segunda-feira, 29 de maio de 2017

A Fala Correta


Em nossa época, as técnicas de comunicação são muito sofisticadas. Enviamos notícias para o outro lado do planeta com facilidade e rapidez. Ao mesmo tempo, a comunicação entre as pessoas se torna cada vez mais difícil. Os pais não conseguem falar com seus filhos, os maridos com suas mulheres e os sócios com seus parceiros. A comunicação parece estar bloqueada. Estamos numa situação difícil, não apenas entre países, mas também entre pessoas. A prática do Quarto Treinamento da Atenção Plena é muito importante.

O enunciado clássico da Fala Correta é o seguinte:

(1)   Falar sempre a verdade. Quando uma coisa é azul nós dizemos que ela é azul, e não roxa.

(2)   Não falar coisas contraditórias deliberadamente. Não dizemos uma determinada coisa a uma pessoa e uma coisa diferente a outra pessoa. É claro que podemos descrever a verdade de várias formas, para que o ouvinte entenda o que estamos dizendo, mas é preciso ser sempre fiel à verdade.


(3)   Não falar com crueldade. Não gritamos, não caluniamos, não amaldiçoamos, não provocamos sofrimento nem geramos ódio. Mesmo aqueles que têm um bom coração e não querem ferir ninguém muitas vezes permitem que saiam palavras tóxicas de sua boca. Nós carregamos em nós as sementes do Estado de Buda juntamente com os grilhões das formações mentais. Quando dizemos algo venenoso, isso em geral se origina da força do hábito. As palavras são muito poderosas. Elas podem gerar um complexo em uma pessoa, tirar sua vontade de viver, ou mesmo conduzir alguém ao suicídio. É preciso não se esquecer disto.

(4)   Não exagerar nem retocar os fatos. Não devemos dramatizar desnecessariamente, querendo que as coisas pareçam melhores, piores ou mais urgentes do que realmente são. Se alguém está um tanto irritado, não diremos que está furioso. A prática da Fala Correta consiste em tentar mudar nossos hábitos, para que nossas palavras venham da semente de Buda que existe em nós, e não das sementes doentias ou indesejáveis.


A Fala Correta se baseia no Pensamento Correto. A fala é o nosso pensamento, expresso sob a forma de som. Quando falamos, nossos pensamentos deixam de ser particulares. Oferecemos aos outros fones de ouvido, permitindo que ouçam a fita de áudio que toca em nossa mente. É claro que existem coisas que pensamos e não dizemos, e uma parte de nós faz o papel de censor. Às vezes, quando um amigo ou terapeuta nos confronta com uma pergunta inesperada, acabamos sem querer dizendo a verdade que pretendíamos esconder.

Algumas vezes, os blocos de dor que existem incrustados dentro de nós se expressam na fala (ou nos atos), sem terem antes passado pelo pensamento. Ou seja, o sofrimento acumulado já não pode mais ser reprimido, especialmente quando não se pratica a Atenção Plena Correta. Quando expressamos dor, podemos ferir a nós mesmos ou aos outros, mas se não praticarmos a Atenção Plena Correta não saberemos o que está se acumulando dentro de nós. Por isso, terminamos por dizer ou escrever coisas que não queríamos, e não sabemos de onde essas palavras vieram.

Não queremos realmente ferir ninguém, mas acabamos dizendo coisas que ferem. Temos a intenção de só dizer palavras de reconciliação e perdão, e logo em seguida dizemos algo cruel. Para regar as sementes da paz que existem em nós, precisamos praticar a Atenção Plena Correta enquanto estamos caminhando, sentados, de pé etc. Com a Atenção Plena Correta conseguimos ver claramente nossos pensamentos e sentimentos, e identificar o que nos ajuda e o que nos machuca. Quando os pensamentos saem de nossa mente sob a forma de palavras, se a Atenção Plena Correta os acompanhar teremos consciência do que dizemos, e se isto é útil ou pernicioso.

O alicerce da Fala Correta é ouvir com atenção. Se não conseguimos escutar com consciência, não podemos praticar a Fala Correta. Não importa o que dissermos, estaremos apenas relatando nossas próprias idéias, sem realmente responder ao que o outro disse. No Sutra do Lótus somos aconselhados a olhar e ouvir com os olhos e ouvidos da compaixão. A escuta compassiva auxilia a cura. Quando alguém nos ouve desta forma, sentimos alívio imediato. Um bom terapeuta sempre pratica a escuta compassiva. Temos que aprender a também fazer a mesma coisa, para poder ajudar aqueles que amamos, resgatando a comunicação com eles.

Quando a comunicação é cortada, todos sofremos. Quando ninguém nos ouve ou entende, viramos uma bomba prestes a explodir. Restaurar a comunicação é uma tarefa urgente. Às vezes bastam dez minutos de escuta atenta para transformar uma pessoa e devolver o sorriso aos seus lábios. Bodhisattva Kwan Yin é aquela pessoa que ouve os lamentos do mundo. Ela tem a qualidade do verdadeiro ouvinte compassivo, que não julga nem reage. Quando ouvimos com todo o nosso ser, conseguimos desarmar diversas bombas-relógio. Se a outra pessoa acha que estamos criticando o que ela está dizendo, seu sofrimento não será aliviado. Quando o psicoterapeuta pratica o Ouvir Correto, seus pacientes têm a coragem de lhe dizer coisas que nunca disseram antes a ninguém. A escuta verdadeira nutre quem fala e quem ouve.

Nós já perdemos, em geral, a capacidade de ouvir e falar amorosamente em família. Talvez as pessoas já não consigam mais ouvir umas às outras, e por isso nos sentimos sós, mesmo estando em família. Por isso fazemos terapia, na esperança de que o terapeuta nos ouça. Mas muitos terapeutas também carregam consigo uma dor profunda, e às vezes não conseguem ouvir tão bem quanto gostariam. Assim, se você ama alguém, tente aprender a ser um bom ouvinte. Torne-se um terapeuta. Você será o melhor terapeuta do mundo para a pessoa que ama, se conseguir aprender a arte da escuta atenta e compassiva.

Além disso, é preciso aprender a falar com amor. Já perdemos a capacidade de dizer as coisas com calma, e nos irritamos com demasiada facilidade. A cada vez que abrimos a boca, nossa fala soa amarga ou azeda. Sabemos que isso é verdade, que perdemos a capacidade de falar com bondade. Este é o Quarto Treinamento da Atenção Plena, fundamental para a manutenção de relacionamentos pacíficos e amorosos. Se você não conseguir aprender isto, também não conseguirá atingir a felicidade, a harmonia e o amor. É por isso que a prática do Quarto Treinamento da Atenção Plena é tão importante.

Muitas famílias, casais e relacionamentos se rompem porque perderam a capacidade de ouvir uns aos outros com serenidade e compaixão. Não sabemos mais usar a fala calma e amorosa. O Quarto Treinamento da Atenção Plena é fundamental para restaurar a comunicação entre nós. É uma grande dádiva poder aplicar o Quarto Treinamento à arte de ouvir e de falar amorosamente. Por exemplo, um membro da família talvez esteja sofrendo muito, mas mesmo assim ninguém se senta calmamente para ouvi-lo. Se existir alguém na família capaz de ouvir com o coração, pelo menos durante uma hora, a pessoa que sofre terá a sensação de que sua dor foi aliviada. Se você sofre e ninguém o escuta, o sofrimento permanece lá. Mas, ao contrário, se alguém o ouve e compreende, você começa imediatamente a sentir o alívio de ser ouvido por alguém.(...)

Algumas vezes falamos intempestivamente e criamos pontos de bloqueio nas outras pessoas. Dizemos: "Mas eu só estava dizendo a verdade." Talvez o que foi dito seja a verdade, mas se esta forma de falar causa sofrimento desnecessário, então certamente não é a Fala Correta. A verdade deve ser apresentada de uma forma que o outro seja capaz de aceitar. Palavras que ferem ou destroem não representam a Fala Correta. Antes de falar, compreenda a pessoa com quem você está falando. Considere cada palavra cuidadosamente, antes de dizer qualquer coisa, para que sua fala seja correta na forma e conteúdo.

(Do livro “A Essência dos ensinamentos de Buda” – Thich Nhat Hanh)

terça-feira, 23 de maio de 2017

Reconciliação


Nós temos a tendência de culpar os outros, como se eles estivessem separados de nós. Portanto, temos que olhar profundamente e perguntar, estamos crescendo a cada dia? Somos mais felizes a cada dia? Será que estamos em mais harmonia conosco e com os outros ao nosso redor, as pessoas antipáticas, bem como as pessoas adoráveis?

O que outras pessoas dizem ou fazem não tem que nos afetar. Nós ainda podemos tomar conta de nós mesmos. Nós podemos tentar o nosso melhor para realmente ajudar as pessoas em vez de julgar, xingar e nos comportar de uma maneira que cria guerras em torno de nós. Quando a nossa mão esquerda se fere, não dizemos, "Mão estúpida! Como você pôde fazer isso?" Nós, naturalmente, cuidamos de nossa mão esquerda para que ela possa se curar. Esta é a forma como podemos ver as pessoas de nossa família ou da comunidade que não estão muito bem, que são facilmente feridas, e tem muitas dificuldades. Nós não dizemos: "Você não se comporta muito bem, você tem que mudar." Podemos aprender a cuidar delas como faríamos com nossa mão esquerda ferida.

Quando estamos com raiva de alguém, é porque não somos capazes de ver os muitos elementos daquela pessoa que não são dela. Nós não vemos que essa pessoa está agindo por causa da energia de hábito que lhe foi transmitida. Quando vemos de maneira mais profunda, podemos aceitar esta pessoa com mais facilidade. Isso também é verdade conosco. Quando podemos ver dentro de nós todos os elementos que vieram de outras pessoas, como nossos pais e nossos antepassados, e também do nosso meio ambiente, então podemos ver que muito da nossa severidade com nós mesmos e com os outros vem de outras raízes, outros elementos. Podemos ver, "Ah, esse é o meu avô, que está julgando meu amigo." Cada interação que acontece com intenção e sem julgamento aumenta a nossa consciência atenta das formas em que nossos pensamentos, palavras e ações não são apenas nossos. Nossos ancestrais continuam a cada dia em nós. Com essa compreensão, podemos encontrar uma maneira de desfazer as dificuldades que temos com os outros e fazer a paz.

Porque muitas vezes somos apanhados nas imagens do nosso sofrimento passado, facilmente desenvolvemos percepções erradas e reagimos aos outros de uma maneira que traz mais sofrimento. Suponha que estamos com raiva de alguém porque acreditamos que essa pessoa tentou nos fazer sofrer. Essa é a nossa percepção. Acreditamos que a intenção da outra pessoa é nos fazer sofrer e tornar nossa vida miserável. Essa percepção traz raiva e o tipo de ações que vão levar a mais sofrimento para todos os envolvidos.

Em vez de atacar, podemos usar a respiração e o caminhar conscientes para gerar consciência e insight. Podemos inspirar e expirar e ver que há sofrimento em nós e há percepções erradas em nós. Vemos que há sofrimento e percepções erradas na outra pessoa. Chegamos a um certo nível de consciência, mas a outra pessoa pode não ter o mesmo, porque ela não sabe como reconhecer e lidar com seu sofrimento e sair de sua situação atual. Ela sofre, e faz a si mesmo e as pessoas ao seu redor sofrer.

Assim que vemos isso, temos uma outra maneira de olhar para ela. Nós vemos o sofrimento nela e podemos ver que ela não sabe como lidar com o seu sofrimento. Quando somos capazes de ver o seu sofrimento e a sua situação, a compaixão surge. Quando a compaixão surge, a raiva se transforma. Nós não vamos agir no sentido da punição, porque não temos mais a raiva.

Esta é a intervenção do insight. Nós podemos ser salvos pelo nosso insight, pois ajuda-nos a corrigir nossas percepções erradas. Quando percepções erradas não estão mais presentes, raiva, medo e desespero não estão mais também. Em vez disso, temos compaixão e a vontade de ajudar.

Vontade é a base de todas as nossas ações. Quando temos percepções erradas, nossa vontade nos motiva a reagir de forma a criar mais sofrimento. Com o insight, a nossa vontade se torna boa vontade. Somos motivados pelo desejo de ajudar, e não o de punir.

Quando estamos motivados assim, já nos sentimos muito melhor, mesmo quando nós não fizemos nada ainda. Ficamos com o lucro da prática imediatamente. A outra pessoa, a que achamos que estava criando o nosso sofrimento, vai  lucrar com isso mais tarde.

Talvez tivéssemos um pai que nos considerava que fóssemos sua propriedade, como uma casa, dinheiro ou um carro. Se tivéssemos um pai assim, poderíamos ter pensado que ele poderia ter feito qualquer coisa conosco porque éramos seu filho. Ele não pensava em nós, como uma pessoa, um ser humano com o direito de pensar, de agir e seguir o que acreditamos ser belo, bom e verdadeiro. Ele só queria que seguissemos o caminho que ele havia traçado para nós. Por que há alguns pais como esse? Há pais que são diferentes, capazes de tratar seus filhos com muito respeito, como seres livres.

Se nosso pai nos tratou mal, talvez seja porque ele não teve sorte. Sua educação e meio ambiente não o ensinou a sentir ou expressar amor e compreensão. Se o culpamos, se queremos puni-lo, ele vai sofrer mais, e isso é tudo. Nós não podemos ajudá-lo dessa maneira. Mas quando entendemos como ele não teve sorte, a raiva de nosso pai se dissipa. Nosso pai se torna alguém que precisa do nosso amor, em vez do nosso castigo.

É claro que precisamos nos manter a salvo e não ficar ao redor de nosso pai se ele está fisicamente ou emocionalmente perigoso para nós. Mas fugir de nosso pai só vai aumentar o sofrimento para nós dois. Se nós não praticamos o estar atento com o nosso pai, então criamos o inferno para ambos.

Sempre que os pais e filhos lutam, as crianças perdem, porque elas não devem responder com a linguagem utilizada por seus pais. Os pais podem bater nos seus filhos, mas os filhos não podem bater nos seus pais. Os pais podem abusar de seus filhos com palavras, mas as crianças não podem fazer isso, porque eles não podem expressar a violência que receberam, ficam doentes. A violência que recebem permanece dentro delas e procura uma maneira de sair, uma forma de se expressar. Se, quando jovens não nos tratamos bem e nos ferimos, é porque não temos outra maneira de expressar a violência em nós. Nós somos vítimas da violência que recebemos de nossos pais e da sociedade.

Nossos pais não eram sábios o suficiente para manter sua violência longe de seus filhos, mesmo que quisessem nos amar e fazer felizes. Eu sei de um jovem que estava estudando medicina. Seu pai era um médico. O jovem parecia como alguém da geração mais jovem que prometia a si mesmo que ia ser diferente de seu pai. Mas quando ele se tornou pai, fez exatamente as mesmas coisas que seu pai tinha feito para ele. Ele gritou com seus filhos e os criticou diariamente.

Quando éramos crianças, prometemos fazer o oposto dos nossos pais. No entanto, quando temos nossos próprios filhos, muitas vezes repetimos os hábitos de nossos pais. Essa é a roda de samsara, a continuação do sofrimento da vida de geração em geração. Nós praticamos a fim de acabar com a roda de samsara, para parar os nossos hábitos e impedi-los de afetar a nossa relação com nossos filhos.

As duas gerações devem reconhecer a violência que está nos destruindo e destruindo as pessoas que amamos. Ambas as partes têm de buscar o caminho do olhar em profundidade porque ambas as gerações são apenas vítimas. As crianças pensam que são vítimas de seus pais, e os pais pensam que são vítimas dos filhos. Nós continuamos a culpar uns aos outros. Nós não aceitamos o fato de que a violência está dentro de ambos. Em vez de lutar uns contra os outros, devemos nos unir como pais e filhos, parceiras e parceiros para encontrar uma saída. Só porque temos sofrido não significa que temos de continuar a fazer o outro sofrer. Cada um de nós sofre muito, como resultado das mesmas causas. Portanto, devemos ser aliados ao invés de inimigos. A quantidade de sofrimento em nós é o suficiente para nos instruir em como não cometer o mesmo erro. O Buda disse: "Em tudo o que vem a ser, pratique o olhar em profundidade em sua natureza". Quando começamos a compreender a sua natureza, como veio a ser, então já estamos em um caminho de libertação.

Portanto parceira tem que vir ao parceiro, amigo tem que vir para a amiga, a mãe tem que vir para filha. Estamos de acordo sobre o fato de que ambos sofreram, que ambos têm a violência, o ódio, e aflições dentro de si. Em vez de se opor e culpar uns aos outros, devemos ajudar uns aos outros e praticar em conjunto, com a ajuda de um professor e de nossa comunidade.

Eu conheci um jovem que estava tão zangado com o pai que disse, "eu não quero ter nada a ver com o meu pai." Podemos entender. Ele sente que todo seu sofrimento veio de seu pai e quer ser inteiramente diferente dele. Ele quer se desligar completamente dessa parte de sua existência. Mas, se ele olhar profundamente, vai ver que mesmo que odeie seu pai com todo o seu ser, ele é seu pai, ele é a continuação de seu pai. Ao odiar seu pai está odiando-se. Não há alternativa senão aceitar o nosso pai. Se o nosso coração é pequeno, se não podemos abraçá-lo ainda, temos que ter um grande coração. Como é que vamos fazer para o nosso coração ser grande, de modo que haja espaço suficiente para abraçar o nosso pai?

A prática de olhar profundamente é a única prática que ajuda o coração a se expandir até que seja imensurável. Um coração que pode ser medido não é um grande coração. Há quatro elementos que compõem o verdadeiro amor, as quatro mentes incomensuráveis. Eles são maitri (bondade amorosa), karuna (compaixão), mudita (alegria), e upeksha (não-discriminação, equanimidade). Nós praticamos com esses elementos, a fim de transformar o nosso coração em algo imensurável.

Quando nosso coração começa a se expandir, crescer, ficar grande, somos capazes de conter, suportar, qualquer tipo de sofrimento. Quando abraçamos o sofrimento dentro de nós, não vamos sofrer mais.

O Buda descreve um coração incomensurável com esta analogia. Se alguma sujeira cai em nosso copo de água, não vamos beber essa água, nós vamos ter que jogá-la fora. Mas se colocarmos a sujeira em um rio imenso, ainda podemos usar a água. O rio é grande, ele pode aceitar a sujeira e podemos beber a água.

Quando o nosso coração é pequeno, não pode suportar a quantidade de dor e sofrimento infligida sobre nós por outra pessoa ou pela sociedade. Mas, se o nosso coração é grande, podemos abraçar a dor e não temos que sofrer. A prática das quatro mentes incomensuráveis ​​faz nosso coração tão grande como o rio.

(Do livro de Thich Nhat Hanh - "Reconciliation” - Tradução Leonardo Dobbin)

segunda-feira, 15 de maio de 2017

Sobre Nossos Antepassados e Futuras Gerações


Um dia estava sentado em um ônibus na Índia com um amigo que estava organizando minha visita lá. Meu amigo pertencia à casta que tem sido discriminada por milhares de anos. Eu estava apreciando a vista pela janela, quando notei que ele estava bastante tenso. Eu sabia que ele estava preocupado em garantir que minha estadia estivesse agradável, eu disse, "por favor, relaxe. Estou gostando muito da minha visita. Tudo está indo muito bem." Realmente não havia necessidade dele se preocupar. Ele se sentou e sorriu, mas após alguns instantes, estava tenso de novo. Quando eu olhei para ele, podia ver a luta que estava em curso há quatro ou cinco mil anos, dentro dele como pessoa e dentro de toda a sua casta. Agora, ao organizar a minha visita, ele continuava a lutar. Ele podia relaxar por um segundo, e então ele começava a ficar tenso novamente.

Todos nós temos essa tendência de luta em nossos corpos e em nossas mentes. Acreditamos que a felicidade é possível apenas no futuro. É por isso que a prática de perceber "eu cheguei" no momento presente, e de habitar feliz no momento presente, é muito importante. A percepção de que nós já chegamos, que não temos que viajar ainda mais, que já estamos em casa, pode nos trazer paz e alegria. Já temos condições mais do que suficientes para sermos felizes. Só precisamos nos permitir chegar totalmente no momento presente, e seremos capazes de tocá-las.

Sentado no ônibus, meu amigo não podia se permitir viver pacificamente no momento presente. Ele estava ainda preocupado em como me deixar confortável apesar de eu já estar confortável. Então, sugeri que ele apenas se permitisse ser, mas não foi fácil para ele, porque a energia de hábito de ansiedade estava ali há muito tempo.

Mesmo depois que nosso ônibus chegou na estação e nós já tínhamos saído, meu amigo ainda não conseguia se divertir. Minha visita toda na Índia correu muito bem, e a maneira que ele organizou tudo tinha sido excelente, porém eu ainda receio que, até hoje, ele ainda seja incapaz de relaxar. Estamos sob a influência das gerações anteriores de nossos antepassados e da nossa sociedade. A prática de parar e olhar profundamente é para evitar que nossa energia de hábito seja sustentada pelas sementes negativas que tenham sido transmitidas para nós. Quando somos capazes de parar, fazemos isso por todos os nossos antepassados, e acabamos com o círculo vicioso que é chamado de samsara.

Nós temos que viver de tal forma que liberte os nossos antepassados e as gerações futuras dentro de nós. Alegria, paz, harmonia e liberdade não são questões individuais. Se não libertamos nossos antepassados, estaremos na escravidão por toda a nossa vida e transmitiremos nossas energias de hábito negativas para nossos filhos e netos. Agora é a hora de nos libertar e libertá-los. É a mesma coisa. Este é o ensinamento de Interser. Como nossos ancestrais em nós ainda estão sofrendo, nós mesmos não podemos ficar em paz. Se dermos um passo conscientemente, com felicidade, tocando a terra em liberdade, faremos isso por todas as nossas gerações anteriores e futuras. Todos eles chegam com a gente no mesmo momento, e todos nós encontraremos paz e felicidade ao mesmo tempo.

Eu tenho um amigo vietnamita, um artista, que está longe de sua terra natal há quase quarenta anos. Ele não tem visto sua mãe todo esse tempo. Quando ele sente falta da mãe, tudo o que ele faz é olhar para suas mãos e se sente melhor. Sua mãe, uma mulher tradicional vietnamita, sabe ler apenas alguns caracteres e nunca estudou filosofia ocidental ou ciência. Ainda assim, antes dele deixar o Vietnã, ela segurou sua mão e lhe disse, "sempre que você sentir minha falta, olhe para sua mão, meu filho. Você me verá imediatamente." Há quase quarenta anos, ele faz exatamente isso e já olhou para a sua mão muitas vezes.

A presença de sua mãe não é apenas genética. O espírito dela, suas esperanças e sua vida também estão presentes nele. Olhando para a sua mão, ele pode penetrar profundamente na realidade do tempo sem início e sem fim. Ele pode ver que milhares de gerações, antes dele e milhares de gerações depois dele estão todas nele. Desde tempos imemoriais até o presente momento, sua vida nunca foi interrompida, e a mão dele ainda está lá, uma realidade sem início e sem fim.

Às vezes quando eu pratico caligrafia, convido a minha mãe, meu pai ou meu professor para desenhar o círculo comigo. Ao desenhar o círculo com eles, eu toco o insight do não eu, e isso se torna uma profunda prática de meditação. A meditação, o trabalho, a alegria e vida tornam-se um.

Podemos encontrar a presença de nosso pai, da nossa mãe e de nossos antepassados em cada célula do nosso corpo. Não só a meditação, mas a ciência também nos diz isso. Nossos pais não estão apenas fora de nós. Sempre que formos capazes de respirar conscientemente e acalmar o nosso corpo e mente, nossos pais nos estarão respirando conscientemente e acalmando-se ao mesmo tempo. Se formos capazes de gerar um sentimento de alegria e compaixão, os nossos pais em nós também experimentarão essa alegria e compaixão. Nossos pais podem nunca ter tido sorte suficiente de praticar a atenção plena e transformar o seu sofrimento. Ao olhar para eles com os olhos da compaixão, poderemos compartilhar com eles nossa própria alegria, paz e perdão.

(Trecho do livro de Thich Nhat Hanh – At Home on the World)
(Tradução – Leonardo Dobbin)

segunda-feira, 8 de maio de 2017

Meus Verdadeiros Nomes


Quando estive nos Estados Unidos em 1966, dei uma palestra em uma igreja em Minneapolis, e depois fiquei muito cansado. Fui caminhando lentamente em meditação para o meu quarto porque assim poderia desfrutar do ar frio e perfumado da noite e ser nutrido e curado por ele.

Enquanto eu caminhava conscientemente, dando cada passo em liberdade, um carro veio por trás e deu uma parada brusca muito perto de mim. O motorista abriu a porta, olhou para mim e gritou: "Isto é a América; não é a China!" e foi embora. Talvez ele tenha pensado, "Quem é este chinês que se atreve a andar em liberdade na América", e ele não podia suportar isso. Talvez ele tenha pensado, "Isto é a América; somente as pessoas brancas podem viver aqui. Chinês, como você ousa vir aqui, como se atreve andar com essa liberdade? Não tens o direito de andar assim. Esta é a América; Isto não é China."

Eu não fiquei com raiva — que foi a coisa boa sobre isso — na verdade, eu achei aquilo um pouco engraçado. Pensei: "se ele parasse só por um momento, eu iria lhe dizer, ' Concordo com você 100%, isto é a América; Esta não é a China. Por que você gritou comigo?' ”

Sabemos que a semente da discriminação reside em todos nós. Eu tenho clamado por todos os tipos de pessoas de todas as diferentes tonalidades de cor. Os oprimidos e os opressores estão dentro de cada um de nós, e nossa prática é alcançar a sabedoria da não discriminação. Quando as pessoas nos chamam de afro-americanos, devemos responder, "Sim". Quando nos chamam de africanos, podemos responder, "Sim", e quando nos chamam de americanos, também respondemos, "Sim".

Quando as pessoas nos chamam dos nomes daqueles que são discriminados, respondemos, "Sim". E quando eles nos chamam dos nomes daqueles que estão discriminando, nós também respondemos, "Sim". Todos eles somos nós. Dentro de cada um de nós estão ambos a vítima de discriminação e o que discrimina.

Nos primeiros anos de meu exílio na França, me falaram sobre uma menina de onze anos que fugia do Vietnã com sua família e outras “boat people”. Ela foi estuprada por um pirata, bem ali no seu barco. Seu pai tentou intervir, mas o pirata o jogou no mar. Depois que a menina foi estuprada, ela saltou para o mar, cometendo suicídio. Recebemos a notícia desta tragédia, enquanto estávamos trabalhando no nosso escritório da delegação de paz budista em Paris. Eu fiquei tão nervoso que não conseguia dormir. Senti raiva, culpa e desespero.

Naquela noite na meditação sentada, visualizei-me nascendo como um menino em uma família de pescadores muito pobre na costa da Tailândia. Meu pai era um pescador. Ele não sabia ler, nunca tinha ido para a escola ou para o templo. Ele nunca tinha recebido qualquer ensinamento budista ou qualquer tipo de educação. Os políticos, educadores e assistentes sociais na Tailândia nunca haviam ajudado meu pai. Minha mãe também não sabia ler ou escrever, e ela não sabia como criar seus filhos. A família do meu pai tinha sido de pescadores pobres por muitas gerações — meu avô e meu bisavô tinham sido pescadores também. Quando fiz treze anos, eu também me tornei um pescador. Eu nunca fui à escola, nunca me senti amado, ou compreendido, e vivi na pobreza crônica persistente que passava de uma geração para outra.

Então um dia um outro jovem pescador me diz: "Vamos sair para o oceano. Há “boat people” que passam perto daqui e muitas vezes eles carregam ouro e joias, às vezes até mesmo dinheiro. Só uma viagem e nós poderemos sair desta pobreza." Aceito o convite, pensando, "nós só precisamos tirar um pouco de suas joias. Não fará nenhum mal, e então poderemos nos livrar desta pobreza." Me tornei um pirata. A primeira vez que eu saio, não estou consciente que me tornei um pirata. Uma vez no oceano, comecei a ver os outros piratas estuprarem mulheres jovens nos barcos. Eu nunca tinha tocado em uma mulher. Eu nunca tinha sequer pensado em dar as mãos ou sair com uma mulher. Mas então no barco há uma jovem muito bonita e nenhum policial lá para me impedir. Eu tinha visto outras pessoas fazerem, e me perguntei: "por que não tentar também? Esta é minha chance de experimentar o corpo de uma jovem mulher." E assim eu fiz.

Se você estivesse lá no barco e tivesse uma arma, poderia ter atirado em mim. Mas atirar em mim não me ajudaria. Ninguém nunca tinha me ensinado como amar, como compreender, como ver o sofrimento dos outros. Meu pai e minha mãe não me ensinaram também. Eu não sabia o que era saudável e o que não era saudável, eu não entendia causa e efeito. Estava vivendo no escuro. Se você tivesse uma arma, poderia atirar em mim, e eu morreria. Mas você não seria absolutamente capaz de me ajudar.

Enquanto eu continuava sentado, vi centenas de bebês nascendo naquela noite ao longo da costa da Tailândia, em circunstâncias semelhantes, muitos deles meninos. Se os políticos e ministros pudessem olhar profundamente, veriam que, dentro de vinte anos, aqueles bebês se tornariam piratas. Quando eu fui capaz de ver isso, entendi as ações do pirata. Quando me coloquei na situação de ter nascido em uma família sem educação e pobre, vi que não seria capaz de evitar tornar-me um pirata. Quando vi aquilo, meu ódio desapareceu, e eu pude sentir compaixão por aquele pirata.

Quando vi aqueles bebês nascendo e crescendo sem nenhuma ajuda, sabia que eu tinha que fazer algo para que eles não se tornassem piratas. A energia de um bodhisattva, um ser compassivo com amor ilimitado, cresceu dentro de mim. Eu não sofria mais. Eu poderia abraçar não só o sofrimento da criança de onze anos que foi estuprada, mas também o sofrimento do pirata.

Quando você se dirigir a mim como "Venerável Nhat Hanh,"... eu respondo, "Sim". Quando você chamar o nome da criança que foi estuprada, também respondo, "Sim". Se você chamar o nome do pirata, eu também vou dizer "Sim". Dependendo de onde eu nasci e sob quais circunstâncias eu cresci, eu poderia ter sido a garota... ou talvez tivesse sido o pirata.

Eu sou a criança da Uganda ou do Congo, só pele e ossos, minhas duas pernas tão finas como varas de bambu. E também sou o comerciante de armas, vendendo armas mortais para o Congo. Aquelas pobres crianças no Congo não precisam de bombas, precisam de comida para comer. Mas nos Estados Unidos, vivemos através da produção de bombas e armas. E se queremos que os outros comprem armas e bombas, então temos que criar guerras. Se você chamar o nome da criança no Congo, respondo, "Sim". Se você chamar o nome de quem produz as bombas e armas, eu também respondo, "Sim". Quando eu sou capaz de ver que eu sou todas essas pessoas, meu ódio desaparece, e estou determinado a viver de tal forma que possa ajudar as vítimas e também ajudar aqueles que criam e perpetram guerras e destruição.

(Trecho do livro de Thich Nhat Hanh – At Home on the World)
(Tradução – Leonardo Dobbin)