazer o nosso melhor para ajudá-los a se mover na direção da não-violência. Se trabalharmos pela paz baseados na raiva, nunca iremos ter sucesso. Paz não é um fim. Ela nunca pode acontecer através de meios não pacíficos.

Quando protestamos contra uma guerra, podemos assumir que somos uma pessoa pacífica, um representante da paz, mas pode não ser o caso. Se olharmos em profundidade, observaremos que as raízes da guerra estão nos modos não conscientes que temos vivido. Não plantamos sementes suficientes para a paz e entendimento em nós mesmos e nos outros, portanto somos co-responsáveis: “Como eu tenho sido assim, eles são daquele jeito.”

Uma abordagem mais holística é o caminho do “interser”: “Isto é assim, porque aquilo é daquele jeito.” Este é o caminho do entendimento e amor. Com este insight, podemos ver claramente e ajudar nosso governo a ver também. Então poderemos ir a uma passeata e dizer, “Esta guerra é injusta, destrutiva e não merecedora da nossa grande nação.” Isto é muito mais efetivo que raivosamente condenar os outros. A raiva sempre acelera o estrago.

Sabemos como escrever fortes cartas de protesto, mas também precisamos escrever cartas de amor para o nosso presidente e representantes, demonstrando entendimento e usando o tipo de linguagem que eles irão apreciar. Se não fizermos isso, nossas cartas podem acabar no lixo e não ajudar ninguém. Amar é entender. Não podemos expressar amor para alguém a não ser que o entendamos. Se não entendermos nosso presidente ou congressistas não poderemos escrever para eles cartas de amor.

As pessoas ficam felizes em ler boas cartas nas quais compartilhamos nossos insights e nosso entendimento. Quando eles recebem este tipo de carta, se sentem entendidos e prestarão atenção às nossas recomendações. Você pode pensar que a maneira de mudar o mundo é eleger um novo presidente, mas um governo é apenas um reflexo da nossa própria consciência. Para criar uma mudança fundamental, nós, membros da sociedade, temos que nos transformar. Se quisermos paz real, temos que demonstrar nosso amor e entendimento de forma que os responsáveis pelas decisões aprendam de nós.

Todos nós, mesmo pacifistas, temos dor dentro de nós. Nós nos sentimos com raiva e frustrados, e precisamos encontrar alguém disposto a nos ouvir e que seja capaz de entender nosso sofrimento. Na iconografia budista, há um bodisatva chamado Avalokitesvara que tem 1.000 braços, 1.000 mãos e tem um olho na palma de cada mão. Mil mãos representam ação e o olho em cada palma de mão representa o entendimento. Quando você entende uma situação ou pessoa, qualquer ação que faz ajudará e não causará mais sofrimento. Quando você tem um olho na sua mão, sabe como praticar a verdadeira não-violência.

Imagine se cada uma das nossas mãos tivessem um olho nelas. É fácil representar numa figura uma mão com um olho, mas como pode um artista também colocar um olho nas suas palavras? Antes de dizer algo, temos que entender o que estamos dizendo e a pessoa para quem nossas palavras são direcionadas. Com o olho do entendimento, não diremos coisas que façam outras pessoas sofrerem. Culpar e discutir são formas de violência. Quando falamos, se sofremos grandemente, nossas palavras podem ser amargas e não irão ajudar ninguém. Temos que aprender a nos acalmar e sermos uma flor antes de falarmos. Esta é a “arte da fala amorosa.”

Ouvir também é uma prática profunda. O bodisatva Avalokitesvara tem um profundo talento para a escuta. Em chinês seu nome significa “ouvindo os choros do mundo.” Temos que ouvir de uma maneira que entendamos o sofrimento dos outros. Temos que nos esvaziar e deixar espaço de forma que possamos ouvir bem. Se inspirarmos e expirarmos para nos refrescarmos e nos esvaziarmos, seremos capazes de sentarmos parados e ouvir à pessoa que está sofrendo.

Quando esta pessoa está sofrendo, ela precisa de alguém que a ouça com atenção sem julgar ou reagir. Se ela não puder achar alguém na família, pode ir a um terapeuta. Apenas por sermos ouvidos profundamente, já aliviamos uma grande parte da dor. Esta é uma prática importante de paz. Temos que ouvir dentro de nossas famílias e comunidades. Temos que ouvir a todos especialmente àqueles que consideramos nossos inimigos. Quando mostrarmos nossa capacidade de escuta e entendimento, a outra pessoa também irá nos ouvir, e teremos a chance de falar sobre nossa dor. Este é o começo da cura.

O pensamento é a base de tudo, é importante para nós colocar um olho de consciência em cada um de nossos pensamentos. Sem um correto entendimento da situação ou pessoa, nossos pensamentos podem nos levar ao erro e criar confusão, desespero, raiva e ódio. Nossa tarefa mais importante é desenvolver o insight correto. Se olharmos profundamente na natureza do interser, que todas as coisas intersão, pararemos de culpar, discutir e matar e nos tornaremos amigos de todos.

Há três domínios da ação – corpo, fala e mente. Adicionalmente, há a não-ação, que é frequentemente mais importante que a ação. Sem fazermos nada, as coisas às vezes podem ir mais suavemente, apenas devido à nossa presença pacífica. Em um barco pequeno quando uma tempestade vem, se uma pessoa fica sólida e calma, os outros não entrarão em pânico, e o barco terá maiores possibilidades de continuar flutuando. Em muitas circunstâncias, não-ação é fundamental para o nosso bem-estar.

Se pudermos aprender o modo de vida que a árvore tem – permanecendo frescos e sólidos, pacíficos e calmos – mesmo se não fizermos muitas coisas, outros se beneficiarão de nossa não-ação, de nossa presença. Podemos também praticar a não-ação no domínio da fala. Palavras podem criar entendimento e aceitação mútua, ou podem causar o sofrimento dos outros. O melhor às vezes é não falar nada. Este é um texto sobre ação social não violenta, mas precisamos discutir também não-ação não violenta. Se quisermos realmente ajudar o mundo, a prática da não-ação é essencial.

É claro, às vezes não-ação pode causar danos. Quando alguém precisa de nossa ajuda e recusamos, ela pode morrer. Se um monge, por exemplo, vê uma mulher se afogar e não quer tocá-la por causa de seus preceitos, ele irá violar o mais fundamental princípio da vida. Quando vemos uma injustiça social, se praticarmos não-ação, podemos causar danos. Quando pessoas precisam de nós para dizer ou fazer algo, se não fizermos nada, podemos matar pela nossa inação ou silêncio.

Para praticar ahimsa, primeiramente precisamos aprender a lidar pacificamente conosco mesmos. Se criarmos verdadeira harmonia dentro de nós, saberemos como lidar com a família, amigos e associados. Técnicas são sempre secundárias. O mais importante é se tornar ahimsa, de forma que quando uma situação se apresente, não criaremos mais sofrimento. Para praticar ahimsa, precisamos de gentileza, bondade amorosa, compaixão, alegria e equanimidade direcionadas a nossos corpos, nossos sentimentos e outras pessoas.

A paz real deve ser baseada no insight e entendimento e para isso devemos praticar a reflexão profunda – olhar profundamente dentro de cada ato e cada pensamento da nossa vida diária.

Com plena consciência – a prática da paz – podemos começar a trabalhar para transformar as guerras em nós mesmos. Há técnicas para fazer isso. Respiração consciente é uma. A cada vez que ficamos aborrecidos, podemos parar o que estamos fazendo, evitar dizer qualquer coisa, e inspirar e expirar várias vezes, consciente de cada inspiração e expiração.

Se continuarmos aborrecidos podemos ir para uma meditação caminhando, conscientes de cada passo lento e cada respiração que dermos. Através do cultivo da paz interior, levamos paz para a sociedade. Depende de nós. Praticar a paz interior é minimizar o número de guerras entre este e aquele sentimento, ou entre esta e aquela percepção, e então podemos ter paz real com os outros também, incluindo membros de nossa própria família.

Sou sempre questionado, “E se você estiver praticando amor e paciência e alguém invade sua casa e tenta sequestrar sua filha ou matar seu marido? O que você faria? Você deveria matar a pessoa ou agir de uma maneira não-violenta?” A resposta depende do estado de seu ser. Se você estiver preparada, você pode reagir calmamente e inteligentemente, do modo mais não violento possível. Mas para estar preparado para reagir com inteligência e não-violência, você tem que se treinar antes. Pode levar dez anos ou mais.

Se você esperar até a hora da crise para perguntar, será tarde demais.Uma resposta deste ou daquele tipo seria superficial. Neste momento crucial, mesmo se souber que não-violência é melhor que violência, se seu entendimento for apenas intelectual e não estiver em todo o seu ser, você não agirá não-violentamente. O medo e a raiva em você não te deixarão agir do modo mais não-violento.

Para evitar a guerra, para prevenir a próxima crise, precisamos começar exatamente agora. Quando uma guerra ou crise começou já é tarde. Se nós e nossos filhos praticarmos ahimsa nas nossas vidas diárias, se aprendermos como plantar sementes de paz e reconciliação em nossos corações e mentes, começaremos a estabelecer paz real, e deste modo, podemos ser capazes de evitar a próxima guerra. Se outra guerra vier, saberemos que fizemos o nosso melhor.

Dez anos será tempo suficiente para evitar outra guerra? Quanto tempo leva para respirar conscientemente, sorrir, e estar totalmente presente a cada momento? Nosso inimigo real é o esquecimento. Se nutrirmos a plena consciência a cada dia e regarmos as sementes de paz em nós mesmos e naqueles a nossa volta, temos uma boa chance de evitar a próxima guerra e desarmar a próxima crise.

(Do livro “Love in action”– Thich Nhat Hanh)
(Traduzido por Leonardo Dobbin)