segunda-feira, 26 de junho de 2017

A Grande Compaixão


Saigon, 22 de maio de 1966.

Não é provável que esta coleção de escritos no meu diário, que eu estou chamando de "Perfumadas Folhas de Palmeira", vá passar pelos censores. Se ela não puder ser publicada, espero que meus amigos circulem entre eles os textos. Hoje à noite o céu está estranhamente brilhante. Vou deixar o Vietnã amanhã, mas eu já sinto falta de casa. Eu sei que onde quer que eu vá haverá estrelas, nuvens e lua, mas estou determinado a voltar para casa. Meu coração está um pouco inquieto, mas no geral eu estou em paz. Quero compartilhar esses pensamentos, embora incompletos, enquanto eu estou sentindo essa calma.

Para alcançar o entendimento, você tem que descartar tudo o que você aprendeu. Isso é o que o Sutra do Diamante quer dizer onde está escrito: "A só é A, quando não é A." Eu sei que isso soa estranho, mas quanto mais eu vivo, mais eu vejo que é verdade. Apegar-se ao que você aprendeu é pior do que não aprender de início. Tudo que me foi ensinado no Instituto Budista foi virado de cabeça para baixo. É por isso que eu posso entender o que aprendi lá.

Momentos atrás, enquanto o nosso DC-4 se aproximava de Saigon, vi as formações de nuvens mais requintadas. O sol já havia se posto, mas havia luz suficiente no céu para ver as nuvens suaves e puras espalhadas por baixo do avião como um mar, onda após onda, mais branco que o branco da mais pura neve. Tornei-me um com as nuvens, tão suave e puro como uma nuvem. Por que os seres humanos são tão atraídos por nuvens e tapetes de pura neve, macios e brancos? Talvez seja porque gostemos de coisas que são puras, belas e saudáveis, coisas que reflitam a maneira que queremos nos ver. Pureza, beleza e salubridade não têm uma existência objetiva própria. São apenas nossos pontos de vista.

Nós reagimos a uma folha de papel branco, um riacho de água límpida, um doce refrão da música ou um homem ou mulher atraente da mesma maneira. Uma mulher bonita é muitas vezes comparada à neve, lua ou flores. Quando ela é compassiva, nós a chamamos de uma deusa ou um Buda, porque deusas e Budas são conhecidos por serem belos e gentis. Queremos ser associados com o que nós consideramos belo, puro e saudável e queremos que essas coisas permaneçam da mesma forma.

Mas o que dizer da corrupção, feiúra, crueldade e decadência? Lutamos para permanecer no lado puro e bonito e queremos manter o outro lado longe. O Budismo Mahayana descreve o nirvana como permanência, felicidade, liberdade e pureza. Eu acho que a escolha dessas quatro virtudes para descrever o nirvana demonstra como nós, seres humanos, somos ligados a uma determinada idéia de felicidade.

O Sutra do Coração foi composto para nos ajudar a quebrar tais pontos de vista. Avalokita, depois de olhar profundamente para as coisas, sorri e anuncia: "Todos os fenômenos são marcados com o vazio, pois eles não são produzidos nem destruídos, nem profanos nem imaculados, nem crescem nem diminuem, Desta maneira, na vacuidade não há nem forma, nem sentimentos, nem percepções, nem formações mentais, nem consciência; nem olho, ou ouvido, ou nariz, ou língua, ou corpo, ou mente; nem forma, nem som, nem cheiro, nem sabor, nem tato, nem objeto da mente".

Enquanto eu me sentava no avião, vi tudo isso a partir de uma perspectiva diferente. Sorri enquanto pensava sobre as diferentes formas da água. Ela pode ser um líquido claro, gelo, vapor, nuvens ou neve. Todas essas formas são H2O, mas a própria H2O está vazia, sem permanência. Ele pode ser dividida em hidrogênio e oxigênio, mas eles também são vazios. Examine o oxigênio e você vai ver que ele é composto de elementos que não são oxigênio, que também são vazios e feitos de outros elementos. Eles são todos interdependentes e interligados. Você não pode separar o oxigênio do não-oxigênio, mas também não se pode dizer que o oxigênio e o não-oxigênio são a mesma coisa.

Neste mundo de constantes mudanças, queremos nos agarrar a algumas verdades permanentes. Suponha que eu me pergunte qual é a coisa mais linda e importante do mundo, e suponha que eu responda "água". A água pode ser clara como um espelho. Ela pode cobrir um pico de montanha ou ficar girando em ondas brancas à beira-mar. Sem água, a Terra iria secar e morrer. Por isso, eu digo que a água é a coisa mais linda e importante.

Mas se eu parar e considerar o fogo, percebo que a vida também não seria possível sem a luz e o calor do sol. De fato, sem luz, como alguém poderia distinguir o que é belo e o que não é? Sem luz, quem poderia ver a água límpida como um espelho, a neve que cobre o pico da montanha ou as ondas girando à beira-mar? Posso entender isso também, mas se eu for obcecado com a água, vou fechar os olhos e me agarrar apenas à água. Isso seria ignorância, não é?

Alguns argumentam que a contínua transformação dos fenômenos apóia a crença na reencarnação. Você pode ter descartado essa crença quando ainda era jovem, entendendo que essa idéia pressupõe a existência de uma alma ou eu permanente e separado que pode transmigrar. Na realidade, não há um eu separado, não há oxigênio ou hidrogênio com uma identidade própria e permanente. No entanto, o mundo do vazio revela-se como eternamente milagroso. Há uma espécie de reencarnação, embora se olharmos profundamente, veremos que nada é permanente ou impermanente, puro ou corrupto, gentil ou cruel, bonito ou feio. Por favor, não repita essas coisas para as crianças, porque os olhos delas não estão abertos o suficiente ainda. Elas podem concluir que não há nenhuma razão para se viver de acordo com a ética se não há nem bom nem mau.

Dada uma escolha, você não iria escolher pureza sobre a corrupção, a felicidade sobre o sofrimento, bondade sobre a crueldade? Isso parece óbvio. Mas, para escolher pureza, felicidade e bondade, a maioria das pessoas assume que nós temos que destruir a corrupção, o sofrimento e a crueldade. É possível destruí-los? Se o ensinamento do Buda: "Isto é assim, então aquilo é assim," é verdadeiro, então, dentro da pureza há corrupção. Se você destruir a corrupção, destrói simultaneamente a pureza. "Este não é, porque aquele não é." Isso quer dizer que devemos nutrir corrupção, crueldade e sofrimento? Claro que não!

Todos os pares de opostos são criados por nossas próprias mentes a partir da nossa consciência armazenadora. Fazemos da felicidade e sofrimento uma enorme luta. Se pudéssemos penetrar a verdadeira face da realidade como Avalokita fez, todas as nossas tristezas e desgraças desapareceriam como fumaça e de fato nós iríamos "superar o mal-estar."

Olhe para o sorriso do Buda. É completamente pacífico e compassivo. Isso quer dizer que o Buda não leva o seu e o meu sofrimento a sério? O Buda enviou Bodhisattva Sadaparibhuta para nos informar que o Buda não olha para ninguém, porque cada ser se tornará um Buda.

Talvez a minha reação ao sorriso do Buda seja causada por um sentimento infantil de inferioridade - que certamente não surge de um sentimento de auto-respeito. É fácil nos sentirmos insignificantes, desajeitados e estúpidos diante do Buda, que vê o nirvana e samsara como meros lampejos de vazio. No entanto, estou certo de que o Buda sente compaixão por nós, não porque sofremos, mas porque não vemos o caminho, o que é a causa do nosso sofrimento.

Desde que eu era jovem, tento entender a natureza da compaixão. Mas a pouca compaixão que aprendi não foi proveniente de investigação intelectual, mas da minha experiência real do sofrimento. Eu não tenho orgulho do meu sofrimento mais do que uma pessoa que confunde uma corda com uma cobra é orgulhosa de seu medo. Meu sofrimento foi uma mera corda, uma mera gota de vazio tão insignificante que deve se dissolver como a névoa ao amanhecer. Mas não foi dissolvido e eu sou quase incapaz de suportá-lo. Será que o Buda não vê o meu sofrimento? Como ele pode sorrir?

O amor busca uma manifestação - o amor romântico, o amor maternal, amor patriótico, amor à humanidade, o amor por todos os seres. Quando você ama alguém, se sente ansioso para que ele ou ela estejam seguros e por perto. Você não pode simplesmente tirar seus entes queridos de seus pensamentos. Quando o Buda testemunha o sofrimento sem fim dos seres vivos, ele deve sentir uma profunda preocupação. Como ele pode apenas sentar lá e sorrir?

Mas pense nisso. Somos nós que o esculpimos sentado e sorrindo, e fazemos isso por uma razão. Quando você fica acordado a noite toda se preocupando com o seu ente querido, você está tão ligado ao mundo fenomenal que pode não ser capaz de ver a verdadeira face da realidade. Um médico que entende com precisão a condição de seu paciente não se senta e fica obcecado em mais de mil explicações ou ansiedades diferentes como a família do paciente. O médico sabe que o paciente vai se recuperar, e assim ele pode sorrir, mesmo quando o paciente ainda está doente. Seu sorriso não é cruel, é simplesmente o sorriso de alguém que capta a situação e não se envolve em preocupação desnecessária. Como posso colocar em palavras a verdadeira natureza da Grande Compaixão?

Quando começamos a ver que a lama preta e branca de neve não é nem feia nem bonita, quando podemos vê-la sem discriminação ou dualidade, então começamos a compreender a Grande Compaixão. Aos olhos da Grande Compaixão, não há nem esquerda nem direita, nem amigo nem inimigo, nem perto nem longe. Não pense que a Grande Compaixão é sem vida. A energia da Grande Compaixão é radiante e maravilhosa. Aos olhos da Grande Compaixão, não há separação entre sujeito e objeto, não há eu separado. Nada pode perturbar a Grande Compaixão.

Se uma pessoa cruel e violenta estripá-lo, você pode sorrir e olhar para ela com amor. É a sua educação, a sua situação e a sua ignorância que o leva a agir de forma tão estúpida. Olhe para ele - aquele que causa a sua destruição e joga montes de injustiça em cima de você - com olhos de amor e compaixão. Deixe a compaixão derramar de seus olhos e não deixe que nem uma onda de culpa ou a raiva suba em seu coração. Ele comete crimes sem sentido contra você e te faz sofrer, porque ele não pode ver o caminho para a paz, a alegria ou compreensão.

Se algum dia você receber a notícia de que eu morri por causa de atos cruéis de alguém, saiba que eu morri com o meu coração em paz. Saiba que em meus últimos momentos eu não sucumbi à raiva. Nunca devemos odiar um outro ser. Se você puder dar origem a essa consciência, será capaz de sorrir. Lembrando-se de mim, você vai continuar em seu caminho. Você terá um refúgio que ninguém poderá te tirar. Ninguém será capaz de perturbar a sua fé, porque ela não dependerá de qualquer coisa no mundo fenomenal. Fé e amor são um e podem apenas surgir quando você penetrar profundamente a natureza vazia do mundo fenomenal, quando puder ver que você está em tudo e tudo está em você.

Há muito tempo atrás eu li uma história sobre um monge que não sentia raiva contra o rei cruel que tinha cortado a sua orelha e perfurado sua pele com uma faca. Quando li isso, pensei que o monge deveria ser algum tipo de deus. Isso era porque eu ainda não conhecia a natureza da Grande Compaixão. O monge não tinha raiva dentro de si. Tudo o que ele tinha era um coração de amor. Não há nada que nos impeça de ser como aquele monge. O amor ensina que todos nós podemos viver como o Buda. Amanhã de manhã eu tenho que partir. Eu não vou ter tempo hoje de ler o que eu escrevi, mas vou ver brevemente Hung amanhã e vou dar-lhe o manuscrito antes de eu deixar a nossa bendita terra natal.

(Do livro de Thich Nhat Hanh - "Fragrant Palm Leaves” – Diário de Thich Nhat Hanh - Tradução Leonardo Dobbin)

terça-feira, 20 de junho de 2017

A Vida de Thich Nhat Hanh


Thich Nhat Hanh nasceu Nguyen Xuan Bao em 1926 no Vietnã Central durante a ocupação colonial francesa. Em sua juventude, ele foi profundamente afetado por imagens do Buda irradiando a paz em contraste gritante com o conflito e sofrimento que testemunhava ao seu redor. Aos 16 anos pediu permissão aos seus pais para se tornar um monge e entrou para o Monastério Tu Hieu em Hue, sendo ordenando monge noviço na escola Linji (japonês: Rinzai) da tradição Zen vietnamita.

O treinamento fundamental de um noviço no Vietnã é essencialmente a prática de estar presente em cada momento e fazer o que se está fazendo com plena consciência. Nhat Hanh viveu entre as florestas e jardins de Tu Hieu com sua comunidade de irmãos monges, estudando e praticando sob a orientação do abade, um sábio e experiente professor que amava e entendia seus alunos.

Depois de três anos, Nhat Hanh deixou Tu Hieu para frequentar o Instituto budista em Hue. Ele então foi para Saigon, o centro do movimento de renovação do budismo que buscava torná-lo relevante para a vida cotidiana das pessoas e para a realidade da sociedade moderna. Ele ajudou a fundar a Universidade Van Hanh, um instituto de estudos budistas mais elevados e se tornou o editor do jornal Budismo Vietnamita, que deu aos pensadores budistas criativos uma voz e encorajava a unificação de todas as escolas do budismo no Vietnã.

O diário foi encerrado depois de dois anos pela liderança budista conservadora. Nhat Hanh continuou a ensinar e escrever e seus escritos continuaram a ter oposição da liderança budista e do regime cada vez mais repressivo e ditatorial.

Em 1962 Nhat Hanh foi para os EUA estudar religião comparada na Universidade de Princeton. Em 1963 teve oferta de um cargo de professor na Universidade de Columbia. Após a queda do regime Diem em 1963, a liderança budista estava mais aberta à reforma, por isso Nhat Hanh abreviou a sua estadia nos EUA e regressou ao Vietnã em 1964 para ver a realização de um sonho, a fundação da Igreja Budista Unificada, que reuniu todas as várias congregações budistas do Vietnã.

A guerra no Vietnã continuou a escalar, causando mais e mais caos e devastação nas cidades e no campo. Aldeias inteiras foram destruídas, resultando em muitos refugiados. Em 1964, Nhat Hanh fundou a Escola de Jovens para o Serviço Social (SYSS), treinando jovens trabalhadores sociais, tanto monásticas como leigos, para entrar em aldeias, viver entre as pessoas, ajudá-las a reconstruir e reorganizar suas aldeias e ajudar os refugiados a se deslocar. Como Nhat Hanh e os trabalhadores SYSS se recusavam a escolher qualquer lado que não o lado de ajudar as pessoas, foram vistos com suspeita tanto pelas forças comunistas como pelas pró-americanas.

Mas o seu amor, dedicação e forma ética de trabalhar ganhou o coração de muitas pessoas. Muitos estudantes, amigos e colegas de Nhat Hanh foram mortos ou feridos durante este tempo. À medida que a guerra continuava a intensificar-se, Nhat Hanh decidiu voltar à fonte da guerra, viajando para Washington para pedir a paz, iniciando uma turnê norte-americana para informar às pessoas nos Estados Unidos sobre os efeitos devastadores da guerra contra o povo do Vietnã.

Foi nessa época que Nhat Hanh conheceu e provocou uma profunda impressão no monge trapista Thomas Merton, no Secretário de Defesa Robert McNamara e no Dr. Martin Luther King Jr., que mais tarde o indicou para o prêmio Nobel da Paz. Quando o governo do Vietnã do Sul ouviu falar nessas atividades, se recusou a deixar que Nhat Hanh voltasse para o Vietnã e ele se tornou um exilado no ocidente, posteriormente se estabelecendo na França.

Este foi um momento solitário e difícil para Nhat Hanh. Não havia muitos vietnamitas fora do Vietnã na época. Todos que ele conhecia, seu trabalho e seus alunos estavam no Vietnã. Mas gradualmente ele veio a conhecer as pessoas, árvores, pássaros, os frutos e flores do ocidente.

Ele fez amizade com adultos e crianças em cada país onde se encontrava e começou a se sentir em casa em todos os lugares. Onde quer que fosse, fazia amizade com as pessoas, quer fossem sacerdotes católicos, ministros protestantes, rabinos, imãs, ou trabalhadores humanitários ou comerciais. Nhat Hanh continuou a fazer viagens para palestras na América do Norte, Europa e Ásia, partilhando os seus métodos de prática e dando voz ao desejo do povo vietnamita pela paz. Em 1969 ele se tornou o representante da delegação de paz budista nos acordos de paz de Paris e foi capaz de expressar o desejo do povo vietnamita por um fim à guerra.

O fim da guerra chegou finalmente em 1975, mas o regime comunista, o novo governo do Vietnã, também não estava disposto a permitir que Nhat Hanh voltasse para casa. A Igreja Budista Unificada foi banida e muitos de seus principais monges foram aprisionados. Em 1976, enquanto estava em uma conferência em Singapura, ele ouviu falar da situação dos “Boat People”, refugiados vietnamitas que tinham deixado seu país de barco. Muitos deles morriam no mar. Ao navegar em barcos com pouca ou nenhuma comida e água, eles estavam à mercê de tempestades e dos piratas do mar. Se finalmente chegassem à costa, eram frequentemente empurrados de volta para o mar, porque muitos países não aceitavam “Boat People” ou tinham quotas muito baixas para aceitar os refugiados.

Nhat Hanh e seus colegas alugaram barcos e juntamente com amigos da Europa, trouxeram comida e água para os “Boat People”, tentando fazer acordos com todos, de pescadores e policiais a funcionários do governo, a fim de encontrar um lugar para o “Boat People” em terra. Ao mesmo tempo, fazia esforços para informar ao mundo a situação dos refugiados em uma tentativa de influenciar os governos ao redor do mundo para aumentar suas quotas e permitir que os “Boat People” pudessem reassentar.

Após o seu regresso de Singapura, Nhat Nham continuou a viver na França, mas também liderava retiros e a partilhava os seus ensinamentos em muitos países. Ele continuou a apoiar os trabalhos sociais no Vietnã e trabalhar para a libertação de monges presos. Ele fundou um monastério, a Comunidade da Batata Doce (“Sweet Potato Community”), fora de Paris, onde caminhava na floresta, plantava legumes, escrevia e praticava.

Quando o local se tornou pequeno para o número de estudantes que queriam ir e praticar com ele, Nhat Hanh fundou Plum Village em 1982, um centro de prática e um monastério no sudoeste da França, onde ainda vive. Existem atualmente nove centros de prática e monastérios em todo o mundo, nos EUA, Europa, Ásia e Austrália, onde seus alunos monásticos, hoje mais de 600, compartilham práticas de plena atenção no que agora é conhecido como a tradição de Plum Village. Há também mais de 1.000 sanghas leigas, comunidades de pessoas que praticam juntas, em todo o mundo.

Em 2004, o governo vietnamita convidou Nhat Hanh para visitar o Vietnã depois de quase 40 anos de exílio. Durante sua visita de três meses em 2005, ele liderou retiros para monges, monjas e leigos — principalmente jovens de toda parte do mundo. Ele teve conversas profundas com os líderes da comunidade budista, bem como com os líderes do governo e do partido comunista. Ele retornou novamente em 2007, desta vez para liderar cerimônias para louvar aqueles que tinham morrido na guerra e para trazer paz, cura e reconciliação aos sobreviventes, de forma que seu sofrimento não fosse passado para as gerações mais jovens. Ele visitou o Vietnã pela última vez em 2008.

Nhat Hanh continuou a viajar incansavelmente por todo o mundo para ensinar e liderar retiros até 2014, quando sofreu um derrame grave. Em uma extraordinária vida de ensino abrangendo 65 anos, Nhat Hanh, ensinou centenas de milhares de pessoas, em todos os continentes e de todas as camadas sociais. Ele conduziu retiros para famílias, trabalhadores de saúde, pessoas de negócios, veteranos, jovens, psicoterapeutas, professores, artistas, ambientalistas, membros do Congresso americano, e parlamentares. Muitos destes estudantes e amigos referem-se a Nhat Hanh com carinho, como "Thay", que significa "professor" em vietnamita. Em seu aniversário de 80 anos, quando perguntado se ele planejava se aposentar, Thich Nhat Hanh disse, "O ensino não é feito por falar somente. É feito por como você vive sua vida. A minha vida é o meu ensinamento. Minha vida é a minha mensagem. “

(Trecho do livro de Thich Nhat Hanh – At Home on the World)
(Tradução – Leonardo Dobbin)

terça-feira, 6 de junho de 2017

Tempo é Paz


Em 2013 eu conduzi um dia de prática de atenção plena para os funcionários do Google na sua sede na Califórnia que eles chamam de "Googleplex". Havia cerca de trinta monges e monjas em nossa delegação e mais de 700 funcionários do Google que tinham se inscrito para o dia. Começando no início da manhã, conduzimos sessões de meditação sentada, meditação andando, de como comer em plena consciência e de relaxamento total, exatamente como um dia de plena consciência em Plum Village.

Os funcionários do Google eram jovens, inteligentes e criativos, e pudemos ver que eles se entregaram plenamente na prática. A energia de concentração e de presença era muito forte e eles praticavam muito bem. Acho que a razão de terem praticado tão sinceramente é porque sofrem. Eles estavam sedentos por uma espécie de prática espiritual que poderia ajudá-los a sofrer menos. Sabíamos que eles estavam trabalhando muito duro. Todas as empresas estão perseguindo o sucesso, e há um forte desejo de ser o "número um".

É por isso que muitos jovens investem todo o seu tempo e energia no seu trabalho, na sua empresa e, por isso, não têm tempo para cuidar de seu corpo, de seus sentimentos, de suas emoções e de seus relacionamentos. Mesmo se têm tempo, podem não saber o que fazer com esse tempo, a fim de realmente cuidar de seu corpo e mente.

Eu compartilhei com todos como praticar a meditação andando, e começamos o dia andando lentamente, conscientemente, em silêncio em torno do campus. Depois de quinze minutos sentamo-nos silenciosamente, sem dizer uma palavra. Eu segurei minha xícara de chá em minhas duas mãos e estava desfrutando do meu chá quando outras pessoas começaram a chegar para sentarmos todos juntos, e seguirmos nossa respiração.

Nós nos sentamos lá pacificamente por muito tempo, apreciando o silêncio e a calma da manhã. Enquanto isso, havia muitos funcionários que estavam chegando mais tarde para o trabalho e cada vez que um desses dobrava a esquina, paravam de repente de surpresa. Eles tinham visto algo acontecendo: muitas pessoas sentadas e sem fazer nada, apenas respirando. Estava tão silencioso! Era algo totalmente novo e inesperado. O tempo não era mais dinheiro. Tempo é paz; tempo é vida.

Muitos de nós estamos tão ocupados e trabalhamos tanto que não temos tempo para viver. Nosso trabalho pode tomar toda a nossa vida. Nós podemos até estar viciados em nosso trabalho, não porque precisamos do dinheiro, mas porque não sabemos como lidar com o sofrimento e a solidão interior, e assim nos refugiamos em nosso trabalho. Há momentos em que não sabemos o que fazer com a nossa solidão, dor e desespero interior. Tentamos procurar algo para encobrir. Nós verificamos e-mails, pegamos um jornal, ouvimos as notícias, qualquer coisa para esquecer a solidão e o sofrimento interior. Nosso corpo está inquieto, nossa mente está inquieta e não sabemos o que fazer. Tentamos sentar, mas é como se estivéssemos sentados em brasas. Podemos dar um passeio, mas é como se estivéssemos andando em chamas.

Quando a energia do desassossego se manifesta, temos que reconhecer o que está acontecendo e dizer: "Olá minha inquietação. Eu sei que você está aí. Eu vou cuidar bem de você. Então começamos a praticar a respiração consciente e trazer a nossa mente para o nosso corpo. Quando mente e corpo estão juntos e você está estabelecido no aqui e agora, então você pode entrar em contato com a vida e cuidar dos sentimentos interiores.

Então a natureza revela-se em todas as suas maravilhas. Se continuarmos a trabalhar tão duro, não teremos tempo suficiente para viver, não teremos tempo suficiente para tocar as maravilhas da vida e obter a nutrição e a cura que precisamos. Precisamos desta visão para nos libertarmos da nossa inquietude. No país do presente momento, podemos curar-nos e desfrutar a vida profundamente.

Um dia, em uma turnê de ensino na China, nossa delegação de Plum Village teve a oportunidade de escalar a montanha sagrada Wutai Shan. Nosso guia turístico tinha conduzido muitos grupos, talvez até centenas de grupos, para o alto da montanha. Mas, naquele dia, propusemos que, em vez de liderar, ele nos seguisse, porque tínhamos nossa própria maneira de andar.

No sopé da montanha, eu dei instruções de como andar. Respirando, nós daríamos um passo; expirando, daríamos outro passo. Porque há milhares de degraus, e queríamos desfrutar de cada passo. O nosso objetivo não era chegar ao topo da montanha, nosso objetivo era tocar a paz e a alegria com cada passo. Tivemos que andar no lado direito dos degraus enquanto subíamos. Muitos grupos nos ultrapassavam. Eles se viravam e olhavam para nós, tentando ver quem era que estava se movendo no ritmo de um caracol até o alto da montanha. Não foi fácil para o nosso guia. Lembro-me muito bem da caminhada.

Eu respirava e colocava o meu pé esquerdo no degrau, e então, expirava e levava o meu pé direito para cima. Fomos capazes para fazê-lo de tal forma que o prazer e a alegria foram possíveis a cada passo. Nós parávamos a cada dez passos, para dar uma olhada para baixo e apreciar a vista e continuar a respirar. Então nós continuávamos. Quando chegamos ao topo da montanha, não estávamos absolutamente cansados.

Em nossa delegação, havia uma monja que falava chinês, e no ônibus ela ouviu o guia turístico dizendo a seu colega, "Este monge é incrível. Eu liderei centenas de grupos na montanha e sempre chego exausto. Mas hoje, pela primeira vez, cheguei me sentindo refrescado. Ele realmente é incrível. “ Naquela época na China, os guias turísticos tinham que apresentar relatórios sobre as atividades dos visitantes a polícia. Ela continuou dizendo: "Eu terminei o meu relatório sobre o que eles fizeram e o que o monge disse hoje. Mas eu não vou entregar ainda, porque o que ele disse foi tão interessante que eu quero ler minhas anotações de novo. “

Então, se você está andando na estação ferroviária, no aeroporto, ou ao longo da margem de um rio, certifique-se que cada passo que você dá traz alegria, relaxamento e felicidade. Cada passo pode ser a cura, se você estiver andando com outros ou caminhando sozinho. Não devemos perder um único passo. A cada passo, chegamos à nossa vida. Cada passo nos ajuda a parar de correr — correr não apenas no corpo, mas correr na mente. Correr tornou-se um hábito e não somos capazes de desfrutar da nossa vida no aqui e agora. Mesmo em nosso sono, em nossos sonhos, continuamos a correr. Então, realmente chegar e parar com cada passo é um treinamento. Precisamos treinar como parar.

Cada vez que você anda mesmo em uma curta distância, seja de sua casa para o ponto de ônibus, ou do estacionamento para seu local de trabalho, você pode escolher andar de tal maneira que cada passo possa lhe trazer a alegria, a paz, e a felicidade. Você pode querer lembrar que os outros também estão andando assim, e podemos nos sentir conectados uns com os outros. A conexão é muito importante. Não é porque você tem um telefone que você se sentirá conectado. Eu nunca tive um celular e ainda assim eu nunca me senti desligado de ninguém. O que nos conecta é a nossa caminhada consciente, nossos passos conscientes. Então se você quiser se conectar com os outros, tudo que você precisa fazer é praticar meditação andando todas as manhãs após o café da manhã no seu caminho para o trabalho. Andando assim, em paz e liberdade, nos tornaremos conectados imediatamente.

(Trecho do livro de Thich Nhat Hanh – At Home on the World)
(Tradução – Leonardo Dobbin)