segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Nossos Ancestrais Estão Vivos em Nós


Minha mãe, meu pai, estão em mim,
E quando olho, eu os enxergo em mim,
O Buda, os patriarcas, eles estão em mim,
E quando olho, eu os enxergo em mim,
Sou uma continuação da minha mãe e do meu pai,
Sou uma continuação de todos os meus irmãos e irmãs,
É minha aspiração
Preservar e continuar a nutrir
Sementes de testemunho, sementes de habilidade, de felicidade
Que eu tiver herdado;
É também meu desejo reconhecer
As sementes de medo e sofrimento
Que eu tiver herdado,
E pouco a pouco transforma-las,
Sou uma continuação do Buda e dos patriarcas,
Sou uma continuação de todos os meus mestres espirituais,
É minha aspiração profunda
Preservar, desenvolver e nutrir
Sementes de compreensão, de amor, de liberdade
Que eles me transmitiram;
Em minha vida diária também quero semear
Sementes de amor e compaixão
Em minha própria consciência
E no coração das pessoas;
Estou determinado
A não regar sementes de desejo, aversão e violência nos outros,
Resoluto, com compaixão
Esta é a minha aspiração,
Possa a minha prática ser uma oferenda do coração,
Possa a minha prática ser uma oferenda do coração.


Bom dia, querida Sangha. Hoje é Domingo, 13 de Julho do ano 2008. Estamos no Templo do Néctar do Dharma, e hoje é o Dia dos Ancestrais.

As crianças cantaram, “Minha mãe, meu pai, estão em mim, e quando olho eu me vejo neles”.

Isso que você pode enxergar já é algo muito profundo. Você vê sua mãe e seu pai em você. Mas com quanta clareza e profundidade você pode ver isso? E quando você olha para a sua mãe e o seu pai, você se vê neles. Quão profundamente você enxerga isso?

Ontem, nós falamos sobre plantar uma semente de milho em solo úmido. Se você esperar por volta de dez dias, verá uma plantinha de milho surgir. Nas escrituras budistas, fala-se muito sobre sementes. Acho que nos Evangelhos cristãos também. Estamos falando de uma semente de milho, um grão de milho. E quando você vê a plantinha de milho talvez você queira fazer a ela a pergunta, “Plantinha de milho, você se lembra de duas semanas atrás, quando você era uma semente de milho?”

No início do ano nós fizemos um retiro na Itália, e havia muitas crianças nele, incluindo muitas crianças italianas. Havia cerca de oitocentos praticantes. No último dia do retiro eu ofereci uma semente de milho a cada um. Eu havia comprado um saco de sementes de milho numa loja ali perto, e acho que havia mais de mil sementes de milho naquele pequeno saco. Então distribui uma semente de milho a cada um. Pedi que eles a levassem para casa e plantassem, regassem todos os dias, e observassem à medida que fosse crescendo. Não ofereci uma semente de milho somente a cada criança, mas a cada adulto também, porque essa é a continuação da prática.

Quando você observa a planta de milho surgir, vê as primeiras duas folhinhas, depois as primeiras três folhinhas, e já não mais vê a semente de milho. Quando lá está a planta de milho, não se vê mais a semente de milho. Mas você não pode dizer que a semente de milho morreu. Não. Ela não morreu. Ela se tornou uma planta de milho. Então, se você for esperto, se for habilidoso, se for inteligente, quando olhar a planta de milho ainda poderá enxergar a semente de milho.

E quando você perguntar à plantinha de milho, “Minha querida plantinha de milho, lembra-se de que há duas semanas atrás você era uma semente de milho?” -- pode ocorrer que a planta de milho tenha se esquecido disso. Pode ser que a plantinha de milho tenha se esquecido de que há duas semanas atrás era uma semente de milho. Duas semanas não é muito tempo, mas a planta de milho pode esquecer-se. Então, você conversa com a planta de milho. Você diz, “Lembro-me muito bem que duas semanas atrás você era uma semente de milho. E que à medida que eu te dava água todos os dias, você foi capaz de germinar, e daí tornou-se uma plantinha de milho. Lembro-me muito bem. Talvez você não se lembre mais, mas eu sim.”

Assim você lembra à plantinha de milho que ela foi uma semente de milho. E embora agora você não veja a semente de milho, e a plantinha de milho não se enxergue a si mesma como uma semente de milho, a semente de milho está sempre lá. A pergunta que eu fiz às crianças e aos jovens no retiro da Itália era muito difícil, e alguns deles foram capazes de dar uma boa resposta. A pergunta era: a planta de milho e a semente de milho são uma ou duas coisas?

Se elas forem uma coisa, então ambas são a mesma coisa. Ou são elas duas coisas totalmente diferentes? Esta é uma pergunta budista; é uma que é difícil, a planta de milho e a semente de milho. Você sabe que a plantinha de milho vem da semente de milho, e agora a questão é saber se elas são uma coisa só ou se são duas coisas separadas.

Claro, houve crianças que disseram que elas eram uma única coisa. Houve crianças que disseram que elas eram duas coisas diferentes: a semente de milho não é a planta de milho, e a planta de milho não é a semente de milho. São distintas. Mas a resposta correta é a terceira. Algumas crianças disseram, “Bom, elas não são nem a mesma coisa nem duas coisas diferentes”. Essa é uma resposta complicada, mas é a correta.

O ensinamento desta manhã é um pouco difícil. Suponha que esta é a semente de milho e esta é a planta de milho. Sabemos muito bem que a planta de milho vem da semente de milho. Isso está claro, porque você mesmo plantou uma semente de milho e viu a semente de milho germinar e tornar-se uma plantinha de milho. Logicamente, você vê que a semente é uma semente. Uma planta é uma planta. Uma planta não pode ser uma semente, e uma semente não pode ser uma planta. Esta é a lógica formal. Mas se você olhar em profundidade – esta é uma outra palavra para meditação, e meditar é ter o tempo de olhar em profundidade – nós pensamos que estas coisas são duas coisas distintas, mas sem esta a outra não pode ser, porque a outra veio desta.

Então temos três respostas. A primeira é que a semente e a planta são um. A segunda resposta é a de que são duas coisas diferentes. E a terceira resposta diz que não são nem a mesma coisa nem duas coisas distintas. Não são nem a mesma coisa nem duas coisas diferentes porque a planta de fato mostra-se diferente da semente. A terceira resposta é a correta, não são nem o mesmo, nem diferentes.

Suponha que você olhe o álbum de família e se veja quando bebê. Você tinha apenas duas semanas de vida e sua mãe tirou a sua foto. A foto ainda está no álbum. E agora você tem 12 ou 14 anos de idade, e olha para o bebê. Você está tão diferente daquele bebezinho da foto. E você se pergunta, “Sou a mesma pessoa que aquele bebê ou sou uma pessoa totalmente diferente?” Você é bastante diferente em tamanho e muitos outros aspectos. A forma, os sentimento, as percepções, as formações mentais, consciência, todas elas são diferentes. Você está muito diferente do bebezinho da foto. Então dizer que você é o mesmo que aquele bebê está errado de alguma maneira, porque você está muito diferente do bebê. Mas dizer que você e o bebê são duas coisas completamente diferentes também está errado, porque sem aquele bebê você não pode ser você mesmo.

Então a resposta é o caminho do meio, e caminho do meio é uma expressão bastante budista. A resposta dada pelo Buda é que você não é a mesma pessoa nem uma pessoa diferente. Então a resposta budista é: nem o mesmo, nem diferente. E este é um dos ensinamentos mais profundos do Buda, mas eu acredito que mesmo que você seja muito jovem, você pode entendê-lo, porque é a verdade.

Quando você olha a si mesmo em profundidade, você vê o seu pai. Somente com meditação você pode ver isso claramente. A plantinha de milho pode ter dificuldade para enxergar em si mesma a semente de milho, mas fato é que ela é a semente de milho. Ela é a continuação da semente de milho, e a mesma coisa é verdadeira em relação a você. Você é a continuação do seu pai, a continuação da sua mãe. De alguma maneira, você é seu pai, você é sua mãe. Você não se parece exatamente como ele, mas ele está em você, e é esse o significado da frase que as crianças acabaram de cantar, “minha mãe, meu pai, eles estão em mim”.

Há uma meditação guiada aqui em Plum Village:

Inspirando, vejo o meu pai e a minha mãe em cada célula do meu corpo;

Ou

Inspirando, vejo a presença do meu pai e da minha mãe em cada célula do meu corpo;
Expirando, sorrio para o meu pai e a minha mãe em cada célula do meu corpo.

Você precisa visualizar isso. Você tem de ver isso como uma realidade e não somente como uma idéia, porque na meditação você enxerga concretamente, não fica somente com idéias abstratas. E saiba que isso é também muito científico, porque seu pai e sua mãe transmitiram-se a você. Eles não transmitiram outras coisas, como um carro ou a conta bancária. Eles transmitiram a si próprios a você, e estão realmente lá, em cada célula do seu corpo. Você vem do seu pai; você vem da sua mãe.

Há jovens que ficam com raiva de seus pais ou de suas mães; com muita raiva. Eles chegam a dizer até uma coisa assim estranha como, “Aquele homem (o pai dele), não quero ter nada a ver com ele nunca mais”. Quando você se irrita com seu pai, você pode dizer algo como, “Aquele homem, aquele cara, não quero ter nada a ver com ele”. Você está com raiva demais quando diz alguma coisa assim, porque não é a verdade. O fato é que você é a continuação do seu pai. Você é seu pai. Você não pode arrancar o seu pai de você. Impossível.

E o pai pode ficar bravo com o filho, e quando fica assim bravo não consegue enxergar a verdade. Ele pode dizer algo como, “Aquele menino, aquele moleque, ele não é meu filho. Meu filho não seria assim. Eu não o reconheço como meu filho”. Isso também não faz sentido, porque aquele jovem é a continuação dele. Não dá para dizer que não tem nada a ver com ele. Então, pai e filho precisam praticar o olhar em profundidade, de maneira a que cada qual veja a si mesmo no outro.

A mesma coisa é verdadeira com mãe e filha. Cerca de vinte anos atrás eu estava andando por uma rua de Londres, indo a uma livraria. Vi numa vitrine um livro com o título “Minha mãe, eu mesma”. Acho que era um livro de psicoterapia. Não comprei o livro, porque tive a impressão de que sabia o que ele continha. Era sobre mãe e filha. A filha ficando com raiva da mãe, e pensando que não tinham nada em comum, mas de repente vem o insight – você é filha dela. Você é ela. Você é uma continuação da sua mãe.

Numa Palestra do Dharma dada antes, neste mesmo ano, eu disse que temos nosso pai dentro de nós, mas ainda o temos fora de nós. Isso faz sentido. E meu pai dentro de mim pode ser um pouco diferente daquele fora de mim. Por quê? No início, quando ele se transmitiu a mim, o pai dentro de mim e o pai fora de mim eram muito parecidos. Mas porque vivi muitas situações diferentes, em ambientes distintos, o pai dentro de mim evoluiu diferente daquele que há fora. E se eu sou um bom praticante, então meu pai em mim pode ser transformado numa boa direção. Se eu pratico plena consciência, concentração, insight, bondade amorosa, compaixão, então elas penetram no meu pai, também.

Este meu pai evoluiu no caminho da transformação e da cura, então meu pai em mim pode ser mais belo que o pai fora de mim, porque eu sou um bom praticante. O que herdei de meu pai beneficia-se da minha prática. É por isso que meu pai está crescendo de maneiras distintas dentro e fora de mim.

Então, tenho um relacionamento melhor com o pai dentro de mim, e quero melhorar esse tipo de relacionamento com o pai fora de mim, também. No caso de ser um bom praticante, isso não é difícil. Porque você evoluiu juntamente com o seu pai. Você cultivou mais bondade amorosa, paciência, compaixão e compreensão. É por isso que você pode ajudar seu pai fora de você a mudar, a se transformar. Mas se você não pratica, então você ainda terá muita raiva, discriminação e irritação, e nesse caso não poderá ajudar muito o seu pai.

O fato é que meu pai está tanto dentro quanto fora de mim. Quando o pai que está fora de mim morre, o pai dentro de mim continua a viver. E eu vou transmitir meu pai para meu filho e para minha filha.

Meu pai e minha mãe, eles são meus ancestrais, os meus ancestrais mais jovens. Como seres humanos, nós temos ancestrais humanos. Tivemos diversas gerações de ancestrais humanos e, geneticamente falando, todos os nossos ancestrais estão vivos em nós. Pensamos que todos eles já morreram, porém isso não é verdade. Nossos ancestrais de diversas gerações ainda estão vivos em nós, e nós os carregamos futuro adentro. Nós os transmitimos futuro adentro. Então, quando você se casa e tem filhos, você transmite seus ancestrais aos seus filhos. Os seus ancestrais adentram, assim, o futuro.

(Palestra de Dharma de Thich Naht Hanh em Plum Village em 13 de julho de 2008)
(Traduzido por Marcelo Abreu – Sangha Plena Consciência)

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Pais e Filhos


O método de prática conhecido como contemplar com bondade amorosa e compaixão pode trazer grande calma e felicidade. Bondade amorosa é levar felicidade para outras pessoas; compaixão  significa aliviar o sofrimento delas. A chave que abre a porta para a bondade amorosa e compaixão é a nossa capacidade de entender nosso próprio sofrimento e dificuldades, e o sofrimento e as dificuldades dos outros. Se pudermos ver e entender nosso próprio sofrimento, então facilmente poderemos ver e entender as dificuldades da outra pessoa e vice-versa.

Esta é a prática de olhar profundamente para a primeira e segunda das Quatro Nobres Verdades, as quatro verdades sagradas e maravilhosas do budismo. As Quatro Nobres Verdades são: primeira, há o sofrimento; segunda, há um caminho ou uma série de condições que produziram esse sofrimento; terceira, o sofrimento pode ser extinto – felicidade é sempre possível; e quarta, há um caminho que leva à cessação do sofrimento, para a felicidade.

Ao identificar e aceitar nossas dificuldades (a primeira Nobre Verdade), para então olhar em profundidade para elas e suas causas raiz (a segunda verdade), nos torna capazes de ver uma saída, o caminho da liberação (a quarta verdade). A transformação e cessação do sofrimento adquirida ao se tomar esse caminho é a Terceira Nobre Verdade.

Aqui está um exemplo de como a prática funciona. Um pai está fazendo seu filho sofrer. O pai não vê que ele está causando esse sofrimento para o filho e para si mesmo. Ele realmente acredita que o modo que está tratando seu filho é para seu bem. Na verdade não é bem assim.

A verdade é que o pai tem muitas dificuldades e feridas, mas ainda tem que enxergá-las (a primeira Nobre Verdade: aceitação do sofrimento) e olhar para suas causas raiz (a segunda Nobre verdade: o caminho que leva ao sofrimento). Ele não sabe como lidar com seu próprio sofrimento, faz seu filho sofrer e acredita que seu filho é aquele que causa toda a infelicidade.

Talvez desde pequeno o pai era objeto de tratamentos cruéis por seu próprio pai, o avô. O avô despejou toda sua raiva e sofrimento neste pai; e agora o pai está fazendo o mesmo que o avô, despejando sua raiva e dor no seu filho. A roda do samsara gira de novo e de novo, enquanto o sofrimento passa de uma geração para a outra. O pai não vê a segunda Nobre Verdade, a origem do sofrimento. Agora é a hora do filho praticar:

Inspirando, me vejo como uma criança de cinco anos
Expirando, sorrio para a criança de cinco anos que ainda está viva e presente em mim
Inspirando, vejo a criança de cinco anos em mim frágil, vulnerável e ferida
Expirando, abraço a criança de cinco anos em mim com todo meu entendimento e amor

Esta é a primeira parte da prática, voltar a si mesmo, reconhecer e abraçar a pequena criança dentro de você. Até agora você esteve muito ocupado para fazer isto. Agora você volta para falar e abraçar esta criança. O processo de cura pode começar.

Quando você tiver praticado a primeira parte com sucesso, pode ir para a segunda parte:

Inspirando, vejo meu pai como uma criança de cinco anos
Expirando, sorrio para meu pai com cinco anos de idade.

Talvez você nunca tenha imaginado seu pai como um pequeno e gentil garoto. A verdade é que seu pai uma vez foi frágil e vulnerável, podia facilmente ser ferido, assim como todas as outras crianças.

Inspirando, vejo meu pai com cinco anos, frágil, vulnerável e ferido.
Expirando, olho para esta criança ferida com todo meu entendimento e amor

Muitas pessoas tiveram dificuldades dolorosas nas relações com seus pais. Você pode nem ter percebido até agora que a criança de cinco anos de idade que se tornou seu pai está aqui hoje, presente em você, assim como nele. Ambos seu pai e mãe transmitiram nada menos que eles inteiros para você. De fato, você e seu pai não são duas pessoas completamente diferentes, apesar de não serem exatamente a mesma pessoa também. O mesmo é verdade com relação a sua mãe. Este insight maravilhoso pode ser chamado “Nem um, nem dois” – nem exatamente o mesmo, nem totalmente diferente.

Se você puder abraçar a criança de cinco anos de idade dentro de você, poderá abraçar a criança de cinco anos de idade nos outros também, e então a transformação de sua relação pode acontecer muito rapidamente. Se apenas seu pai tivesse tido a chance de aprender isso quando jovem, não teria causado sofrimento a ele e a você.

Mas ele não foi tão afortunado, portanto você tem que praticar por você e também por seu pai em você. Quando você transformar seu pai dentro de você, será capaz de ajudar seu pai fora de você a se transformar muito mais facilmente. Praticando deste modo poderemos efetuar uma transformação em nós mesmos assim como em nossos pais, e evitaremos repetir os mesmos erros com nossos filhos. A roda do sofrimento será parada finalmente.

Este entendimento profundo do sofrimento e de suas causas raiz faz nascer aceitação e amor. Quando podemos amar e aceitar, nos sentimos muito melhor e também seremos capazes de ajudar as outras pessoas a se transformar – uma tia ou tio, um irmão ou irmã, um colega ou amigo.

Em você há uma semente de uma formação mental chamada prajna, “insight”. Significa profundo entendimento. Quando o entendimento profundo está presente, a situação muda imediatamente. Prajna é, primeiramente, ver e entender qualquer sofrimento que esteja presente assim como sua natureza e origem. Praticando o olhar em profundidade, usando os exercícios acima, nos faz aumentar nossa capacidade de estar presente para todas as atividades de nossa mente; mas às vezes esquecemos ou não realmente nos aplicamos em usá-los, especialmente quando as paixões estão inflamadas.

Nesses momentos precisamos da intervenção da plena atenção. Plena atenção é uma formação mental que é a mais essencial e necessária para nossa prática. Deveríamos lembrar que a plena atenção sempre leva ao insight. Quando temos insight, muito naturalmente aceitamos, perdoamos, amamos e somos felizes. Quando falta insight, mudamos a direção para a raiva, ciúme, ódio e sofrimento.


(Do livro “Peace is every breathe” – Thich Nhat Hanh)
(Traduzido por Leonardo Dobbin)

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Ficando Verdadeiramente Vivo


O que você faria se um médico te dissesse que você tem apenas três meses de vida? Você perderia este tempo lamentando seu destino? Você se entregaria à dor e ao desespero? Ou resolveria viver cada momento desses três meses de uma maneira profunda? Se você fizer isso, três meses de vida é muito.

Cerca de vinte anos atrás, um jovem veio até mim e disse exatamente isso – ele tinha apenas três meses de vida. Eu pedi que ele se sentasse e tomasse uma xícara de chá. “Meu amigo”, eu disse a ele, “você deve viver este momento que temos juntos de uma maneira profunda”.

Um dia é muito. Um piquenique dura apenas metade do dia, mas você pode vivê-lo plenamente, com muita felicidade. Por que não três meses? Sua vida é um tipo de piquenique e você deveria arrumá-la de forma inteligente.

Alguém que conheço, uma vez disse a seu professor de budismo, “Mestre, eu gostaria de ir a um piquenique com você”.  O professor estava muito ocupado e, portanto, respondeu. “Claro, claro, iremos a um piquenique um dia desses”. O tempo passou e cinco anos depois eles ainda não tinham ido a um piquenique.

Um dia o professor e o discípulo estavam resolvendo algum assunto juntos, e eles se encontraram no meio de um engarrafamento. Havia tantas pessoas na rua que o mestre perguntou ao discípulo: “O que estas pessoas estão fazendo?” O discípulo viu que era uma procissão de funeral. Ele virou ao mestre e disse, “Eles estão tendo um piquenique”.

Não espere para começar a viver. Viva agora! Sua vida deveria ser real neste exato momento. Se você viver assim, três meses é muito! Você pode viver cada momento de cada dia profundamente, em contato com as maravilhas da vida. Então você aprenderá a viver e, ao mesmo tempo, aprenderá a morrer. Uma pessoa que não sabe como morrer, não sabe como viver e vice-versa. Você deveria aprender a morrer – a morrer imediatamente. Esta é a prática.

Você está pronto para morrer agora? Você está pronto para organizar suas atividades de forma que possa morrer em paz esta noite? Isto pode ser um desafio, mas esta é a prática. Se você não fizer isso, será sempre atormentado pelo sentimento de perda. Se você não quer sofrer, se não quiser ser atormentado pelo sentimento de perda, a única solução é viver cada minuto que tem de uma maneira profunda. Isto é tudo que se tem para fazer. A única maneira para se lidar com a insegurança, medo e sofrimento é viver o momento presente de uma maneira profunda. Se você fizer isso, não terá lamentos.

Foi isto que o jovem que tinha apenas três meses de vida fez. Ele decidiu viver cada momento da sua vida de uma maneira profunda. Quando ele começou a fazer isso, sentiu as fontes do desespero o deixando e ele voltou ao seu centro. Foi um milagre. Embora seu médico tenha pronunciado uma espécie de sentença de morte, ele viveu outros quinze anos. Eu dei a ele o nome de Dharma Chân Sinh, que significa “vida verdadeira”. Antes que dissessem a ele que iria morrer, ele não sabia o que era a vida real. Mas depois que isso aconteceu, ele aprendeu o que era a vida real, porque estava presente para cada momento de cada dia.

Albert Camus no seu romance “O Estrangeiro”, usou o termo “o momento de consciência”. Quando o protagonista do romance, Meursault, sabe que será executado pelo assassinato que cometeu, ansiedade, medo e raiva nasceram nele. Em desespero, ele estava deitado na sua cama na prisão olhando para o teto quando, pela primeira vez, ele vê o quadrado de céu azul. O céu é tão azul – era a primeira vez na sua vida que ele tinha profundo contato com o céu azul. Ele já tinha vivido por décadas sem realmente nunca ter visto aquilo. Talvez ele tenha olhado para o céu de vez em quando, mas não o tinha visto de uma maneira profunda. Agora, três dias antes de sua morte, ele era capaz de tocar o céu azul de uma maneira verdadeira e profunda. O momento de consciência se manifestou.

Meursault decidiu viver cada minuto que ainda tinha plenamente e profundamente. Aqui está um prisioneiro que está praticando meditação profunda. Ele vive seus últimos três dias na sua cela dentro do quadrado de céu azul. Esta é a sua liberdade. Na tarde do último dia, um padre católico vem à cela de Meursault para lhe dar os últimos ritos, mas ele recusa. Ele não quer perder as poucas horas que tem falando com o padre, e não o deixa entrar. Ele diz: ”O padre está vivendo como um morto. Ele não está vivendo como eu, eu estou verdadeiramente vivo”.

Talvez estejamos também vivendo como mortos. Nos movemos pela vida nos nossos próprios cadáveres porque não tocamos a vida em profundidade. Vivemos um tipo de vida artificial, com muitos planos, muitas preocupações e raiva. Nunca somos capazes de nos estabelecer no aqui e agora, e viver nossas vidas profundamente. Temos que acordar! Temos que fazer o possível para o momento de consciência se manifestar. Esta é a prática que irá nos salvar – esta é a revolução.

O momento mais maravilhoso da sua vida já aconteceu? Pergunte a si mesmo isso. A maioria de nós responderá que não aconteceu ainda, mas que poderá acontecer a qualquer momento. Não importa a nossa idade, tendemos a sentir que o momento mais maravilhoso de nossa vida não aconteceu ainda. Tememos que seja muito tarde, mas estamos ainda esperando. Mas a verdade é que se continuarmos a viver no esquecimento – isto é, sem a presença da plena consciência – este momento nunca acontecerá.

O ensinamento do Buda te diz claramente e plenamente para fazer deste o momento mais magnífico e maravilhoso da sua vida. Este momento presente deve se tornar o mais maravilhoso da sua vida. Tudo que você precisa para transformar este momento em uma maravilha é liberdade. Tudo que você precisa é libertar a si mesmo de suas preocupações sobre o passado, futuro e tudo mais.

O profundo insight da impermanência é o que nos ajuda a fazer isto. É muito útil manter viva nossa concentração na impermanência. Você pode pensar que a outra pessoa na sua vida estará presente para sempre, mas isto não é verdade. Esta pessoa é impermanente, assim como você. Portanto se você pode fazer algo para deixar esta pessoa feliz, deveria fazer imediatamente. Qualquer coisa que você possa dizer ou fazer que a deixe feliz – diga ou faça agora! É agora ou nunca.

Na prática do budismo, morrer é muito importante. É tão importante quanto viver. Morrer é tão importante quanto nascer, porque nascimento e morte intersão. Sem nascimento, não poderia haver morte. Sem morte não poderia haver nascimento. Nascimento e morte são amigos próximos e a colaboração entre os dois é necessária para a vida ser possível.

Portanto não tenha medo da morte. Morte é apenas uma continuação assim como o nascimento. A cada momento, a morte está acontecendo no seu corpo – algumas células estão morrendo de forma que outras possam nascer. Morte é indispensável à vida. Se não houvesse morte, não haveria nascimento, assim como não poderia haver esquerda se não houvesse a direita. Não mantenha esperanças que a vida seja possível sem morte. Você deve aceitar a ambos.

Se você praticar bem, poderá ganhar um insight profundo da dimensão última, a dimensão absoluta, enquanto permanece em contato com a dimensão histórica, relativa. E quando você estiver em contato profundo com a dimensão histórica, também tocará a dimensão última, e verá que sua natureza verdadeira é a do não-nascimento e não-morte.

Viver é uma alegria. Morrer de forma a começar novamente é também uma alegria. Recomeçar é uma coisa maravilhosa, e recomeçamos constantemente. Começar de novo é uma das práticas principais em Plum Village e nós devemos morrer todo dia de forma a nos renovarmos, de forma a termos um recomeço refrescante. Aprender a morrer é uma prática muito profunda.

(Do livro “You are here”, de Thich Nhat Hanh)
(Tradução para o português: Leonardo Dobbin)