segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Morando Feliz no Momento Presente

Plena atenção é o patrimônio mais precioso que podemos ter, torna o amor, felicidade e muitas outras dádivas possíveis para nós mesmos e para os outros. Mas não está a venda em nenhuma loja e não importa quanto dinheiro estivermos dispostos a pagar por ela. Temos que produzi-la nós mesmos.

Não podemos apenas ir para uma loja e comprar um pouco de plena atenção e trazer para nossa casa conosco, mas podemos e realmente queremos levar nossa plena atenção conosco quando formos às compras. Já sabemos que queremos consumir apenas coisas que nos tragam alegria e saúde para nós mesmos e para nossa sociedade, e precisamos da energia da plena atenção para nos manter nos trilhos enquanto passamos por um anúncio tentador atrás do outro.

Plena atenção nos ajuda a reconhecer – mais e mais claramente quanto mais praticamos – quais coisas realmente precisamos e queremos na nossa vida, e que coisas podemos viver sem. Somos capazes de gastar menos dinheiro em coisas, sem sacrificar em nada nossa felicidade. Na verdade, temos mais felicidade porque podemos ter um trabalho menos estressante e mais agradável quando não estamos sob pressão financeira de constantemente ter que comprar casas e carros maiores e mais sofisticados entre outras coisas.

Portanto você precisa comprar algumas coisas e não tem muito tempo para isso. Como você pode ficar presente e não ser seduzido por anúncios inteligentes? Como você pode escolher produtos que não comprometam sua saúde e não promovam a exploração de trabalhadores e animais no nosso planeta?

Se você estiver comprando em uma loja ou pela internet, tente não fazer isso quando estiver com fome, cansado ou distraído. Faça uma lista prévia das coisas que precisa. O pouco tempo que você gastará para isso será mais que compensado pelo tempo que será economizado por não ter que debater se compra coisas adicionais que não precisa e mesmo talvez nem precise. Antes do caixa, gaste um momento olhando novamente para as coisas na sua cesta e pergunte-se honestamente: "Realmente eu preciso disto? Comprar isso me trará mais felicidade que dar esse dinheiro para aliviar o sofrimento de outro ser humano?”

Respirando e andando com consciência gera a energia de plena atenção. Esta energia traz nossa mente de volta ao nosso corpo para que estejamos realmente aqui no momento presente e em contato com as maravilhas da vida que existem dentro de nós e ao nosso redor. Se pudermos reconhecer essas maravilhas, teremos felicidade imediatamente. Totalmente disponíveis ao momento presente, descobrimos que temos já condições suficientes para sermos felizes – mais que suficientes, na verdade. Não precisamos procurar por nada a mais no futuro ou em algum outro lugar. Isto é o que chamamos de morar no momento presente.

O Buda ensinou que cada um de nós pode viver feliz bem no aqui e agora. Quando temos felicidade no momento presente, podemos parar, não precisamos perseguir mais nenhum objeto do desejo. Nossa mente está calma. Quando nossa mente ainda não está calma, quando ainda está agitada, não podemos realmente ser felizes.

Nossa felicidade ou falta de felicidade depende em maior parte do estado de nossa mente, não de algo externo. É nossa própria atitude, a maneira como olhamos para as coisas, nossa abordagem com relação a vida que determina se somos felizes ou não. Já estamos cheios de condições para sermos felizes, então porque temos que ir procurar por mais? Precisamos parar e não perseguir outra tentação – este é o caminho mais sábio. De outro modo, continuamos perseguindo este objetivo ou aquele, mas cada vez que o obtemos, achamos que ainda não somos felizes.

Um dia quando o Buda estava indo falar no monastério de Jeta Grove, seu discípulo leigo Anathapindika, um homem de negócios, trouxe algumas centenas de colegas com ele para ouvir a fala do Buda. O Buda os ensinou a prática de habitar feliz no momento presente. É claro que podemos continuar fazendo negócios e podemos continuar a realizar sucesso crescente em nossa carreira, mas também deveríamos nos comprometer a viver plenamente conscientes de forma que possamos desfrutar a felicidade agora e não perder as preciosas oportunidades que a vida no oferece para amar e cuidar dos próximos e queridos. Se gastarmos nosso tempo apenas sobre o nosso futuro sucesso, completamente perderemos a vida, porque ela só pode ser encontrada no momento presente.

Deveríamos ser capazes de desfrutar as maravilhas da vida em nós e em todo lugar ao nosso redor. Os sussurros que o pinheiro nos traz. Flores brotando. O lindo céu azul. As nuvens brancas fofas. Um sorriso de um vizinho. Cada uma dessas coisas é um pequeno milagre da vida que tem a capacidade de nos nutrir e nos curar. Eles estão presentes para nós nesse exato momento. A questão é: nós estamos presentes para elas? Se estivermos constantemente correndo, se nossa mente é sempre capturada em planejamentos e preocupações sem fim, é como se essas maravilhas nem mesmo existissem.

O Reino de Deus, a terra Pura do Buda é bem aqui. Deveríamos praticar para desfrutar o reino a cada passo que dermos. Deveríamos desfrutar da felicidade exatamente agora, hoje, amanhã pode ser muito tarde. Há uma velha canção francesa que pergunta: “O que estamos esperando para sermos felizes? Porque esperar para celebrar ?” Meditação é a prática de viver profundamente cada momento da vida diária. Para fazer isso, precisamos ser capazes de gerar plena atenção e concentração com nossa respiração e nossos passos.

Plena atenção é estar consciente do que está acontecendo no momento presente, concentração é a manutenção dessa atenção. Com plena atenção e concentração podemos olhar em profundidade e entender o que está acontecendo. Podemos atravessar o véu da ignorância e ver claramente a verdadeira natureza da realidade e sermos libertados da ansiedade, medo, raiva e desespero. Isto é insight. Plena atenção, concentração e insight são a verdadeira essência da meditação.

(Do livro “Peace is every breathe” – Thich Nhat Hanh)
(Traduzido por Leonardo Dobbin)

terça-feira, 17 de outubro de 2017

A Arte de Transformar o Sofrimento

Todos queremos ser felizes e há muitos livros e professores no mundo que tentam ajudar as pessoas a serem mais felizes. No entanto, todos nós continuamos a sofrer.

Portanto, poderíamos pensar que estamos "fazendo algo errado". De alguma forma, estamos "falhando na felicidade". Isso não é verdade. Ser capaz de apreciar a felicidade não exige que tenhamos zero sofrimento. Na verdade, a arte da felicidade também é a arte de sofrer bem. Quando aprendemos a reconhecer, abraçar e compreender o nosso sofrimento, sofremos muito menos. Não só isso, mas também podemos ir mais longe e transformar nosso sofrimento em compreensão, compaixão e alegria para nós mesmos e para os outros.

Uma das coisas mais difíceis para aceitarmos é que não há um reino onde só haja felicidade e não haja sofrimento. Isso não significa que devemos desesperar. O sofrimento pode ser transformado. Assim que abrimos a boca para dizer "sofrimento", sabemos que o oposto do sofrimento já está lá também. Onde há sofrimento, há felicidade.

De acordo com a história da criação no livro bíblico de Gênesis, Deus disse: "Que haja luz". Eu gosto de imaginar que a luz respondeu, dizendo: "Deus, eu tenho que esperar minha irmã gêmea, a escuridão, estar comigo. Não posso estar lá sem a escuridão. "Deus perguntou:" Por que você precisa esperar? A escuridão está presente." A Luz respondeu:" Nesse caso, então eu também já estou presente ".

Se nos concentramos exclusivamente na busca da felicidade, podemos considerar o sofrimento como algo a ser ignorado ou a resistir. Pensamos nisso como algo que atrapalha o caminho da felicidade. Mas a arte da felicidade é, ao mesmo tempo, a arte de saber como sofrer bem. Se soubermos como usar nosso sofrimento, poderemos transformá-lo e sofrer muito menos. Saber sofrer bem é essencial para realizar a verdadeira felicidade.

Quando sofremos, tendemos a pensar que o sofrimento é tudo o que há naquele momento, e a felicidade pertence a algum outro momento ou lugar. Muitas vezes as pessoas perguntam: "Porque eu tenho que sofrer?" Pensar que podemos ser capazes de ter uma vida sem sofrimento é tão equivocado como pensar que podemos ter um lado esquerdo sem um lado direito. O mesmo é verdade ao pensar que temos uma vida na qual nenhuma felicidade é encontrada. Se a Esquerda disser: "Direita, você tem que ir embora. Eu não quero você. Eu só quero a Esquerda" isso é um absurdo, porque então a Esquerda teria que parar de existir também. Se não houver direita, não há mais a esquerda. Onde não há sofrimento, também não pode haver alegria e vice-versa.

Se pudermos aprender a ver e nos engajarmos habilmente com a presença da felicidade e do sofrimento, iremos na direção de aproveitar mais a vida. Todos os dias iremos um pouco mais adiante nessa direção e, finalmente, perceberemos que o sofrimento e a felicidade não são duas coisas separadas.

O ar frio pode ser doloroso se você não estiver usando roupas quentes suficientes. Mas quando você está se sentindo superaquecido ou está caminhando fora de casa com roupas adequadas, a sensação estimulante do ar frio pode ser uma fonte de alegria e vitalidade. O sofrimento não é um tipo de fonte externa e objetiva de opressão e dor. Pode haver coisas que provoquem sofrimento em você, como música alta ou luzes brilhantes, e que podem trazer alegria a outras pessoas. Há coisas que te trazem alegria e que irritam outras pessoas. O dia chuvoso que arruína seus planos para um piquenique é uma benção para o agricultor cujo campo está seco.

A felicidade é possível agora, hoje, mas a felicidade não pode existir sem sofrimento. Algumas pessoas pensam que, para serem felizes, devem evitar todo sofrimento e, portanto, estão constantemente vigilantes, constantemente preocupadas. Eles acabam sacrificando toda a sua espontaneidade, liberdade e alegria. Isso não está correto. Se você pode reconhecer e aceitar sua dor sem fugir dela, você descobrirá que, embora a dor esteja lá, a alegria também pode estar lá ao mesmo tempo.

Alguns dizem que o sofrimento é apenas uma ilusão ou que para viver com sabedoria, devemos "transcender" o sofrimento e a alegria. Eu digo o contrário. A maneira de sofrer bem e ser feliz é manter contato com o que realmente está acontecendo; ao fazê-lo, você obterá pontos de vista liberadores sobre a verdadeira natureza do sofrimento e da alegria.

(Trecho do livro de Thich Nhat Hanh – No mud no lotus)
(Tradução – Leonardo Dobbin)

terça-feira, 22 de agosto de 2017

Conhecendo a Melhor Maneira de Viver Sozinho


Svasti percebeu como um bhikkhu em Jetavana chamado Thera nunca falava com ninguém mais. Sempre andava sozinho. O Venerável Thera não perturbava ninguém nem violava nenhum dos preceitos e, ainda assim, parecia para Svasti que ele não vivia em genuína harmonia com o resto da comunidade. Uma vez Svasti tentou falar com ele, mas Thera foi embora sem responder. Os outros bhikkhus apelidaram ele de “aquele que vive sozinho”. Svasti frequentemente ouvia o Buda encorajar os bhikkhus a evitar a conversa irrelevante, meditar mais e desenvolver a auto-suficiência. Mas Svasti sentia que o Venerável Thera não estava vivendo o tipo de auto-suficiência que o Buda pretendia. Confuso, Svasti decidiu perguntar ao Buda sobre isto.

No dia seguinte, durante sua palestra de Dharma, o Buda chamou o Venerável Thera. Perguntou a ele: “É verdade que você prefere ficar consigo mesmo e que faz todas as coisas sozinho, evitando contato com os outros bhikkhus?”

O bhikkhu respondeu: “Sim, senhor, é verdade. Você tem nos ensinado a ser auto-suficiente e praticar estar sozinho.”

O Buda se voltou para a comunidade e disse: “Bhikkhus, eu explicarei o que é a verdadeira auto-suficiência, e qual a melhor maneira de se viver sozinho. Uma pessoa auto-suficiente é uma pessoa que habita na plena consciência. Ele está consciente do que está acontecendo no momento presente, o que está acontecendo no seu corpo, sentimentos, mente e objetos da mente. Ele sabe como olhar em profundidade para as coisas no momento presente. Ele não persegue o passado nem se perde no futuro, porque o passado não mais existe e o futuro ainda não chegou. A vida só pode acontecer no momento presente. Se perdermos o momento presente, perderemos a vida. Esta é a melhor maneira de viver sozinho.”

“Bhikkhus, o que significa ‘perseguir o passado’? Perseguir o passado significa se perder em pensamentos sobre como era sua aparência no passado, que sentimentos existiam então, que status ou posição tinha, que sofrimento ou alegria você experimentou naquele tempo. Deixar tais pensamentos surgirem agarra você firmemente no passado.”

“Bhikkhus, o que significa ‘se perder no futuro’? Se perder no futuro significa se perder em pensamentos sobre o futuro. Você imagina, tem esperança, medo ou preocupação sobre o futuro, querendo saber como se parecerá, como seus sentimentos serão, se você terá felicidade ou sofrimento. Deixar tais pensamentos surgirem agarra você firmemente no futuro.”

“Bhikkhus, retornem ao momento presente de forma a estar em contato direto com a vida e vê-la em profundidade. Se você não puder fazer contato direto com a vida, não poderá ver em profundidade. Plena consciência possibilita que você volte ao momento presente. Mas se você está escravizado pelos desejos e ansiedades sobre o que está acontecendo no presente, perderá sua plena consciência e não estará verdadeiramente presente para a vida.”

“Bhikkhus, aquele que realmente sabe como estar sozinho habita o momento presente, mesmo se está sentado no meio de uma multidão. Se uma pessoa sentada sozinha no meio da floresta não está plenamente consciente, se ele é caçado pelo passado e futuro, não está verdadeiramente sozinho.”

O Buda então recitou um gatha para sumarizar seus ensinamentos:

Não persiga o passado
Não se perca no futuro.
O passado não mais existe
O futuro ainda não chegou.
Ao olhar em profundidade para a vida como ela é
Exatamente aqui e agora,
O praticante habita
Na estabilidade e liberdade.
Nós precisamos ser diligentes hoje.
Deixar para amanhã pode ser tarde demais.
Morte vem inesperadamente.
Como podemos barganhar com ela?
O sábio é uma pessoa que sabe
Como habitar na plena consciência
Noite e dia.
Aquele que sabe
A melhor maneira de viver sozinho.

Depois de ler o gatha, o Buda agradeceu Thera e o convidou a se sentar novamente. O Buda não tinha elogiado nem criticado Thera, mas estava claro que o bhikku agora tinha uma melhor compreensão do que o Buda quis dizer por auto-suficiente ou estar sozinho.

Durante a discussão do Dharma que aconteceu depois à noite, Svasti ouviu os discípulos seniores dizer o quão importante eram as palavras do Buda daquela manhã. O Venerável Ananda repetiu o discurso do Buda, incluindo o gatha, palavra por palavra. Svasti sempre ficava surpreso com a memória de Ananda. Ananda inclusive falou com a mesma entonação do Buda. Quando Ananda terminou, Mahakaccana ficou de pé e disse: “Eu gostaria de sugerir que nós fizéssemos um sutra formal dos ensinamentos do Buda desta manhã. Eu gostaria de sugerir que o chamássemos do Sutra da Melhor Maneira de Viver Sozinho. Cada bhikku deveria memorizar este sutra e colocá-lo em prática.” (...)

A palestra de Dharma do Buda no outro dia foi muito especial. Ele esperou as crianças se sentarem quietamente e então lentamente se levantou. Ele pegou uma das flores de lótus (que as crianças haviam trazido) e a segurou em frente da comunidade. Ele não disse nada. Todos se sentavam perfeitamente imóveis. O Buda continuou a segurar a flor sem dizer nada por um longo tempo. As pessoas estavam perplexas e queriam saber o que ele estava querendo dizer com aquilo. Então o Buda olhou para toda a comunidade e sorriu.

Ele disse: “Eu tenho os olhos do verdadeiro Dharma, o tesouro dos insights maravilhosos, e eu acabei de transmiti-los para Mahakassapa.”

Todos viraram o olhar para o Venerável Kassapa e viram que ele estava sorrindo. Seus olhos não se desviavam do Buda e da flor de lótus que ele segurava. Quando as pessoas olharam de volta para o Buda, viram que ele também estava olhando para o lótus e sorrindo.

Embora Svasti se sentisse perplexo, sabia que a coisa mais importante era manter a plena atenção. Ele começou a observar sua respiração enquanto olhava para o Buda. A flor de lótus branca na mão do Buda tinha recém florescido. O Buda a segurava em um gesto extremamente gentil, nobre. Seu polegar e indicador seguravam o caule da flor que seguia o formato de sua mão. Sua mão era tão bonita quanto a flor do lótus, pura e maravilhosa. De repente, Svasti verdadeiramente viu a pura e nobre beleza da flor. Não havia nada sobre o que pensar. Bem naturalmente, um sorriso surgiu na sua face.

O Buda começou a falar. “Amigos, esta flor é uma realidade maravilhosa. Enquanto eu segurei a flor em frente de vocês, todos tiveram a chance de experimentá-la. Fazer contato com a flor é fazer contato com uma realidade maravilhosa. É fazer contato com a própria vida.”

“Mahakapassa sorriu antes de todos porque ele foi capaz de fazer contato com a flor. Enquanto os obstáculos permanecerem nas suas mentes, não serão capazes de fazer contato com a flor. Alguns de vocês se perguntaram, ‘Porque Gautama está segurando essa flor? Qual o significado de seu gesto?’ Se suas mentes estão ocupadas com tais pensamentos, vocês não podem experimentar a flor.”

“Amigos, se perder em pensamentos é uma das coisas que não nos deixam fazer verdadeiro contato com a vida. Se você é governado pela preocupação, frustração, ansiedade, raiva, ciúme, perde a chance de fazer contato real com todas as maravilhas da vida.”

“Amigos, o lótus na minha mão é apenas real para aqueles que habitam plenamente conscientes no momento presente. Se vocês não retornarem ao momento presente, a flor verdadeiramente não existe. Há pessoas que podem passar por uma floresta de sândalos sem verdadeiramente ver uma árvore. A vida é preenchida com sofrimento, mas também contém muitas maravilhas. Estejam conscientes de forma a ver ambos o sofrimento e as maravilhas da vida.”

“Ter contato com o sofrimento não significa ficar perdido nele. Ter contato com as maravilhas da vida não significa nos perdermos nelas também. Estar em contato é verdadeiramente encontrar a vida, ver a vida em profundidade. Se nós diretamente encontrarmos a vida, entenderemos sua natureza interdependente e impermanente. Graças a isto, não mais nos perderemos no desejo, raiva e ganância. Habitaremos na liberdade e liberação.

(Traduzido do livro “Old Path White Clouds” sobre a vida do Buda – Thich Nhat Hanh – por Leonardo Dobbin)

segunda-feira, 17 de julho de 2017

Métodos para Cultivar os Hábitos da Felicidade


Com base no que aprendemos sobre o corpo e a mente, eu gostaria de lhes oferecer exercícios para cultivar a concentração, a consciência plena e o insight. Estes exercícios são: as três concentrações, as seis paramitas, a construção da Sanga, e a não-discriminação. Estes ensinamentos estão no coração da prática budista e do segredo da felicidade. Estes ensinamentos se apoiam e se sustentam. Se a sua concentração for suficientemente forte, você fará uma descoberta, obterá um insight. Você precisa estar presente, com o corpo e a mente unidos e totalmente presentes – isto é atenção plena. Se você estiver neste estado de consciência, será possível para você se concentrar. Se a sua concentração for poderosa, você tem uma chance de fazer uma importante descoberta que lhe ajuda a alcançar a felicidade.

Existem três tipos diferentes de concentração. A primeira é a vacuidade. Vacuidade aqui é uma concentração e não uma filosofia. A vacuidade não é uma tentativa de descrever a realidade. A vacuidade é oferecida como um instrumento. E nós temos que manusear a noção da vacuidade habilidosamente para não sermos aprisionado nesta noção. A noção da vacuidade e o insight de vacuidade são duas coisas diferentes. Vamos considerar uma vela. Para acender uma vela, você acende um fósforo, você precisa de fogo. E o fósforo é apenas um instrumento, um meio. Sem o fósforo você não consegue produzir o fogo. O seu objetivo último é a chama e não o fósforo. Buda lhe oferece a noção de vacuidade, porque ele tem que usar noções e palavras para se comunicar.

Habilidosamente, fazendo uso da noção de vacuidade, você pode produzir o insight de vacuidade. Uma vez que o fogo se manifeste, ele consumirá o fósforo; quando o insight da vacuidade se manifesta, ele destruirá a noção da vacuidade. Se você for suficientemente habilidoso para fazer uso da noção da vacuidade, você então tem o insight da vacuidade e está livre da palavra “vacuidade”. Eu espero que você consiga ver a diferença entre vacuidade enquanto insight e vacuidade enquanto noção.

Samadhi não é uma doutrina, não é uma tentativa de descrever a verdade, mas é um meio hábil de lhe ajudar a alcançar a verdade. É como o dedo apontando para a lua. A lua é muito bela. O dedo não é a lua. Se eu aponto e digo, “Querido amigo, esta é a lua” e você pega este dedo e diz: “Oh! Isto é a lua!” – você não tem a lua. Você está aprisionado no dedo, você não consegue ver a lua. O Darma de Buda é o dedo, não a lua.

O Sutra do Coração diz: “forma é vacuidade, vacuidade é forma” – o que isto significa? O bodisatva Avalokiteshvara disse que tudo é vazio. E queremos perguntá-lo: “Senhor Bodisatava, você diz que tudo é vazio, mas eu quero lhe perguntar, ‘vazio do que’?” Porque vazio é sempre vazio de algo. Esta é uma maneira habilidosa de destruir a palavra “vacuidade” para conseguir o insight da vacuidade. Imagine um copo. Concordamos que ele está vazio.

Mas é importante fazer a pergunta que parece inútil, mas que não é: “vazio de que?” Vazio de chá, talvez. Vazio significa vazio de algo. É como consciência, percepção, sentimento. Sentir significa sentir algo. Estar consciente significa estar consciente de algo. Estar atento significa estar atento a algo. O objeto existe ao mesmo tempo em que o sujeito. Não pode haver mente sem objeto da mente. Isto é muito simples, muito claro. Assim nós concordamos que este copo está vazio de chá. Mas não podemos dizer que este copo está vazio de ar. Ele está cheio de ar.

Quando observamos uma folha, vemos que ela está cheia, totalmente cheia. Eu olho para a folha, eu toco a folha e com o maravilhoso instrumento chamado mente, posso ver que enquanto eu toco a folha estou também tocando uma nuvem. A nuvem está presente na folha. Eu sei muito bem que se não houver nuvem, não há chuva e então nenhuma árvore de álamo pode crescer.

Por isso quando toco a folha, eu toco elementos que não são folha. Um destes elementos que não são folha é a nuvem. Eu toco a nuvem; eu toco a chuva tocando a folha. Ao tocar a folha eu sei que água, chuva e nuvem estão ali dentro da folha. Eu também toco os raios de sol dentro da folha. Eu sei que sem raios de sol nada consegue crescer. Eu estou tocando o sol sem me queimar. E sei que o sol está presente na folha. Se continuar minha meditação eu verei que estou tocando os minerais dentro do solo, estou tocando tempo, estou tocando o espaço, estou tocando a minha própria consciência. A folha está cheia do cosmos – espaço, tempo, consciência, água, solo, ar e tudo, então como podemos dizer que ela é vazia?

É verdade que a folha está cheia de tudo, exceto uma coisa, e esta uma coisa é uma existência separada, um “eu”. Uma folha não consegue existir por si só, a folha tem que interexistir com tudo o mais dentro do cosmos. Uma coisa tem que contar com todas as outras coisas para se manifestar. Uma coisa não consegue ser ela mesma sozinha. Então vacuidade é antes de mais nada vazio de um eu separado. Tudo contém tudo o mais. Olhando dentro da folha nós vemos somente os elementos que não são folha. Buda está constituído somente de elementos que não são Buda. E o meu eu está constituído somente de elementos que não são eu.

A segunda concentração é animita, a insubstancialidade dos sinais. Insubstancialidade dos sinais significa não ser capturado pela aparência. Parece que a nuvem que observamos no céu tem um início, e falamos do “nascimento” da nuvem. Parece que uma nuvem pode morrer a qualquer hora hoje à noite e não mais existirá no céu. Temos uma noção de nascimento e morte. Mas com a prática da contemplação profunda, podemos tocar a natureza sem nascimento e sem morte da nuvem.

Se vivermos a vida conscientemente, então seremos capazes de tocar a natureza da insubstancialidade dos sinais. Bebendo o seu chá, você reconhece que a sua amada nuvem está dentro do seu copo. A nuvem pode tomar a forma de um cubo de gelo. A nuvem pode tomar a forma da neve sobre os Pirineus. A nuvem pode estar dentro do sorvete que sua filha está tomando. Então com a sabedoria da insubstancialidade dos sinais, você descobre que nada nasce e nada pode morrer – e você não tem medo. A verdadeira felicidade, perfeita felicidade não pode ser possível sem destemor. Olhando profundamente e tocando a natureza sem nascimento e sem morte elimina o medo dentro de nós.

Existe o elemento de delusão dentro de nós e existe o elemento de luminosidade dentro de nós. Devido ao elemento de delusão, sofremos. Devido ao elemento de luminosidade, podemos nos tornar um Buda. É assim que a dualidade entre o cérebro e a mente pode ser resolvida. A realidade se expressa enquanto cérebro ou enquanto consciência. Não é verdade dizer que o cérebro nasce da mente, ou que a mente é uma propriedade emergente do cérebro – você não tem que fazer isto.

Você pode dizer que mente e cérebro se manifestam a partir do solo da consciência armazenadora, e eles se apoiam mutuamente em suas manifestações. Sem mente, cérebro não é possível; sem cérebro, mente não consegue se manifestar. Tudo conta com tudo o mais para se manifestar. Tal como a folha, como a flor – a flor tem que contar com elementos que não são flor para se manifestar. O mesmo acontece com a mente. O mesmo acontece com o cérebro.

A terceira concentração é apranihita, ausência de objetivo. Sem preocupação, sem ansiedade estamos livres para desfrutar cada momento de nossas vidas. Sem tentar, sem fazer grandes esforços, apenas sendo. Que alegria! Isto parece contradizer o nosso modo normal de operar. Estamos tentando tão duramente atingir a felicidade, lutar pela paz. Mas talvez nossos esforços, nossas lutas, nossos objetivos sejam o próprio obstáculo da nossa conquista da felicidade, para que fomentemos a paz. Todos nós tivemos a experiência de buscar uma resposta e então quando soltamos e relaxamos a resposta surge, sem esforço. Isto é ausência de objetivo.

Desfrutamos nossa respiração, bebemos chá, sorrimos conscientemente, caminhamos com a mente atenta e os insights surgem e a compreensão naturalmente chega. Ausência de objetivo é uma prática maravilhosa. É tão prazerosa, tão refrescante. Eu acredito que os cientistas necessitam desta prática tanto quanto os meditadores, para abrir as mentes cerradas deles, para abrir às possibilidades que estão além da imaginação deles. Muitas descobertas científicas aconteceram no solo da ausência de objetivos, porque quando você não está programado em seu destino tem mais chance de chegar a um novo e inesperado insight.

(Do livro Buddha Mind, Buddha Body: Walking toward Enlightenment, de Thich Nhat Hanh)
(Tradução para o português: Tâm Vân Lang)

segunda-feira, 10 de julho de 2017

Sua Verdadeira Aspiração

Quando estamos com muito medo, geralmente estamos totalmente focados em impedir o evento que tememos, e nos esquecemos de que a alegria também é possível, mesmo em um mundo imprevisível. Acreditamos que precisamos obter um determinado diploma ou carreira para estar seguros e ser um sucesso.Existem pessoas que são vítimas desse tipo de sucesso. Elas conseguem as coisas que trabalharam arduamente para conseguir, e depois se acham aprisionadas em formas que não tinham antecipado. Mas ninguém jamais é vítima da sua felicidade.

Muitos de nós vivem em comunidades onde todos têm um teto para se abrigar e comida suficiente para comer, e ninguém está com medo de bombas caindo sobre nós; no entanto as pessoas continuam sofrendo. Isto se dá porque esquecemos ou perdemos nossa aspiração mais profunda.

Muitos de nós labutam até o fim da vida sem consciência da sua atenção ou intenção. Estabelecemos uma trajetória para nós e seguimos em frente, sem parar para questionar se esse caminho está satisfazendo os nossos objetivos mais importantes. Em parte, isso acontece porque muitos de nós acreditamos que a felicidade não é possível no aqui e agora. Pensamos que precisamos lutar agora para poder ser feliz no futuro. Por isso, adiamos a felicidade e tentamos correr em direção ao futuro e alcançar as condições de felicidade que agora não temos.

Se você inspira e traz sua mente para a casa do seu corpo, poderá reconhecer imediatamente as inúmeras condições de felicidade que você já tem. Você pode examinar detalhadamente sua verdadeira aspiração e ter uma sacada: "Eu não preciso correr em direção ao futuro para ser feliz". Todos nós temos o hábito de correr. Esse hábito cria tensão, não só no corpo, como também na mente, e é a nossa maior fonte de sofrimento.

Muitos de nós acreditamos que só podemos ser felizes se tivermos muito poder, fama, riqueza e prazeres sensuais. Mas quando olhamos à nossa volta, vemos que há pessoas que têm essas coisas em abundância, mas não estão felizes. Esses objetos de desejo não são condições reais de felicidade. Contemplando profundamente, podemos reconhecer esta energia do hábito de correr, e imaginar como as coisas seriam se não mais deixássemos esta energia nos impelir para correr.

Todo mundo tem volição, uma forte motivação que nos estimula e que, quando é saudável, nos traz alegria. Quando eu tinha doze anos, eu sabia que queria ser monge. Aos dezesseis anos de idade, eu deixei minha mãe e minha família para me ordenar como um noviço. Eu amava muito minha mãe. Por um lado, eu queria estar perto dela. Por outro lado, eu sabia que minha maior felicidade era viver como um monge. Eu tive que sacrificar os bons tempos que passaria com a minha mãe e estava trista com isso; mas não permiti que qualquer medo de perda me impedisse, porque eu sabia que eu estava no caminho de realizar minha verdadeira aspiração.

Se não tivermos nos permitido parar, voltar para nossa casa interior e contemplar profundamente, pode ser que não saibamos o que nos traz nossa felicidade mais profunda. Talvez estejamos trabalhando muito para ter sucesso numa área, mas a nossa aspiração mais profunda seja trabalhar em outra área ou ajudar pessoas de outra forma. Precisamos parar e nos questionar: "Será que posso realizar a minha aspiração mais profunda se eu prosseguir nesse caminho?" "O que realmente está me impedindo de tomar o caminho que desejo mais profundamente?".

Do livro de Thich Nhat Hanh - "Sem Lama Não há Lótus".

segunda-feira, 26 de junho de 2017

A Grande Compaixão


Saigon, 22 de maio de 1966.

Não é provável que esta coleção de escritos no meu diário, que eu estou chamando de "Perfumadas Folhas de Palmeira", vá passar pelos censores. Se ela não puder ser publicada, espero que meus amigos circulem entre eles os textos. Hoje à noite o céu está estranhamente brilhante. Vou deixar o Vietnã amanhã, mas eu já sinto falta de casa. Eu sei que onde quer que eu vá haverá estrelas, nuvens e lua, mas estou determinado a voltar para casa. Meu coração está um pouco inquieto, mas no geral eu estou em paz. Quero compartilhar esses pensamentos, embora incompletos, enquanto eu estou sentindo essa calma.

Para alcançar o entendimento, você tem que descartar tudo o que você aprendeu. Isso é o que o Sutra do Diamante quer dizer onde está escrito: "A só é A, quando não é A." Eu sei que isso soa estranho, mas quanto mais eu vivo, mais eu vejo que é verdade. Apegar-se ao que você aprendeu é pior do que não aprender de início. Tudo que me foi ensinado no Instituto Budista foi virado de cabeça para baixo. É por isso que eu posso entender o que aprendi lá.

Momentos atrás, enquanto o nosso DC-4 se aproximava de Saigon, vi as formações de nuvens mais requintadas. O sol já havia se posto, mas havia luz suficiente no céu para ver as nuvens suaves e puras espalhadas por baixo do avião como um mar, onda após onda, mais branco que o branco da mais pura neve. Tornei-me um com as nuvens, tão suave e puro como uma nuvem. Por que os seres humanos são tão atraídos por nuvens e tapetes de pura neve, macios e brancos? Talvez seja porque gostemos de coisas que são puras, belas e saudáveis, coisas que reflitam a maneira que queremos nos ver. Pureza, beleza e salubridade não têm uma existência objetiva própria. São apenas nossos pontos de vista.

Nós reagimos a uma folha de papel branco, um riacho de água límpida, um doce refrão da música ou um homem ou mulher atraente da mesma maneira. Uma mulher bonita é muitas vezes comparada à neve, lua ou flores. Quando ela é compassiva, nós a chamamos de uma deusa ou um Buda, porque deusas e Budas são conhecidos por serem belos e gentis. Queremos ser associados com o que nós consideramos belo, puro e saudável e queremos que essas coisas permaneçam da mesma forma.

Mas o que dizer da corrupção, feiúra, crueldade e decadência? Lutamos para permanecer no lado puro e bonito e queremos manter o outro lado longe. O Budismo Mahayana descreve o nirvana como permanência, felicidade, liberdade e pureza. Eu acho que a escolha dessas quatro virtudes para descrever o nirvana demonstra como nós, seres humanos, somos ligados a uma determinada idéia de felicidade.

O Sutra do Coração foi composto para nos ajudar a quebrar tais pontos de vista. Avalokita, depois de olhar profundamente para as coisas, sorri e anuncia: "Todos os fenômenos são marcados com o vazio, pois eles não são produzidos nem destruídos, nem profanos nem imaculados, nem crescem nem diminuem, Desta maneira, na vacuidade não há nem forma, nem sentimentos, nem percepções, nem formações mentais, nem consciência; nem olho, ou ouvido, ou nariz, ou língua, ou corpo, ou mente; nem forma, nem som, nem cheiro, nem sabor, nem tato, nem objeto da mente".

Enquanto eu me sentava no avião, vi tudo isso a partir de uma perspectiva diferente. Sorri enquanto pensava sobre as diferentes formas da água. Ela pode ser um líquido claro, gelo, vapor, nuvens ou neve. Todas essas formas são H2O, mas a própria H2O está vazia, sem permanência. Ele pode ser dividida em hidrogênio e oxigênio, mas eles também são vazios. Examine o oxigênio e você vai ver que ele é composto de elementos que não são oxigênio, que também são vazios e feitos de outros elementos. Eles são todos interdependentes e interligados. Você não pode separar o oxigênio do não-oxigênio, mas também não se pode dizer que o oxigênio e o não-oxigênio são a mesma coisa.

Neste mundo de constantes mudanças, queremos nos agarrar a algumas verdades permanentes. Suponha que eu me pergunte qual é a coisa mais linda e importante do mundo, e suponha que eu responda "água". A água pode ser clara como um espelho. Ela pode cobrir um pico de montanha ou ficar girando em ondas brancas à beira-mar. Sem água, a Terra iria secar e morrer. Por isso, eu digo que a água é a coisa mais linda e importante.

Mas se eu parar e considerar o fogo, percebo que a vida também não seria possível sem a luz e o calor do sol. De fato, sem luz, como alguém poderia distinguir o que é belo e o que não é? Sem luz, quem poderia ver a água límpida como um espelho, a neve que cobre o pico da montanha ou as ondas girando à beira-mar? Posso entender isso também, mas se eu for obcecado com a água, vou fechar os olhos e me agarrar apenas à água. Isso seria ignorância, não é?

Alguns argumentam que a contínua transformação dos fenômenos apóia a crença na reencarnação. Você pode ter descartado essa crença quando ainda era jovem, entendendo que essa idéia pressupõe a existência de uma alma ou eu permanente e separado que pode transmigrar. Na realidade, não há um eu separado, não há oxigênio ou hidrogênio com uma identidade própria e permanente. No entanto, o mundo do vazio revela-se como eternamente milagroso. Há uma espécie de reencarnação, embora se olharmos profundamente, veremos que nada é permanente ou impermanente, puro ou corrupto, gentil ou cruel, bonito ou feio. Por favor, não repita essas coisas para as crianças, porque os olhos delas não estão abertos o suficiente ainda. Elas podem concluir que não há nenhuma razão para se viver de acordo com a ética se não há nem bom nem mau.

Dada uma escolha, você não iria escolher pureza sobre a corrupção, a felicidade sobre o sofrimento, bondade sobre a crueldade? Isso parece óbvio. Mas, para escolher pureza, felicidade e bondade, a maioria das pessoas assume que nós temos que destruir a corrupção, o sofrimento e a crueldade. É possível destruí-los? Se o ensinamento do Buda: "Isto é assim, então aquilo é assim," é verdadeiro, então, dentro da pureza há corrupção. Se você destruir a corrupção, destrói simultaneamente a pureza. "Este não é, porque aquele não é." Isso quer dizer que devemos nutrir corrupção, crueldade e sofrimento? Claro que não!

Todos os pares de opostos são criados por nossas próprias mentes a partir da nossa consciência armazenadora. Fazemos da felicidade e sofrimento uma enorme luta. Se pudéssemos penetrar a verdadeira face da realidade como Avalokita fez, todas as nossas tristezas e desgraças desapareceriam como fumaça e de fato nós iríamos "superar o mal-estar."

Olhe para o sorriso do Buda. É completamente pacífico e compassivo. Isso quer dizer que o Buda não leva o seu e o meu sofrimento a sério? O Buda enviou Bodhisattva Sadaparibhuta para nos informar que o Buda não olha para ninguém, porque cada ser se tornará um Buda.

Talvez a minha reação ao sorriso do Buda seja causada por um sentimento infantil de inferioridade - que certamente não surge de um sentimento de auto-respeito. É fácil nos sentirmos insignificantes, desajeitados e estúpidos diante do Buda, que vê o nirvana e samsara como meros lampejos de vazio. No entanto, estou certo de que o Buda sente compaixão por nós, não porque sofremos, mas porque não vemos o caminho, o que é a causa do nosso sofrimento.

Desde que eu era jovem, tento entender a natureza da compaixão. Mas a pouca compaixão que aprendi não foi proveniente de investigação intelectual, mas da minha experiência real do sofrimento. Eu não tenho orgulho do meu sofrimento mais do que uma pessoa que confunde uma corda com uma cobra é orgulhosa de seu medo. Meu sofrimento foi uma mera corda, uma mera gota de vazio tão insignificante que deve se dissolver como a névoa ao amanhecer. Mas não foi dissolvido e eu sou quase incapaz de suportá-lo. Será que o Buda não vê o meu sofrimento? Como ele pode sorrir?

O amor busca uma manifestação - o amor romântico, o amor maternal, amor patriótico, amor à humanidade, o amor por todos os seres. Quando você ama alguém, se sente ansioso para que ele ou ela estejam seguros e por perto. Você não pode simplesmente tirar seus entes queridos de seus pensamentos. Quando o Buda testemunha o sofrimento sem fim dos seres vivos, ele deve sentir uma profunda preocupação. Como ele pode apenas sentar lá e sorrir?

Mas pense nisso. Somos nós que o esculpimos sentado e sorrindo, e fazemos isso por uma razão. Quando você fica acordado a noite toda se preocupando com o seu ente querido, você está tão ligado ao mundo fenomenal que pode não ser capaz de ver a verdadeira face da realidade. Um médico que entende com precisão a condição de seu paciente não se senta e fica obcecado em mais de mil explicações ou ansiedades diferentes como a família do paciente. O médico sabe que o paciente vai se recuperar, e assim ele pode sorrir, mesmo quando o paciente ainda está doente. Seu sorriso não é cruel, é simplesmente o sorriso de alguém que capta a situação e não se envolve em preocupação desnecessária. Como posso colocar em palavras a verdadeira natureza da Grande Compaixão?

Quando começamos a ver que a lama preta e branca de neve não é nem feia nem bonita, quando podemos vê-la sem discriminação ou dualidade, então começamos a compreender a Grande Compaixão. Aos olhos da Grande Compaixão, não há nem esquerda nem direita, nem amigo nem inimigo, nem perto nem longe. Não pense que a Grande Compaixão é sem vida. A energia da Grande Compaixão é radiante e maravilhosa. Aos olhos da Grande Compaixão, não há separação entre sujeito e objeto, não há eu separado. Nada pode perturbar a Grande Compaixão.

Se uma pessoa cruel e violenta estripá-lo, você pode sorrir e olhar para ela com amor. É a sua educação, a sua situação e a sua ignorância que o leva a agir de forma tão estúpida. Olhe para ele - aquele que causa a sua destruição e joga montes de injustiça em cima de você - com olhos de amor e compaixão. Deixe a compaixão derramar de seus olhos e não deixe que nem uma onda de culpa ou a raiva suba em seu coração. Ele comete crimes sem sentido contra você e te faz sofrer, porque ele não pode ver o caminho para a paz, a alegria ou compreensão.

Se algum dia você receber a notícia de que eu morri por causa de atos cruéis de alguém, saiba que eu morri com o meu coração em paz. Saiba que em meus últimos momentos eu não sucumbi à raiva. Nunca devemos odiar um outro ser. Se você puder dar origem a essa consciência, será capaz de sorrir. Lembrando-se de mim, você vai continuar em seu caminho. Você terá um refúgio que ninguém poderá te tirar. Ninguém será capaz de perturbar a sua fé, porque ela não dependerá de qualquer coisa no mundo fenomenal. Fé e amor são um e podem apenas surgir quando você penetrar profundamente a natureza vazia do mundo fenomenal, quando puder ver que você está em tudo e tudo está em você.

Há muito tempo atrás eu li uma história sobre um monge que não sentia raiva contra o rei cruel que tinha cortado a sua orelha e perfurado sua pele com uma faca. Quando li isso, pensei que o monge deveria ser algum tipo de deus. Isso era porque eu ainda não conhecia a natureza da Grande Compaixão. O monge não tinha raiva dentro de si. Tudo o que ele tinha era um coração de amor. Não há nada que nos impeça de ser como aquele monge. O amor ensina que todos nós podemos viver como o Buda. Amanhã de manhã eu tenho que partir. Eu não vou ter tempo hoje de ler o que eu escrevi, mas vou ver brevemente Hung amanhã e vou dar-lhe o manuscrito antes de eu deixar a nossa bendita terra natal.

(Do livro de Thich Nhat Hanh - "Fragrant Palm Leaves” – Diário de Thich Nhat Hanh - Tradução Leonardo Dobbin)

terça-feira, 20 de junho de 2017

A Vida de Thich Nhat Hanh


Thich Nhat Hanh nasceu Nguyen Xuan Bao em 1926 no Vietnã Central durante a ocupação colonial francesa. Em sua juventude, ele foi profundamente afetado por imagens do Buda irradiando a paz em contraste gritante com o conflito e sofrimento que testemunhava ao seu redor. Aos 16 anos pediu permissão aos seus pais para se tornar um monge e entrou para o Monastério Tu Hieu em Hue, sendo ordenando monge noviço na escola Linji (japonês: Rinzai) da tradição Zen vietnamita.

O treinamento fundamental de um noviço no Vietnã é essencialmente a prática de estar presente em cada momento e fazer o que se está fazendo com plena consciência. Nhat Hanh viveu entre as florestas e jardins de Tu Hieu com sua comunidade de irmãos monges, estudando e praticando sob a orientação do abade, um sábio e experiente professor que amava e entendia seus alunos.

Depois de três anos, Nhat Hanh deixou Tu Hieu para frequentar o Instituto budista em Hue. Ele então foi para Saigon, o centro do movimento de renovação do budismo que buscava torná-lo relevante para a vida cotidiana das pessoas e para a realidade da sociedade moderna. Ele ajudou a fundar a Universidade Van Hanh, um instituto de estudos budistas mais elevados e se tornou o editor do jornal Budismo Vietnamita, que deu aos pensadores budistas criativos uma voz e encorajava a unificação de todas as escolas do budismo no Vietnã.

O diário foi encerrado depois de dois anos pela liderança budista conservadora. Nhat Hanh continuou a ensinar e escrever e seus escritos continuaram a ter oposição da liderança budista e do regime cada vez mais repressivo e ditatorial.

Em 1962 Nhat Hanh foi para os EUA estudar religião comparada na Universidade de Princeton. Em 1963 teve oferta de um cargo de professor na Universidade de Columbia. Após a queda do regime Diem em 1963, a liderança budista estava mais aberta à reforma, por isso Nhat Hanh abreviou a sua estadia nos EUA e regressou ao Vietnã em 1964 para ver a realização de um sonho, a fundação da Igreja Budista Unificada, que reuniu todas as várias congregações budistas do Vietnã.

A guerra no Vietnã continuou a escalar, causando mais e mais caos e devastação nas cidades e no campo. Aldeias inteiras foram destruídas, resultando em muitos refugiados. Em 1964, Nhat Hanh fundou a Escola de Jovens para o Serviço Social (SYSS), treinando jovens trabalhadores sociais, tanto monásticas como leigos, para entrar em aldeias, viver entre as pessoas, ajudá-las a reconstruir e reorganizar suas aldeias e ajudar os refugiados a se deslocar. Como Nhat Hanh e os trabalhadores SYSS se recusavam a escolher qualquer lado que não o lado de ajudar as pessoas, foram vistos com suspeita tanto pelas forças comunistas como pelas pró-americanas.

Mas o seu amor, dedicação e forma ética de trabalhar ganhou o coração de muitas pessoas. Muitos estudantes, amigos e colegas de Nhat Hanh foram mortos ou feridos durante este tempo. À medida que a guerra continuava a intensificar-se, Nhat Hanh decidiu voltar à fonte da guerra, viajando para Washington para pedir a paz, iniciando uma turnê norte-americana para informar às pessoas nos Estados Unidos sobre os efeitos devastadores da guerra contra o povo do Vietnã.

Foi nessa época que Nhat Hanh conheceu e provocou uma profunda impressão no monge trapista Thomas Merton, no Secretário de Defesa Robert McNamara e no Dr. Martin Luther King Jr., que mais tarde o indicou para o prêmio Nobel da Paz. Quando o governo do Vietnã do Sul ouviu falar nessas atividades, se recusou a deixar que Nhat Hanh voltasse para o Vietnã e ele se tornou um exilado no ocidente, posteriormente se estabelecendo na França.

Este foi um momento solitário e difícil para Nhat Hanh. Não havia muitos vietnamitas fora do Vietnã na época. Todos que ele conhecia, seu trabalho e seus alunos estavam no Vietnã. Mas gradualmente ele veio a conhecer as pessoas, árvores, pássaros, os frutos e flores do ocidente.

Ele fez amizade com adultos e crianças em cada país onde se encontrava e começou a se sentir em casa em todos os lugares. Onde quer que fosse, fazia amizade com as pessoas, quer fossem sacerdotes católicos, ministros protestantes, rabinos, imãs, ou trabalhadores humanitários ou comerciais. Nhat Hanh continuou a fazer viagens para palestras na América do Norte, Europa e Ásia, partilhando os seus métodos de prática e dando voz ao desejo do povo vietnamita pela paz. Em 1969 ele se tornou o representante da delegação de paz budista nos acordos de paz de Paris e foi capaz de expressar o desejo do povo vietnamita por um fim à guerra.

O fim da guerra chegou finalmente em 1975, mas o regime comunista, o novo governo do Vietnã, também não estava disposto a permitir que Nhat Hanh voltasse para casa. A Igreja Budista Unificada foi banida e muitos de seus principais monges foram aprisionados. Em 1976, enquanto estava em uma conferência em Singapura, ele ouviu falar da situação dos “Boat People”, refugiados vietnamitas que tinham deixado seu país de barco. Muitos deles morriam no mar. Ao navegar em barcos com pouca ou nenhuma comida e água, eles estavam à mercê de tempestades e dos piratas do mar. Se finalmente chegassem à costa, eram frequentemente empurrados de volta para o mar, porque muitos países não aceitavam “Boat People” ou tinham quotas muito baixas para aceitar os refugiados.

Nhat Hanh e seus colegas alugaram barcos e juntamente com amigos da Europa, trouxeram comida e água para os “Boat People”, tentando fazer acordos com todos, de pescadores e policiais a funcionários do governo, a fim de encontrar um lugar para o “Boat People” em terra. Ao mesmo tempo, fazia esforços para informar ao mundo a situação dos refugiados em uma tentativa de influenciar os governos ao redor do mundo para aumentar suas quotas e permitir que os “Boat People” pudessem reassentar.

Após o seu regresso de Singapura, Nhat Nham continuou a viver na França, mas também liderava retiros e a partilhava os seus ensinamentos em muitos países. Ele continuou a apoiar os trabalhos sociais no Vietnã e trabalhar para a libertação de monges presos. Ele fundou um monastério, a Comunidade da Batata Doce (“Sweet Potato Community”), fora de Paris, onde caminhava na floresta, plantava legumes, escrevia e praticava.

Quando o local se tornou pequeno para o número de estudantes que queriam ir e praticar com ele, Nhat Hanh fundou Plum Village em 1982, um centro de prática e um monastério no sudoeste da França, onde ainda vive. Existem atualmente nove centros de prática e monastérios em todo o mundo, nos EUA, Europa, Ásia e Austrália, onde seus alunos monásticos, hoje mais de 600, compartilham práticas de plena atenção no que agora é conhecido como a tradição de Plum Village. Há também mais de 1.000 sanghas leigas, comunidades de pessoas que praticam juntas, em todo o mundo.

Em 2004, o governo vietnamita convidou Nhat Hanh para visitar o Vietnã depois de quase 40 anos de exílio. Durante sua visita de três meses em 2005, ele liderou retiros para monges, monjas e leigos — principalmente jovens de toda parte do mundo. Ele teve conversas profundas com os líderes da comunidade budista, bem como com os líderes do governo e do partido comunista. Ele retornou novamente em 2007, desta vez para liderar cerimônias para louvar aqueles que tinham morrido na guerra e para trazer paz, cura e reconciliação aos sobreviventes, de forma que seu sofrimento não fosse passado para as gerações mais jovens. Ele visitou o Vietnã pela última vez em 2008.

Nhat Hanh continuou a viajar incansavelmente por todo o mundo para ensinar e liderar retiros até 2014, quando sofreu um derrame grave. Em uma extraordinária vida de ensino abrangendo 65 anos, Nhat Hanh, ensinou centenas de milhares de pessoas, em todos os continentes e de todas as camadas sociais. Ele conduziu retiros para famílias, trabalhadores de saúde, pessoas de negócios, veteranos, jovens, psicoterapeutas, professores, artistas, ambientalistas, membros do Congresso americano, e parlamentares. Muitos destes estudantes e amigos referem-se a Nhat Hanh com carinho, como "Thay", que significa "professor" em vietnamita. Em seu aniversário de 80 anos, quando perguntado se ele planejava se aposentar, Thich Nhat Hanh disse, "O ensino não é feito por falar somente. É feito por como você vive sua vida. A minha vida é o meu ensinamento. Minha vida é a minha mensagem. “

(Trecho do livro de Thich Nhat Hanh – At Home on the World)
(Tradução – Leonardo Dobbin)

terça-feira, 6 de junho de 2017

Tempo é Paz


Em 2013 eu conduzi um dia de prática de atenção plena para os funcionários do Google na sua sede na Califórnia que eles chamam de "Googleplex". Havia cerca de trinta monges e monjas em nossa delegação e mais de 700 funcionários do Google que tinham se inscrito para o dia. Começando no início da manhã, conduzimos sessões de meditação sentada, meditação andando, de como comer em plena consciência e de relaxamento total, exatamente como um dia de plena consciência em Plum Village.

Os funcionários do Google eram jovens, inteligentes e criativos, e pudemos ver que eles se entregaram plenamente na prática. A energia de concentração e de presença era muito forte e eles praticavam muito bem. Acho que a razão de terem praticado tão sinceramente é porque sofrem. Eles estavam sedentos por uma espécie de prática espiritual que poderia ajudá-los a sofrer menos. Sabíamos que eles estavam trabalhando muito duro. Todas as empresas estão perseguindo o sucesso, e há um forte desejo de ser o "número um".

É por isso que muitos jovens investem todo o seu tempo e energia no seu trabalho, na sua empresa e, por isso, não têm tempo para cuidar de seu corpo, de seus sentimentos, de suas emoções e de seus relacionamentos. Mesmo se têm tempo, podem não saber o que fazer com esse tempo, a fim de realmente cuidar de seu corpo e mente.

Eu compartilhei com todos como praticar a meditação andando, e começamos o dia andando lentamente, conscientemente, em silêncio em torno do campus. Depois de quinze minutos sentamo-nos silenciosamente, sem dizer uma palavra. Eu segurei minha xícara de chá em minhas duas mãos e estava desfrutando do meu chá quando outras pessoas começaram a chegar para sentarmos todos juntos, e seguirmos nossa respiração.

Nós nos sentamos lá pacificamente por muito tempo, apreciando o silêncio e a calma da manhã. Enquanto isso, havia muitos funcionários que estavam chegando mais tarde para o trabalho e cada vez que um desses dobrava a esquina, paravam de repente de surpresa. Eles tinham visto algo acontecendo: muitas pessoas sentadas e sem fazer nada, apenas respirando. Estava tão silencioso! Era algo totalmente novo e inesperado. O tempo não era mais dinheiro. Tempo é paz; tempo é vida.

Muitos de nós estamos tão ocupados e trabalhamos tanto que não temos tempo para viver. Nosso trabalho pode tomar toda a nossa vida. Nós podemos até estar viciados em nosso trabalho, não porque precisamos do dinheiro, mas porque não sabemos como lidar com o sofrimento e a solidão interior, e assim nos refugiamos em nosso trabalho. Há momentos em que não sabemos o que fazer com a nossa solidão, dor e desespero interior. Tentamos procurar algo para encobrir. Nós verificamos e-mails, pegamos um jornal, ouvimos as notícias, qualquer coisa para esquecer a solidão e o sofrimento interior. Nosso corpo está inquieto, nossa mente está inquieta e não sabemos o que fazer. Tentamos sentar, mas é como se estivéssemos sentados em brasas. Podemos dar um passeio, mas é como se estivéssemos andando em chamas.

Quando a energia do desassossego se manifesta, temos que reconhecer o que está acontecendo e dizer: "Olá minha inquietação. Eu sei que você está aí. Eu vou cuidar bem de você. Então começamos a praticar a respiração consciente e trazer a nossa mente para o nosso corpo. Quando mente e corpo estão juntos e você está estabelecido no aqui e agora, então você pode entrar em contato com a vida e cuidar dos sentimentos interiores.

Então a natureza revela-se em todas as suas maravilhas. Se continuarmos a trabalhar tão duro, não teremos tempo suficiente para viver, não teremos tempo suficiente para tocar as maravilhas da vida e obter a nutrição e a cura que precisamos. Precisamos desta visão para nos libertarmos da nossa inquietude. No país do presente momento, podemos curar-nos e desfrutar a vida profundamente.

Um dia, em uma turnê de ensino na China, nossa delegação de Plum Village teve a oportunidade de escalar a montanha sagrada Wutai Shan. Nosso guia turístico tinha conduzido muitos grupos, talvez até centenas de grupos, para o alto da montanha. Mas, naquele dia, propusemos que, em vez de liderar, ele nos seguisse, porque tínhamos nossa própria maneira de andar.

No sopé da montanha, eu dei instruções de como andar. Respirando, nós daríamos um passo; expirando, daríamos outro passo. Porque há milhares de degraus, e queríamos desfrutar de cada passo. O nosso objetivo não era chegar ao topo da montanha, nosso objetivo era tocar a paz e a alegria com cada passo. Tivemos que andar no lado direito dos degraus enquanto subíamos. Muitos grupos nos ultrapassavam. Eles se viravam e olhavam para nós, tentando ver quem era que estava se movendo no ritmo de um caracol até o alto da montanha. Não foi fácil para o nosso guia. Lembro-me muito bem da caminhada.

Eu respirava e colocava o meu pé esquerdo no degrau, e então, expirava e levava o meu pé direito para cima. Fomos capazes para fazê-lo de tal forma que o prazer e a alegria foram possíveis a cada passo. Nós parávamos a cada dez passos, para dar uma olhada para baixo e apreciar a vista e continuar a respirar. Então nós continuávamos. Quando chegamos ao topo da montanha, não estávamos absolutamente cansados.

Em nossa delegação, havia uma monja que falava chinês, e no ônibus ela ouviu o guia turístico dizendo a seu colega, "Este monge é incrível. Eu liderei centenas de grupos na montanha e sempre chego exausto. Mas hoje, pela primeira vez, cheguei me sentindo refrescado. Ele realmente é incrível. “ Naquela época na China, os guias turísticos tinham que apresentar relatórios sobre as atividades dos visitantes a polícia. Ela continuou dizendo: "Eu terminei o meu relatório sobre o que eles fizeram e o que o monge disse hoje. Mas eu não vou entregar ainda, porque o que ele disse foi tão interessante que eu quero ler minhas anotações de novo. “

Então, se você está andando na estação ferroviária, no aeroporto, ou ao longo da margem de um rio, certifique-se que cada passo que você dá traz alegria, relaxamento e felicidade. Cada passo pode ser a cura, se você estiver andando com outros ou caminhando sozinho. Não devemos perder um único passo. A cada passo, chegamos à nossa vida. Cada passo nos ajuda a parar de correr — correr não apenas no corpo, mas correr na mente. Correr tornou-se um hábito e não somos capazes de desfrutar da nossa vida no aqui e agora. Mesmo em nosso sono, em nossos sonhos, continuamos a correr. Então, realmente chegar e parar com cada passo é um treinamento. Precisamos treinar como parar.

Cada vez que você anda mesmo em uma curta distância, seja de sua casa para o ponto de ônibus, ou do estacionamento para seu local de trabalho, você pode escolher andar de tal maneira que cada passo possa lhe trazer a alegria, a paz, e a felicidade. Você pode querer lembrar que os outros também estão andando assim, e podemos nos sentir conectados uns com os outros. A conexão é muito importante. Não é porque você tem um telefone que você se sentirá conectado. Eu nunca tive um celular e ainda assim eu nunca me senti desligado de ninguém. O que nos conecta é a nossa caminhada consciente, nossos passos conscientes. Então se você quiser se conectar com os outros, tudo que você precisa fazer é praticar meditação andando todas as manhãs após o café da manhã no seu caminho para o trabalho. Andando assim, em paz e liberdade, nos tornaremos conectados imediatamente.

(Trecho do livro de Thich Nhat Hanh – At Home on the World)
(Tradução – Leonardo Dobbin)

segunda-feira, 29 de maio de 2017

A Fala Correta


Em nossa época, as técnicas de comunicação são muito sofisticadas. Enviamos notícias para o outro lado do planeta com facilidade e rapidez. Ao mesmo tempo, a comunicação entre as pessoas se torna cada vez mais difícil. Os pais não conseguem falar com seus filhos, os maridos com suas mulheres e os sócios com seus parceiros. A comunicação parece estar bloqueada. Estamos numa situação difícil, não apenas entre países, mas também entre pessoas. A prática do Quarto Treinamento da Atenção Plena é muito importante.

O enunciado clássico da Fala Correta é o seguinte:

(1)   Falar sempre a verdade. Quando uma coisa é azul nós dizemos que ela é azul, e não roxa.

(2)   Não falar coisas contraditórias deliberadamente. Não dizemos uma determinada coisa a uma pessoa e uma coisa diferente a outra pessoa. É claro que podemos descrever a verdade de várias formas, para que o ouvinte entenda o que estamos dizendo, mas é preciso ser sempre fiel à verdade.


(3)   Não falar com crueldade. Não gritamos, não caluniamos, não amaldiçoamos, não provocamos sofrimento nem geramos ódio. Mesmo aqueles que têm um bom coração e não querem ferir ninguém muitas vezes permitem que saiam palavras tóxicas de sua boca. Nós carregamos em nós as sementes do Estado de Buda juntamente com os grilhões das formações mentais. Quando dizemos algo venenoso, isso em geral se origina da força do hábito. As palavras são muito poderosas. Elas podem gerar um complexo em uma pessoa, tirar sua vontade de viver, ou mesmo conduzir alguém ao suicídio. É preciso não se esquecer disto.

(4)   Não exagerar nem retocar os fatos. Não devemos dramatizar desnecessariamente, querendo que as coisas pareçam melhores, piores ou mais urgentes do que realmente são. Se alguém está um tanto irritado, não diremos que está furioso. A prática da Fala Correta consiste em tentar mudar nossos hábitos, para que nossas palavras venham da semente de Buda que existe em nós, e não das sementes doentias ou indesejáveis.


A Fala Correta se baseia no Pensamento Correto. A fala é o nosso pensamento, expresso sob a forma de som. Quando falamos, nossos pensamentos deixam de ser particulares. Oferecemos aos outros fones de ouvido, permitindo que ouçam a fita de áudio que toca em nossa mente. É claro que existem coisas que pensamos e não dizemos, e uma parte de nós faz o papel de censor. Às vezes, quando um amigo ou terapeuta nos confronta com uma pergunta inesperada, acabamos sem querer dizendo a verdade que pretendíamos esconder.

Algumas vezes, os blocos de dor que existem incrustados dentro de nós se expressam na fala (ou nos atos), sem terem antes passado pelo pensamento. Ou seja, o sofrimento acumulado já não pode mais ser reprimido, especialmente quando não se pratica a Atenção Plena Correta. Quando expressamos dor, podemos ferir a nós mesmos ou aos outros, mas se não praticarmos a Atenção Plena Correta não saberemos o que está se acumulando dentro de nós. Por isso, terminamos por dizer ou escrever coisas que não queríamos, e não sabemos de onde essas palavras vieram.

Não queremos realmente ferir ninguém, mas acabamos dizendo coisas que ferem. Temos a intenção de só dizer palavras de reconciliação e perdão, e logo em seguida dizemos algo cruel. Para regar as sementes da paz que existem em nós, precisamos praticar a Atenção Plena Correta enquanto estamos caminhando, sentados, de pé etc. Com a Atenção Plena Correta conseguimos ver claramente nossos pensamentos e sentimentos, e identificar o que nos ajuda e o que nos machuca. Quando os pensamentos saem de nossa mente sob a forma de palavras, se a Atenção Plena Correta os acompanhar teremos consciência do que dizemos, e se isto é útil ou pernicioso.

O alicerce da Fala Correta é ouvir com atenção. Se não conseguimos escutar com consciência, não podemos praticar a Fala Correta. Não importa o que dissermos, estaremos apenas relatando nossas próprias idéias, sem realmente responder ao que o outro disse. No Sutra do Lótus somos aconselhados a olhar e ouvir com os olhos e ouvidos da compaixão. A escuta compassiva auxilia a cura. Quando alguém nos ouve desta forma, sentimos alívio imediato. Um bom terapeuta sempre pratica a escuta compassiva. Temos que aprender a também fazer a mesma coisa, para poder ajudar aqueles que amamos, resgatando a comunicação com eles.

Quando a comunicação é cortada, todos sofremos. Quando ninguém nos ouve ou entende, viramos uma bomba prestes a explodir. Restaurar a comunicação é uma tarefa urgente. Às vezes bastam dez minutos de escuta atenta para transformar uma pessoa e devolver o sorriso aos seus lábios. Bodhisattva Kwan Yin é aquela pessoa que ouve os lamentos do mundo. Ela tem a qualidade do verdadeiro ouvinte compassivo, que não julga nem reage. Quando ouvimos com todo o nosso ser, conseguimos desarmar diversas bombas-relógio. Se a outra pessoa acha que estamos criticando o que ela está dizendo, seu sofrimento não será aliviado. Quando o psicoterapeuta pratica o Ouvir Correto, seus pacientes têm a coragem de lhe dizer coisas que nunca disseram antes a ninguém. A escuta verdadeira nutre quem fala e quem ouve.

Nós já perdemos, em geral, a capacidade de ouvir e falar amorosamente em família. Talvez as pessoas já não consigam mais ouvir umas às outras, e por isso nos sentimos sós, mesmo estando em família. Por isso fazemos terapia, na esperança de que o terapeuta nos ouça. Mas muitos terapeutas também carregam consigo uma dor profunda, e às vezes não conseguem ouvir tão bem quanto gostariam. Assim, se você ama alguém, tente aprender a ser um bom ouvinte. Torne-se um terapeuta. Você será o melhor terapeuta do mundo para a pessoa que ama, se conseguir aprender a arte da escuta atenta e compassiva.

Além disso, é preciso aprender a falar com amor. Já perdemos a capacidade de dizer as coisas com calma, e nos irritamos com demasiada facilidade. A cada vez que abrimos a boca, nossa fala soa amarga ou azeda. Sabemos que isso é verdade, que perdemos a capacidade de falar com bondade. Este é o Quarto Treinamento da Atenção Plena, fundamental para a manutenção de relacionamentos pacíficos e amorosos. Se você não conseguir aprender isto, também não conseguirá atingir a felicidade, a harmonia e o amor. É por isso que a prática do Quarto Treinamento da Atenção Plena é tão importante.

Muitas famílias, casais e relacionamentos se rompem porque perderam a capacidade de ouvir uns aos outros com serenidade e compaixão. Não sabemos mais usar a fala calma e amorosa. O Quarto Treinamento da Atenção Plena é fundamental para restaurar a comunicação entre nós. É uma grande dádiva poder aplicar o Quarto Treinamento à arte de ouvir e de falar amorosamente. Por exemplo, um membro da família talvez esteja sofrendo muito, mas mesmo assim ninguém se senta calmamente para ouvi-lo. Se existir alguém na família capaz de ouvir com o coração, pelo menos durante uma hora, a pessoa que sofre terá a sensação de que sua dor foi aliviada. Se você sofre e ninguém o escuta, o sofrimento permanece lá. Mas, ao contrário, se alguém o ouve e compreende, você começa imediatamente a sentir o alívio de ser ouvido por alguém.(...)

Algumas vezes falamos intempestivamente e criamos pontos de bloqueio nas outras pessoas. Dizemos: "Mas eu só estava dizendo a verdade." Talvez o que foi dito seja a verdade, mas se esta forma de falar causa sofrimento desnecessário, então certamente não é a Fala Correta. A verdade deve ser apresentada de uma forma que o outro seja capaz de aceitar. Palavras que ferem ou destroem não representam a Fala Correta. Antes de falar, compreenda a pessoa com quem você está falando. Considere cada palavra cuidadosamente, antes de dizer qualquer coisa, para que sua fala seja correta na forma e conteúdo.

(Do livro “A Essência dos ensinamentos de Buda” – Thich Nhat Hanh)