terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Os Meios São o Fim

Tempos atrás nós discutimos sobre meios e fins e aprendemos que na prática do Budismo não há nenhuma distinção entre meios e fins, e que os meios deveriam ser considerados como os fins por si mesmos. Esta é uma prática muito intensa e nós deveríamos nos apoiar no Sangha para fazer isto.

Quando você vai para o Salão de Buda ou para o Salão de Dharma sabe que tem algo a fazer lá: meditação sentada, ouvir uma palestra de Dharma ou limpar o salão, mas ir para lá também é uma prática. É solicitado que vocês limpem o salão de meditação com consciência, é esperado que vocês se sentem belamente enquanto escutam a uma palestra de Dharma, é esperado que vocês se concentrem, estejam atentos durante sua meditação sentada, e assim a prática acontece no salão de meditação, mas deveríamos saber que a prática também acontece durante sua caminhada até ali.

Eis por que deveríamos tentar estar praticando durante o tempo em que caminhamos para o salão de meditação, e se você for bem sucedido em todo passo que você der, a meditação sentada, a palestra de Dharma ou a limpeza do salão de meditação serão também um sucesso.  Como temos o hábito de fazer as coisas sem eficiência, tendemos a negligenciar, menosprezar o valor dos meios.

Nesta época no Outono, eu normalmente limpo as folhas do eremitério. Eu faço isto a cada três dias mais ou menos e uso um ancinho. Eu sei que limpar as folhas significa ter um caminho limpo para caminhar, fazer meditação caminhando e assim por diante. Eu corro diariamente pelo menos duas vezes - eu pratico a meditação correndo e limpo as folhas deste modo, conscientemente. Limpar as folhas não significa apenas ter um caminho limpo para correr ou caminhar, mas também significa simplesmente gostar de limpar as folhas. Assim, eu seguro o ancinho de tal modo que possa estar contente e sólido durante o tempo de usar o ancinho. E todo movimento que faço, quero fazê-lo como um ato de iluminação, um ato de alegria, um ato de paz, assim eu não tenho pressa, porque vejo que o ato de limpar é tão maravilhoso quanto ter um caminho limpo. Eu não estaria satisfeito com menos do que isso. Todo golpe que eu dou deve trazer alegria, solidez e liberdade para mim. Devo ser completamente eu mesmo durante o ato de limpar as folhas, e limpar as folhas, deste modo não será mais um meio para se chegar a um fim chamado "ter um caminho limpo".

E você não precisa esperar por muito tempo; se puder dar um golpe assim, um movimento assim, investindo completamente você mesmo no ato de limpar as folhas, então imediatamente será recompensado. Essa é uma obra de arte perfeita que você faz porque cada movimento é uma obra de arte.

O mesmo é verdade quando você pratica a caminhada. Cada passo que dá deveria ser uma obra de arte perfeita, cada passo pode lhe trazer solidez, soberania, pois você não caminha como um escravo, caminha como uma pessoa livre. Caminha como um Buda porque quis ser um discípulo, uma filha ou um filho do Iluminado. Você quer ser a sua continuação, eis por que é capaz de dar um passo com soberania, estando completamente no controle si mesmo. Você está completamente presente no aqui e agora, e desfruta daquele passo. Assim, a meditação andando não é chegar ao salão de meditação. Chegar ao salão de meditação é o que você quer, mas você quer mais do que isso, porque alcança o salão de meditação várias vezes ao dia e às vezes dez ou vinte chegadas como esta não fazem nenhuma diferença. Assim, um passo é o bastante para você chegar. Eu cheguei! Com um passo.

Essa é a nossa prática, mas há uma energia de hábito que lhe impede de fazer assim. Você está acostumado a correr por acreditar que a felicidade não é possível aqui e agora, a felicidade só é possível no futuro. Este tipo de convicção, este tipo de energia de hábito tem estado presente por muito tempo, transmitido por muitas gerações de antepassados e vir à Plum Village é ter uma chance de perceber isto; que você é governado por sua energia de hábito, pela tendência de correr todo o tempo. Você não é capaz de estar no aqui e no agora para tocar as maravilhas da vida que estão disponíveis.

Nós temos muitas chances para praticar. Sabemos que lavamos roupas, lavamos pratos, varremos o solo, cuidamos do jardim, há muitas coisas que vocês podem fazer, mas não façam isto do modo como fazem isto no mundo. Façam como uma prática, uma boa prática, e vocês serão recompensados imediatamente, saberão que estão lidando com sua energia de hábito. A energia de hábito nos diz: "rápido, rápido, vá, rápido, rápido, termine logo! O prazo final está próximo!", mas a prática está lhe dizendo o oposto: "não corra, desfrute, o aqui e o agora é a única coisa que você possui, a felicidade não pode ser possível fora do aqui e do agora", assim você tem duas coisas que contradizem uma à outra. Eis por que a palavra "treinamento" significa superar a energia de hábito lentamente e cultivar outra energia de hábito, que é boa. A energia de hábito que você quer cultivar é a capacidade de estar no aqui e agora, e viver todos os momentos de sua vida diária profundamente. Limpe as folhas, desfrute! Faça o café da manhã! Desfrute completamente deste ato de arte culinária. Lave os pratos! Desfrute completamente o ato de lavá-los.

Diariamente no Mosteiro eu lavo os pratos, diariamente eu fervo o arroz e cuido das flores, das plantas, e minha prática é de desfrutar todos os minutos enquanto estou fazendo estas coisas. Sim, escrever um poema é maravilhoso, escrever um artigo é maravilhoso, dar uma palestra de Dharma é maravilhoso, mas é igualmente maravilhoso cuidar do arbusto, cuidar das plantas, lavar os pratos e assim por diante. Por ser muito enriquecedor, muito recompensador, isto pode trazer muita paz, alegria e solidez para você.

Nós sabemos que a felicidade não seria possível se não tivéssemos nenhuma estabilidade e solidez, porque sem o solo da estabilidade e solidez nenhuma paz real, nenhuma felicidade real poderia ser possível. Eis porque aprender a limpar as folhas, aprender a varrer o solo, aprender a lavar os pratos é muito importante. Não diga que a meditação sentada é mais importante ou que a meditação caminhando é mais importante, ou ouvir uma palestra de Dharma é mais importante. Você escuta a palestra de Dharma para poder limpar as folhas. Você escuta a palestra de Dharma para poder lavar os pratos, corretamente e sabendo desfrutar isto.

Em Plum Village nós temos a vantagem de ter muitos irmãos e irmãs que fazem o mesmo e quando vemos um deles praticando nos sentimos apoiados. Eles não fazem nada demais. Eles apenas praticam, não dizem nada a nós; eles simplesmente fazem. E quando nós os vemos agir, temos uma chance de nos voltar para nós mesmos e fazer isto também.

A comunidade de prática é um grande presente, como o raio de sol. Muitos franceses talvez tenham um dia de sol hoje mas talvez porque muitos não tenham a capacidade de habitar no aqui e agora, o raio de sol não significa muito para eles. Mas se você sabe como inspirar e ficar consciente do raio de sol, terá um tipo diferente de sol. O sol existe para você mas não para esses que estão tão ocupados, e que perdem tanto tempo nas suas preocupações, no passado, no futuro. Pressupomos que a lua exista para todos mas há alguns de nós que jamais vêem a lua, nunca obtêm algo da lua, nunca desfrutam a lua.

Nós vivemos juntos em Plum Village durante uma semana, durante um mês ou três meses, durante um ano, e praticamos juntos. Existem alguns de nós que estão bastante contentes, contudo existem alguns de nós que não estão tão contentes; o mesmo ambiente, a mesmo Sangha, a mesma prática e ainda assim recebemos diferentemente o volume de felicidade, paz, estabilidade e alegria. E o que faz esta diferença? A diferença é nossa capacidade de pôr em prática o ensinamento que nos é dado. O Buda foi bastante claro nisto, a vida só está disponível no aqui e agora, com todas suas maravilhas. Se você continuar correndo, estas maravilhas da vida não serão suas. Assim, pare! Sorria ao sol, sorria à lua, sorria para seus irmãos ou irmãs e especialmente, sorria para você.

Reconheça que você está presente. Você precisa ser nutrido pela paz, pela alegria. Você tem se privado destes elementos. É você mesmo que se privou da paz, alegria, nutrição e cura. Agora o Dharma existe para lhe ajudar a parar este curso de vida. Olhe-se, sorria para você, seja amável com você, trate-se com a prática. Aprenda a caminhar, aprenda como respirar e sorrir, aprenda a limpar as folhas no jardim do pátio. É muito importante. O Reino de Deus, a Terra do Buda está aqui mesmo para você tocar.

Se você observou os monges e as monjas, se os observou em Plum Village, notará que enquanto eles caminham não falam, quando falam eles param para falar e escutar, e depois de falar e escutar, eles retornam ao seu andar. Por que eles fazem assim? Porque quando eles falam e escutam, querem investir 100% de si no ato de falar e escutar. Eis porque eles não falam enquanto estão caminhando; eles querem investir 100% de si no ato de andar. Eles querem dar passos reais, passos que podem trazer estabilidade para eles, solidez, liberdade porque sabem que a estabilidade, a solidez é o solo da felicidade, assim eles caminham para ao mesmo tempo cultivar e desfrutar disto.

Eis porque, se você vier a Plum Village e seguir este tipo de exemplo, se unirá à prática. Não falar durante o caminhar não é uma regra porque nós não queremos ser vítimas de regras, não queremos absolutamente nenhuma regra, simplesmente queremos praticar. Se não falamos, é porque queremos praticar. Não é que falar seja um crime. Mas se você falar durante a prática, estará destruindo-a.

Nos ensinamentos do Buda, estar preso a regras é algo que vocês não são encorajados a fazer. Deveríamos olhar para isto como uma prática e não como regras, como os dez preceitos do noviciado que nós temos aqui e que vocês ouviram ontem. Eles não são regras para o noviço. Elas não existem para restringir a liberdade e a felicidade dele. Elas existem para ajudá-lo a levar uma vida de noviço feliz. Porque estes preceitos devem ser considerados como sendo a prática da consciência plena e se vocês praticarem adequadamente preservarão sua liberdade, sua beleza, sua felicidade. Se vocês pensam que estas dez coisas são regras às quais tem que se submeter, tem que se render, vocês não entenderam, vocês não perceberam o sentido real; eis porque o Buda disse: não seja escravo de regras e rituais. Rituais e regras, nós não precisamos deles; precisamos apenas da prática.

Quando entramos no salão de Dharma todo o mundo se levanta e une as palmas. Isso não é uma regra, é a prática. Quando o professor entra no salão, não é afetado pelo respeito que é mostrado a ele. Ele também pratica caminhando, conscientemente, a prática do andar atento é a sua prática. Andar conscientemente é a sua prática, e o levantar-se, respirar e mostrar respeito são as práticas de vocês. Estas duas coisas são igualmente importantes. E se vocês olharem isto como um ritual, estarão errados. Se olharem isto como uma regra, estarão errados, vocês devem ver isto como sua prática, e a boa prática sempre pode ser reconhecida. Quando o professor caminha, ele deveria ser uma pessoa livre, não é afetado pelo orgulho, complexo de arrogância, esta é sua prática. Sua prática é ser respeitoso com o professor, gostar de se levantar desta forma, inspirar, expirar, sorrir e tocar as muitas gerações de professores na história. Quando você está em contato com seu professor, você está em contato com o professor de seu professor, o professor de sua professora, e você está em contato com muitas gerações de professores, está em contato com o Buda, portanto esta é sua prática.

Eis porque você não reclama que deve se levantar muito cedo e que o professor está caminhando muito lentamente. O professor vive a prática dele e você a sua, todo o mundo está usufruindo disto, e você saberá se sua prática está correta ou não. Você sabe por si se a prática o está fazendo feliz, calmo, sólido. Você sabe que o professor cuida da prática dele e você da sua, e nós não deveríamos olhar isto como uma regra ou um ritual, caso contrário, estaremos presos a formas de rituais e regras, e o Buda é contra rituais, meros rituais e regras.

Quando você segura um copo de água e a bebe conscientemente, o ato é tão bonito e se parece com um ritual, certo? Mas aquele que está segurando o copo e está bebendo não tem qualquer intenção de fazer disto um ritual, uma performance. Ele simplesmente gosta de segurar o copo e beber. Mas porque a plena consciência está lá, muito profunda, muito forte, assim o ato se parece um ritual, mas não é ritual, é a prática.

Quando você se curva assim e sente que sua mente e seu corpo estão unidos em concentração, em plena consciência, e sente que está totalmente presente orientado para algo bom, verdadeiro e bonito, a natureza da iluminação, a natureza do despertar em si, você recebe algo, usufrui disto e não pensa nisto como um ritual. Mas se você faz isto como uma máquina e quando vê pessoas simplesmente as imita sem entender, isso é um ritual, é uma coisa ridícula de fazer, completamente vazia. Este tipo de ritual está completamente vazio e nós não deveríamos fazer assim.

Assim em grandes retiros na América Norte temos sempre pessoas novas, às vezes 50 ou 60% das pessoas que se juntam ao retiro são pessoas novas e elas ficam envergonhadas, elas pensam nisto como um ritual, elas não estão confortáveis. Eis porque eu sempre começo dizendo, se curvar ou não se curvar, esta não é a questão! Curvar-se é um ritual, assim não fique preso pelo ritual. Prática. Se você pensar que fazer isto lhe trará concentração, insight e reverência, isso então irá lhe fazer bem, isso o fará feliz e então você fará isto e estará livre de rituais, livre de regras.

Assim os dez preceitos do noviciado são práticas que se direcionam para ajudar o noviço a ser livre, estar contente, ser sólido e se você considerar os preceitos como algo que limita sua liberdade, está errado, estará preso a rituais, será preso a regras e isso é contra o espírito budista.

(Discussão de Dharma ministrada por Thich Nhat Hanh em Plum Village em 5 de dezembro de 1999)
(Transcrito e editado por Carol Fegan, Chan An Cu, Traduzido ao Português por Claudio Miklos)

sexta-feira, 30 de novembro de 2018

O Faisão

No sutra das cem parábolas, o Buda conta uma história sobre palavras e conceitos. Um homem tolo ficou doente e quando o médico veio vê-lo, ele disse que apenas faisão poderia curar sua doença. Depois que o médico saiu, o paciente repetiu a palavra “faisão” por horas e horas e dia após dia. Meses se passaram, mas ele ainda não tinha ficado curado. Um dia, um amigo veio visitá-lo e ouvindo o homem repetir a palavra “faisão” repetidas vezes, perguntou a ele o porquê.

O homem doente disse ao amigo o que o médico tinha dito e, com pena dele, seu amigo pegou um lápis e desenhou um faisão. Ele mostrou ao homem tolo e lhe disse, “É com isto que um faisão se parece. Você tem que comer isto se quiser curar sua doença. Apenas repetir a palavra ‘faisão’ não é suficiente”.

Assim que o amigo saiu, o homem tolo colocou o desenho do faisão na sua boca, mastigou e engoliu. Por não conseguir um bom resultado com isso, ele contratou um artista que desenhou centenas de outros faisões e ele mastigou e engoliu todos eles. Mas sua doença apenas piorava e finalmente ele entrou em contato com o médico novamente.

Quando o médico viu o que havia acontecido, ficou com muita pena. Ele pegou a mão do homem tolo e foi com ele no mercado. Lá compraram dois faisões, ele acompanhou o homem até a sua casa, o ajudou a preparar a refeição e pediu ao homem para comer na sua frente. Depois disso o homem tolo ficou curado.

Quando ouvimos esta história podemos pensar como o homem era incrivelmente estúpido. Mas quando olhamos com maior profundidade, podemos ver que nós mesmos não somos muito melhores. Como nos falta inteligência e habilidade, estudamos o Dharma e o discutimos por diversão ou simplesmente para nos exibirmos. Não estamos determinados o suficiente para nos libertarmos dos nossos sofrimentos mais profundos. Permanecemos apegados a palavras e idéias, tanto nos nossos estudos quanto na nossa prática. Pode também faltar inteligência e habilidade na maneira como contamos nossas respirações, praticamos a meditação da bondade amorosa ou recitamos mantras. Podemos ficar presos na forma. Não é fácil fazer surgir entendimento desperto.

Os ensinamentos do Buda não nos são oferecidos como visões ou noções para nos agarrarmos, mas como instrumentos de prática. Se ficarmos presos em visões e noções perderemos os verdadeiros ensinamentos. O Sutra “Conhecendo a melhor maneira de segurar uma cobra” (*) é um tipo de sino de plena consciência. Ele nos lembra de sermos cuidadosos, atentos e abertos ao recebermos os ensinamentos do Buda, entendendo-os de forma que possamos fazer uso deles de forma a nos transformar e nos ajudar a ter mais paz, iluminação e liberdade.

Praticamos para ter alegria e felicidade. Praticamos para trazer alívio para uma situação difícil. E quando a plena consciência é poderosa o suficiente, nossa concentração será significativa e poderá nos ajudar a ter insight, entendimento e sabedoria que podem nos libertar da dor, lamento e medo. O propósito último da prática budista é ganhar insight de forma a ter libertação das nossas aflições – nosso medo, raiva, desejo e desespero. Trazer alívio é bom, sofremos menos, mas o problema ainda permanece.

Apenas quando temos insight poderemos verdadeiramente ser libertados. No budismo falamos de emancipação ou salvação através do insight, não por graça, apesar de o insight ser uma espécie de graça. Na aparência parece ser algo contraditório, mas se olharmos em profundidade, veremos que o insight é um tipo de graça – o maior tipo de graça, porque nos ajuda a nos libertar. O Buda disse que se não formos atentos, se não trouxermos todo o nosso coração e mente, todo o nosso ser para o estudo dos sutras e escuta do Dharma, poderemos entendê-los de uma maneira errada. A libertação só é possível quando somos capazes de corrigir nossas impressões.
Ensinamentos, idéias são como um fósforo. O fósforo gera a chama, que é o insight. Um ensinamento, uma noção, não é insight. Mas se praticarmos, podemos produzir o insight vivo, a sabedoria viva. Muitos de nós, incluindo muitos estudiosos budistas ficam presos a palavras e conceitos. Apegamos-nos a palavras, doutrinas, ensinamentos e não somos livres, nos tornamos dogmáticos. Mas uma vez que temos insight, ele queima nossas idéias e noções, assim como a chama queima o fósforo que lhe deu vida.

Nunca deveríamos considerar qualquer ensinamento ou ideologia como a verdade absoluta, são apenas meios de ganhar insight. Não deveríamos matar ou ser mortos por causa de uma idéia. Se nos tornamos dogmáticos, poderemos nos tornar ditadores, querendo que todos aceitem o que dizemos, acreditamos que temos a verdade e quem não concorda conosco é nosso inimigo.

Isto cria mais guerra, conflito e discriminação. A maioria das guerras nasceu do fanatismo a religiões ou ideologias. Este ensinamento do Buda - desapego a visões - é uma prática profunda de paz. Nós estamos prontos para soltar nossa visão de forma a ganhar insight. Este também é o espírito da ciência. Se um cientista fica preso a uma descoberta e pensa que é a verdade absoluta, não tem esperança de achar algo mais profundo, algo superior. Temos que queimar todas as noções para que o insight fique presente. Um verdadeiro praticante nunca é dogmático, nunca se apega a idéias e noções, mas faz uso delas para produzir insights, a visão correta.

O sutra “Conhecendo a melhor maneira de segurar uma cobra” nos lembra que práticas como os Três Selos do Dharma – impermanência, não-eu e nirvana – são úteis, com a condição que você saiba como aprendê-las. Caso contrário, estas noções se tornam muito perigosas e uma vez que você é capturado por elas, é muito difícil sair. Há muitos budistas que estão presos a idéias, palavras e conceitos. Eles perderam o budismo, apesar de se dizerem verdadeiros budistas. Este sutra é um grande sino de plena consciência para todos nós, nos lembrando para termos cuidado, sermos abertos e não sermos dogmáticos e com a mente estreita de forma de termos uma chance de entender e receber o verdadeiro ensinamento do Buda.

Os ensinamentos da impermanência, não-eu e nirvana são comuns a todas as escolas de budismo. Estes ensinamentos são suficientemente profundos. Se praticarmos inteligentemente, poderemos usar estas noções para ganhar o insight que precisamos. Penso que este é o grande presente do Buda. Ser capaz de receber ou não depende de cada um de nós.

Budismo não é uma filosofia ou uma descrição da realidade. Budismo é apenas um conjunto de dispositivos, meios hábeis que nos ajudam a praticar e ganhar o insight que precisamos para nossa libertação e para nos soltar de nossas aflições. Se pudermos ajeitar nossa vida para ficaremos menos ocupados, teremos uma chance maior de aprofundarmos nosso entendimento do Dharma e o colocar em prática.

No budismo dizemos: a libertação é possível através do insight. Impermanência, não-eu e nirvana são como ferramentas nos dadas para limparmos o terreno e plantar a vegetação. A ferramenta não é para ser colocada no altar para adoração, tem que ser usada. O sutra “Conhecendo a melhor maneira de segurar uma cobra” é um lembrete gentil, mas efetivo que os ensinamentos do Buda são ferramentas maravilhosas para nos ajudar a nos trazer mais fundo no coração da realidade.

(Do livro “Thundering Silence”– Thich Nhat Hanh)
(Traduzido por Leonardo Dobbin)

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Nossa Mente Distorcida

Buda contou uma estória interessante sobre um mercador que vivia com o filhinho dele. E a mãe do garotinho já não era viva. Portanto o garotinho era muito precioso para o pai. Ele estimava o garotinho, e sentia que não poderia permanecer vivo sem ele – e nós compreendemos isso. Um dia o pai se ausentou numa viagem de negócios. Os bandidos vieram, incendiaram a vila e seqüestraram as crianças, e seqüestraram o garotinho. Então quando o pai chegou a sua casa, ficou desesperado. Ele procurava seu filhinho, mas não conseguia achá-lo em lugar algum. Naquele estado de preocupação e desespero extremados, ele viu o cadáver de uma criança queimada, e tomou como se fosse seu filhinho. Ele acreditou que o seu filho estava morto. Em desespero ele se atirava no chão, batia no peito, puxava os cabelos e se condenava por ter deixado o garotinho sozinho em casa.

Depois de ter chorado por um dia e uma noite, ele se levantou, reuniu o cadáver da criança e organizou uma cerimônia de cremação. Depois, ele pegou as cinzas e as colocou num lindo saquinho de veludo, que ele carregava consigo o tempo todo, porque ele amava tanto o garotinho. Quando você ama muito algo ou alguém, você quer que aquela coisa ou pessoa esteja com você o tempo todo, vinte e quatro horas por dia; e isso nós compreendemos. Agora, porque ele acreditava que o garotinho estava morto e àquelas eram as próprias cinzas dele, ele queria carregar os restos mortais do seu amado com ele. Seja dormindo, comendo ou trabalhando ele sempre mantinha aquele saquinho com ele.

Uma noite, por volta das duas horas da manhã, o filho, que tinha conseguido escapar, conseguiu ir para casa. Ele bateu na porta do seu pai. Você pode imaginar o pobre pai deitado na cama, sem conseguir dormir, ainda chorando com o saco de cinzas.
“Quem está batendo na minha porta?” gritou o pai.
“Sou eu, paizinho, é o seu filho.”
O jovem pai acreditava que isso era alguém tentando enganá-lo, porque ele tinha certeza que seu filho já estava morto. Ele disse, “Vá-se embora, criança perversa. Não perturbe as pessoas a esta hora da noite. Vá pra casa. O meu filho está morto.” E o garoto insistia, mas ele continuava a se recusar a reconhecer que àquele era o seu próprio filho que estava batendo na porta. Finalmente, o garoto teve que ir embora, e o pai lhe perdeu para sempre.

É claro que nós sabemos que o jovem pai não foi muito sensato. Ele deveria ter sido capaz de reconhecer a voz do seu filho. Mas como ele estava aprisionado numa crença, e a mente dele estava coberta de dor, desespero e convicção, ele não foi capaz de reconhecer que era o seu próprio filho batendo à sua porta. Por isso ele se recusou a abri-la, e perdeu o seu filho para sempre.

Às vezes nós tomamos algo como verdadeiro, como a verdade absoluta. Apegamos-nos àquilo; não conseguimos mais liberá-lo. E por isso ficamos emperrados. Mesmo quando a verdade chega pessoalmente batendo a nossa porta, nós recusamos abri-la. Nosso apego às nossas visões é um dos maiores obstáculos a nossa própria felicidade.

Suponha que você está subindo uma escada. Se você chegar ao quarto degrau e acreditar que este é o mais alto, não terá chance alguma de subir até o quinto, que é, de fato, mais alto. A única maneira de você subir mais alto é deixando o quarto para trás.

Um dia, Buda voltou da floresta para casa com uma mão cheia de folhas. Ele olhou para os monges, sorriu e disse, “Queridos amigos, vocês acham que as folhas na minha mão são tão numerosas quanto às folhas na floresta?” E é claro que os monges disseram, “Querido professor, você está segurando somente dez ou doze folhas, e na floresta existem milhões e milhões delas.” E Buda disse, “É verdade, meus amigos, eu tenho muitas idéias, mas eu não lhes digo. Porque o que vocês precisam é trabalhar para a sua própria transformação e cura. Se eu lhes der muitas e muitas idéias, vocês ficam aprisionados nelas, e assim não têm chance alguma de receptar os seus próprios insights.

Então como perceber o mundo sem idéias preconcebidas? Como olhar para o mundo com verdadeira consciência? Existem três naturezas que descrevem como nós percebemos o mundo em graus de consciência variados: parikalpita, paratantra e parinishpana. A primeira natureza é parikalpita, a nossa construção mental coletiva. Nossa tendência é acreditar em um mundo sólido, objetivo. Nós vemos coisas existindo fora uma das outras. Você está do lado de fora de mim, e eu estou do lado de fora de você. O brilho do sol está do lado de fora da folha e a folha não é a nuvem. As coisas estão foras umas das outras. Esta é a maneira como a maioria de nós vê as coisas. Mas o que tocamos, vemos e ouvimos é apenas uma construção mental coletiva. O que a maioria de nós considera a natureza do mundo é apenas a natureza de parikalpita. A pessoa do seu lado diz que vê e ouve a mesma coisa que você. Isso não se dá porque tais coisas são as únicas e objetivas formas de ver o mundo, mas sim porque aquela pessoa está muitíssimo constituída como você e percebe quase a mesma coisa.

Nós sabemos que não vemos apenas com os nossos olhos. Os nossos olhos apenas recebem a imagem que será traduzida na linguagem dos sinais elétricos. Os sons que ouvimos também são recebidos e traduzidos em sinais elétricos. Som, imagem, toque e cheiro, são todos traduzidos em sinais elétricos que a mente consegue receber e processar.

No Sutra do Diamante, Buda disse, “Todos os darmas (seres) se assemelham a um sonho, a objetos mágicos, a bolhas de água, a meras imagens, uma gota de orvalho, um relâmpago...” Aquilo que concebemos como sendo personalidades, pessoas, o que concebemos como sendo entidades, darmas, são apenas construções mentais, evoluindo de várias maneiras, mas todas elas são manifestações vindas da consciência. ** Cientes de que o mundo em que vivemos é parikalpita, nós olhamos profundamente para dentro do mundo da consciência mental e tocamos o segundo tipo de percepção: paratantra.

Paratantra significa “recostando-se um no outro, dependendo um do outro para se manifestar.” Você sozinho não consegue ser você mesmo, você tem que inter-existir com tudo o mais. Olhando para dentro de uma folha, você pode ver a nuvem e o raio do sol; a unidade contém a totalidade. Se retirarmos estes elementos da folha, não restará folha alguma.

Uma flor jamais conseguiria ser ela mesma sozinha. Uma flor conta com muitos elementos que não são flor para poder se manifestar. Se olharmos para a flor e virmos uma entidade separada, nós ainda estamos no reino de parikalpita. Quando olhamos para uma pessoa, como o nosso pai, nossa mãe, nossa irmã, nosso companheiro, se os virmos como um “eu” separado, atma, então ainda estamos no mundo de parikalpita.

Para descobrir a natureza vazia das pessoas e das coisas, você precisa da energia da consciência e da concentração. Você passa o seu dia em estado de plena consciência. Qualquer coisa que você entra em contato com, você olha para aquilo profundamente, e não é mais enganado pela aparência daquilo. Olhando para o sol, você vê o pai, a mãe e os ancestrais, e você vê que o filho não é uma entidade separada. Você se vê como uma continuação – isto é, você ver tudo à luz da interdependência e da interexistência. Tudo está baseado em tudo o mais para se manifestar. Se continuar praticando, a noção de “um” e “muitos” desaparecerá.

O cientista nuclear David Bohm disse que um elétron não é uma entidade em si mesma, mas está constituído de todos os outros elétrons. Esta é uma manifestação da natureza de paratantra, a natureza da interexistência. Não existem entidades separadas, existem somente manifestações que se apóiam umas nas outras para serem possíveis. É como a direita e a esquerda. A direita não é uma entidade separada que pode existir sozinha apenas. Sem a esquerda, a direita não consegue existir. Tudo é assim.

Um dia o Buda disse ao seu querido discípulo Ananda, “Qualquer pessoa que vê a interexistência, vê Buda”. Se tocarmos a natureza da interdependência, tocamos  Buda. Este é um processo de treinamento. Durante o dia, enquanto estiver andando, sentando, comendo, asseando, você pode se treinar a ver as coisas como elas são. Finalmente quando o treino estiver concluído, a natureza de parinishpana, realidade, se revelará inteiramente e o que você toca não mais é um mundo de ilusão, mas o mundo da própria coisa.
                                                                                
Primeiro, nos tornamos cientes de que o mundo dentro do qual vivemos está sendo construído por nós, pela nossa mente, coletivamente. Em segundo lugar, estamos cientes de que se olharmos profundamente, se nós soubermos usar a consciência plena e a concentração, poderemos começar a tocar a natureza da interexistência. E, finalmente, quando a prática da mente atenta tiver se aprofundado, a realidade absoluta da verdadeira natureza, desnuda de noções, conceitos e idéias, até mesmo as idéias da “interexistência” e “inexistência do eu”, pode ser revelada.

Os praticantes espirituais não usam instrumentos de pesquisa sofisticados. Eles usam a sabedoria interior deles, a luminosidade deles. Uma vez que estejamos livres do agarramento, de noções e conceitos, uma vez que estejamos livres do nosso medo e da nossa raiva, então teremos um instrumento muito brilhante com o qual podemos experimentar a realidade como ela é: livre de todas as noções, noções de nascimento e morte, existência e inexistência, vir e ir, igual e diferente. A prática da consciência plena, concentração e sabedoria podem purificar a nossa mente e torná-la um instrumento poderoso com o qual podemos olhar profundamente dentro da natureza da realidade.

No budismo, falamos em pares de opostos, como nascimento e morte, vir e ir, existir e inexistir, igualdade e diversidade. Suponha que você tem uma vela acesa, e sopra até apagar a chama. Ai você acende a vela novamente e faz esta pergunta à chama: “Minha querida chamazinha, você é a mesma chama que se manifestou antes ou você é uma chama totalmente diferente?” E ela dirá: “Eu nem sou a mesma chama, nem sou uma chama diferente.” Nos ensinamentos de Buda, isto é chamado de madhyamaka, o caminho do meio ou caminho intermediário. O caminho do meio é extremamente importante, porque o caminho do meio elimina os extremos, como existir e inexistir, nascimento e morte, vir e ir, igual e diferente. E as descobertas da ciência já comprovam este tipo de visão.

Quando você abre o álbum de família e vê um retrato da criança de cinco anos que você era, você vê que está bem diferente daquele garoto ou garota no álbum. Se a chama fosse lhe perguntar: “Querido amigo, você é o mesmo garotinho do álbum?” você responderia tal como ela lhe respondeu, “Querida chama, eu não sou o mesmo garotinho, mas eu também não sou uma pessoa totalmente diferente.”

(Do livro Buddha Mind, Buddha Body: Walking toward Enlightenment, de Thich Nhat Hanh)
(Tradução para o português: Tâm Vân Lang)

terça-feira, 13 de novembro de 2018

Budismo e Ciência

Um dia um grupo de jovens de Kalama veio visitar o Buda enquanto ele estava naquela área. Eles perguntaram, “Querido professor, muitos professores vieram aqui e cada um deles defende que seu ensinamento é a verdade, é o absoluto. Cada um diz que deveríamos segui-los e não seguir a outro professor. Qual é a sua idéia?” O Buda disse: “Não se apresse em acreditar em nada, mesmo se estiver escrito nas escrituras sagradas. Não se apresse em acreditar em nada só porque um professor famoso disse. Não acredite em nada apenas porque a maioria concordou que é a verdade. Você deveria testar qualquer coisa que as pessoas dizem através de sua própria experiência antes de aceitar ou rejeitar algo.”

O que o Buda disse é verdadeiramente científico. O budismo não pode ser descrito como ciência, mas tem o espírito científico.

Como cientista, depois de algum tempo pesquisando e fazendo vários experimentos, você descobre algo. Feita a descoberta, você tem que publicar o que descobriu, porque acredita que descobriu a verdade, uma verdade científica. Depois de ter publicado seu achado em uma revista científica, outras pessoas irão olhar para ele e haverá um número muito pequeno de especialistas no seu campo de pesquisa que irão determinar se seu achado é verdade ou não. Para fazer isso, eles irão testar por eles mesmos. Eles não podem apenas dizer que o que você disse é verdade porque eles são especialistas naquele campo. Eles têm que provar com sua própria experiência. A grande maioria das pessoas que não é especialista no campo, apenas acredita, porque não temos meios de testar a descoberta de forma a verificar a verdade. Temos que acreditar em um número muito pequeno de cientistas daquele campo de atuação.

No domínio da ciência há muitas crenças. Acreditamos no que os especialistas dizem sem testarmos por nós mesmos. Mesmo assim, tendo sido provado que era a verdade, dez ou vinte anos depois uma nova verdade é considerada superior, mais profunda, mais verdadeira que a verdade anterior. E novamente haverá um punhado de especialistas que tentarão confirmar e nós, a maioria, vamos seguir. Neste caminho nos comportamos como pessoas religiosas, mesmo no domínio da ciência.

E sobre a prática do budismo? No budismo, o objeto de nossos estudos é a mente e como ela se relaciona com o sofrimento e a felicidade. Não estamos tão preocupados com a mesa ou a nuvem, com o átomo ou as estrelas. Mas estamos preocupados com o sofrimento e felicidade. Não somos filósofos. Não especulamos sobre felicidade e sofrimento. Queremos realmente observar nosso sofrimento, observar nossa felicidade. Queremos achar uma solução. Queremos nos liberar do sofrimento. Queremos trazer felicidade verdadeira. E esse é o trabalho real que não pode ser feito apenas falando.

Quando você senta em meditação, segue sua respiração e gera a energia da plena consciência e concentração, tem os instrumentos para trabalhar. Pode reconhecer e abraçar seu sofrimento. Pode cultivar o tipo de sabedoria que pode ajudar a desintegrar o sofrimento. Você pode fazer isso no espírito empírico – você realmente entra nele, e não apenas fala sobre ele. Seu sofrimento é a realidade e você o reconhece. Você entra nele, analisa e usa sua plena consciência, concentração e insight de forma a transformá-lo. É como um cientista usando seus instrumentos de forma a olhar profundamente na natureza do que está lá. E depois de usar o método de transformação e cura, você pode querer compartilhar isso com seus alunos ou amigos.

Há bons praticantes de meditação que tem mais ou menos o mesmo tipo de experiências. Eles tentam verificar e experimentar o mesmo tipo de coisa. Se eles forem bem sucedidos, podem dizer: “O que você nos disse é verdade. Eu tive a mesma experiência.” Mas muitas pessoas em volta apenas acreditam, sem ter a experiência. Portanto não há grande diferença entre ciência e budismo. Muitos budistas apenas acreditam. Há apenas um punhado de nós que podem testemunhar a verdade que foi descoberta.

Budismo às vezes descreve a mente e às vezes o mundo, mas essa descrição não é pelo prazer da descrição. A descrição objetiva a prática. Se você aprender sobre a mente é porque quer praticar bem. Não é porque quer uma bela doutrina sobre a mente. Se você falar sobre impermanência e não-eu não é pelo prazer de descrever a realidade como sendo impermanente e livre de um eu separado. Essa descrição é um instrumento que o ajuda a se liberar,porque a verdade da impermanência e não-eu podem te ajudar a superar seu desespero, seu medo e assim por diante. Portanto há uma diferença.

Quando um cientista estuda uma partícula, tem que usar instrumentos, aceleradores de partícula e outros, mas ele tem que usar a mente também. A maioria dos cientistas fica fora da partícula como um observador, e a partícula se torna o objeto da observação. Mas na experimentação dos praticantes budistas, você não fica fora como um observador. Não pode se estabelecer como observador. Tem que se tornar participante, porque o bloco de sofrimento que você experimenta não é o objeto de sua observação. É você. Você é o bloco de sofrimento. É por isso que o Buda disse para se praticar a contemplação do corpo no corpo, contemplação dos sentimentos nos sentimentos. Não é possível ficar de fora, em pé, observando. Você tem que se tornar uno com o objeto que observa. Esta é a diferença entre ciência e budismo, e os cientistas modernos começaram a ver isso.

O físico britânico David Bohm disse que de forma a realmente entender o átomo você teria que parar de ser apenas um observador. Deveria começar a ser um participante. Isto é muito próximo da disciplina da meditação.

A esquerda política acredita na ciência, no liberalismo, na razão. Eles lutam com todas as forças contra o fundamentalismo e o dogmatismo, mas ainda sofrem muito. Eles não têm força suficiente. Politicamente falando eles perderam a eleição. Como eles apóiam a ciência e a liberdade de pensamento, são anti-dogmáticos, sim, mas isto ainda não é suficiente. Eles não estão aptos a trazer a dimensão espiritual para dentro das suas vida. É possível ter dimensão espiritual na nossa vida diária, na nossa política, na nossa vida econômica, sem sermos capturados pelo fundamentalismo?

O Buda provou que era liberal, mas ele era profundamente espiritual. É por isso que ao falar em evolução biológica você tem que falar em evolução cultural, evolução espiritual, que tem o poder de nos liberar do dogmatismo e do fundamentalismo. A questão é como a ciência e a meditação podem dar as mãos de forma a ir em frente ao futuro, para nossa liberação. Esta é uma questão de nosso tempo.

Em agosto de 2006, teremos um retiro sobre a Mente e a Neurociência, e teremos uma chance de tocar nesse problema. Budismo às vezes parece uma religião, mas não é verdadeiramente uma religião. Às vezes parece ciência, mas não é ciência, por que estamos preocupados com a realidade última. Nós gostamos de fazer perguntas, mas também queremos nos transformar, nos curar. Há dentro do budismo uma tremenda fonte de sabedoria e experiência passada pelo Buda através de muitas gerações de praticantes. Podemos aprender muito de suas experiências de forma que possamos por nossa vez nos transformar e ajudar a curar e transformar o mundo.

 (Transcrito de um Dharma Talk de Thich Nhat Hanh em um retiro para cientistas em 17 de novembro de 2005 em Plum Village)

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Sem Lama, Sem Lótus

A plena consciência tem duas funções. A primeira é entrar em contato com todas as coisas maravilhosas e bonitas que estão ao nosso redor. A segunda é entrar em contato com as emoções difíceis, como raiva, medo, dor e tristeza dentro de nós e a nossa volta. Plena consciência pode nos ajudar a reconhecer estas dificuldades e transformá-las. Não é apenas o paraíso que está disponível no aqui e agora, o inferno também está disponível no aqui e agora. A prática da plena consciência nos ajuda a ter contato com ambas, as maravilhas para nos nutrirmos e o sofrimento para nos curarmos e nos transformarmos.

As pessoas tendem a achar que seu verdadeiro lar é um lugar onde não há sofrimento, apenas felicidade. Mas este pensamento vai contra a sabedoria do interser. Não podemos fazer crescer uma flor de lótus sem lama. Para cultivar vegetais, precisamos composto. Qualquer jardineiro orgânico sabe por que guardamos os restos da nossa comida e o lixo do jardim. Este lixo é orgânico e com ele podemos fazer composto para nutrir flores e vegetais. Sofrimento e felicidade são também orgânicos. Podemos transformá-los em bem-estar. Este é o ensinamento do Buda sobre não-dualidade.

A flor de lótus não é possível sem a lama. Entendimento e compaixão não são possíveis sem sofrimento. Eu nunca gostaria de estar em um lugar onde não houvesse sofrimento, porque em tal lugar eu não teria a chance de aprender como entender e ser compassivo. É tocando o sofrimento que temos a chance de entender as pessoas e seu sofrimento. É entendendo nosso próprio sofrimento e o sofrimento dos outros, que começamos a saber o que é ser compassivo. É apenas contra o pano de fundo do sofrimento que podemos reconhecer nossa felicidade.

Eu lembro que durante a Guerra do Vietnã queríamos desesperadamente apenas ter um cessar-fogo por 24 horas – 24 horas sem bombas caindo, sem ninguém sendo morto. Mas se não tivéssemos vivido em uma guerra, não saberíamos como apreciar 24 horas de paz, 24 horas sem os horrores da guerra. Portanto, precisamos de sofrimento para reconhecer as condições que temos para sermos felizes. Nenhuma flor pode existir sem lama. Minha definição de lar não é um lugar onde não há sofrimento, mas um lugar onde eu posso cultivar a compaixão.

Mesmo quando vemos muita violência, discriminação, ódio, ciúme e ganância, se estamos equipados com entendimento e compaixão, não sofremos. Sabemos como fazer uso do lixo de forma a nutrir as flores e vegetais. Estamos tornando a vida mais bonita e com mais significado através do poder do entendimento e compaixão em nós.

Entendimento e compaixão também nos protegem. Mesmo se outros estão com raiva, são violentos e nos discriminam, não temos que sofrer, porque entendemos e o entendimento traz a tona a compaixão. Onde quer que haja violência, discriminação, ódio e ganância, se estamos equipados com a Visão Correta, a sabedoria do interser e da não-discriminação, não temos que sofrer. A dor é inevitável, mas o sofrimento é opcional.

Quando estamos protegidos pelo entendimento e compaixão, não somos mais vítimas. Os outros podem ainda ser vítimas de sua própria ignorância e discriminação. Estas pessoas são o objeto da sua prática. Temos que viver de forma que possamos remover e transformar a ignorância, discriminação, ganância e ódio deles.

Durante a Guerra do Vietnã, muitos de nós tentaram expressar nossas preocupações. Não queríamos esta guerra onde irmãos e irmãs se matavam com armas e ideologias estrangeiras. Ambas as forças, comunistas e não comunistas, nos davam armas e ideologias e nos impeliam a lutar e nos matar. Alguns de nós que éramos estudantes de Budismo começamos um movimento chamado “Não mate seu irmão”, e nossas vozes eram silenciadas por ambos os lados que lutavam. Tentamos falar alto, tentamos dizer ao mundo que não queríamos a guerra, não queríamos nos matar, mas estávamos sendo forçados a fazê-lo.

Muitos de nós que praticavam a plena consciência, entendimento e compaixão queríamos a reconciliação, mas nossas vozes eram silenciadas. Alguns tiveram que se imolar com fogo de forma a transmitir nossa mensagem. Thich Quang Duc se imolou um dia. Eu estava em Nova York quando eu vi a foto na primeira página do New York Times. Ele era um amigo meu.

Nhat Chi Mai, uma de minha alunas, se imolou clamando por reconciliação. Ela foi ao Templo Tu Nghiem muito cedo, cerca de 2 ou 3 horas da manhã. Ela colocou uma estátua da Virgem Maria e a estátua de Quan Yin, o bodosatva da compaixão, em frente dela e deixou para trás um conjunto de cartas para o presidente do Vietnã do Norte, para o presidente do Vietnão do Sul e para todos, para que se juntassem e parassem de se matar. Então ela jogou gasolina no corpo e acendeu o fogo. Eu estava em Paris. Ela deixou uma carta para mim que dizia, “Thay, não se preocupe, a paz virá. Não sofra muito.” Ela estava na iminência de morrer, mas tentava confortar a mim, seu professor.

Embora a maioria das pessoas não quisesse a guerra, ela continuava. Meu livro de poesia de paz – eu gosto de chamar poesia de paz e não poesia anti-guerra – foi condenada pelo Norte e confiscada pelo Sul. Portanto quando a Universidade de Cornell me convidou para ir aos Estados Unidos para uma série de palestras eu aproveitei a oportunidade e fui para poder clamar pela paz.

Quando estamos verdadeiramente no momento presente, podemos encontrar partes da vida que são refrescantes e curadoras. Mas podemos encontrar também guerra, sofrimento, violência, ódio, medo e discriminação. Quando isto acontece, podemos sentir a raiva subir. Mas aqueles que criam a discriminação e o ódio são vítimas do medo. É o medo que é o obstáculo. No Vietnã, naquela época e ainda hoje, quero ajudar as pessoas a se libertarem do medo. Aqueles que lutaram no Vietnã, aqueles que lutam agora no Iraque e no Afeganistão não são meus inimigos. Eles são aqueles que quero ajudar. Eles são objetos da minha prática de compaixão e entendimento.

Eu não tenho inimigos.

(Do livro “Together we are one”– Thich Nhat Hanh)
(Traduzido por Leonardo Dobbin)

terça-feira, 16 de outubro de 2018

Não-Desejo

Não-desejo significa a natureza da realidade. Como temos percepções erradas, a realidade não pode se revelar para nós. Os exercícios de respiração 13 a 16 ensinados pelo Buda nos ajudam a remover nossas percepções erradas de forma que a realidade é revelada. Como percepção é sempre uma percepção de algo, precisamos perguntar sobre a natureza de nossa percepção e a natureza da realidade como objeto da nossa percepção.

O Buda nos advertiu para olharmos a natureza de nosso desejo de forma que a realidade possa se revelar fortemente, e então não mais seremos capturados em percepções erradas. Cada um de nós tem objetos de desejo, de ganância. Acreditamos que se não obtivermos o que queremos, não poderemos ser felizes, e perseguimos esses objetos. O Buda nos adverte para olharmos em profundidade para o objeto, usando plena consciência e concentração, de forma que ele revele sua verdadeira natureza.

Este é o objetivo do exercício, “Experimentando não-desejo, eu inspiro.” Podemos desejar riqueza, acreditando que se não tivermos muito dinheiro, não podemos ser felizes. Aqueles de nós que tem muito dinheiro sabem que ele pode nos fazer muito infelizes. Dinheiro não é um elemento de nossa felicidade. Com dinheiro, podemos sentir que temos poder. Este poder pode nos trazer muito sofrimento porque está freqüentemente ligado a noções de eu, discriminação, desilusão e ignorância. Olhando em profundidade para o objeto de nosso desejo, nossa ganância, vemos que não é realmente um objeto a se perseguir.

Se somos viciados em álcool, pensamos que não podemos nos sentir bem sem ele. Precisamos olhar em profundidade para a sua natureza; como ele é feito, o que ele vai fazer conosco e com as pessoas ao nosso redor; qual a relação entre a bebida e nosso fígado, coração, sentimentos e consciência. Se olharmos com profundidade suficiente, veremos que o objeto de nosso desejo não é um elemento de nossa felicidade. Podemos sofrer tremendamente devido ao álcool ou morrer por causa dele, mas mesmo assim o perseguimos por um longo tempo.

O Buda usou a imagem de um homem que está sedento e vê um copo. A água parece muito fria, fresca e doce, mas há veneno nela. Alguém alerta ao homem para que não beba da água, “Se você beber, poderá morrer ou ficar a beira da morte. Não beba, eu te alerto. Procure alguma outra coisa para beber. Use qualquer coisa para matar sua sede, mas não beba isso.” Mas o homem está tão sedento e a água é tão apelativa que ele decide que beber está OK. Ele bebe e pensa, “Eu morrerei depois.” E ele sofre.

Acontece o mesmo com riqueza, fama, sexo e comida. Se há comida na mesa e você deseja muito, pensando que não pode ser feliz sem ela, mesmo se alguém te disser que você morrerá ou sofrerá muito por comê-la, você ainda a comerá. Você está tão faminto e pensa que a felicidade não é possível a não ser que você coma. Você pensa: “Tudo bem, morrerei porque tenho que comer isso.” Muitos de nós têm essa atitude.

Conheço uma mulher que recebeu os Cinco Treinamentos de Plena Atenção alguns anos atrás. Depois ela conheceu um homem na universidade e se apaixonaram. Ele disse a ela: “Não estou feliz com minha esposa, e quando te vejo sei que você é tudo que quero”, e ele chorava. Ele era casado e tinha um filho e mesmo assim queria ter um caso com ela. Ele não percebeu que se fosse em frente, causaria muito sofrimento para ela, para ele mesmo, para sua esposa e filho. Como a mulher tinha recebido e estava praticando o Terceiro Treinamento, ela disse: “Não, eu não posso ter uma relação com você.” Mas ela ainda queria ter muito essa relação. Finalmente, depois da graduação, ele voltou ao seu país. Ela se sentiu sozinha e começou a odiar os Cinco Treinamentos. Ela disse: “Devido aos Cinco Treinamentos de Plena Atenção eu não tive um relacionamento com ele e era exatamente o que eu queria. Ambos ficamos com consciências limpas, mas eu ainda odeio o Terceiro Treinamento.”

Eu estou certo que se ela fosse adiante e tivesse um relacionamento com ele, teria criado muito sofrimento para ela mesma, para ele e muitas outras pessoas. Como ela não experimentou esse sofrimento, era possível para ela odiar o Terceiro Treinamento. Temos que olhar em profundidade para o objeto do desejo para ver como ele acontece e o que ele fará conosco e com as pessoas ao nosso redor. Se tivéssemos um insight real na sua origem e resultado, não o quereríamos, porque veríamos que ele nos traria muito sofrimento.

Intenção e desejo, volição, é o terceiro tipo de nutriente que aprendemos. Como mencionei antes, o Buda ofereceu a imagem de um homem carregado a força por dois homens fortes. O homem quer viver. Não deseja morrer. Mesmo assim os dois homens o carregam a força e desejam jogá-lo em uma fogueira. O homem grita: “Não, não, eu não quero morrer! Quero viver! Não me joguem no fogo.” Mesmo assim os dois homens continuam e jogam-no na fogueira. O Buda disse que esses dois homens fortes são nosso desejo, nossa volição. Você não quer morrer, não quer sofrer, mas devido ao seu desejo, é arrastado para o reino do sofrimento. Olhando em profundidade para a natureza do objeto de seu desejo com plena consciência e concentração, você descobrirá a sua natureza verdadeira e parará de persegui-la.

Nos dias de hoje as pessoas pescam com pesos de plásticos. Elas não usam mais insetos vivos. O peixe vê a isca. É muito apelativa. Eles mordem e o anzol escondido os corta. Nos comportamos do mesmo modo. Temos uma percepção errada sobre o objeto de nosso desejo. Pensamos que a vida não terá significado, e não seremos felizes se não tivermos aquele objeto. Há milhões de maneiras de ser feliz, mas não sabemos como abrir a porta para que a felicidade entre. Apenas perseguimos os objetos de nosso desejo. Muitos de nós experimentaram a realidade que quanto mais perseguimos objetos de nosso desejo, mais sofremos.

Tenho uma boa história para contar. Imagine um riacho descendo do alto da montanha. Ele é muito jovem e quer correr. Seu objetivo é o oceano. Quer chegar lá tão rápido quanto possível. Quando alcança as planícies e o campo, fica mais lento. Se torna um rio. Fluindo lentamente, começa a refletir as nuvens e o céu. Há muitos tipos de nuvens, com diferentes formas e cores, e o rio passa todo o tempo as perseguindo, uma depois da outra. Mas as nuvens não ficam paradas. Elas vêm e vão. O rio chora muito, porque nenhuma das nuvens fica com ele para sempre. As coisas são impermanentes. Ele sofre devido a sua atitude e comportamento.

Um dia um vento forte limpou todas as nuvens e o céu ficou extremamente azul. Não havia absolutamente nuvens. O rio pensou que a vida não valia a pena ser vivida mais. Ele não sabia como desfrutar do céu azul. Ele o via como vazio, e sentia que a vida não tinha significado. Esta noite ele quis se matar. Como pode um rio se matar? De alguém não é possível se tornar ninguém. De algo não é possível se tornar nada. Durante aquela noite ele chorou muito. Este é o som da água batendo nas margens. Esta foi a primeira vez que ele voltou-se para si mesmo.

Até agora, ele tinha apenas corrido para fora de si mesmo. Ele pensava que a felicidade estava fora, não dentro. A primeira vez que voltou a si mesmo e ouviu o som de suas lágrimas, ele descobriu algo. Ele não sabia que um rio era feito de elementos não-rio. Ele estava perseguindo nuvens, pensando que não poderia ser feliz sem elas, e não percebeu que ele era feito de nuvens. O que ele estava procurando já estava dentro dele. Felicidade é assim. Se você sabe como voltar ao aqui e agora e perceber os elementos de sua felicidade que já estão disponíveis, não precisa mais correr.

De repente o rio percebeu que havia algo refletido nele: o céu azul. Ele vê o quão pacífico, sólido, livre e bonito o céu é. Ele não tinha percebido antes. Ele sabe que sua felicidade deveria ser feita de solidez, liberdade e espaço. Ele é preenchido de felicidade porque pela primeira vez soube como refletir o céu. Antes, ele havia somente refletido as nuvens e ignorado completamente o céu. Esta foi uma noite de transformações profundas. Todas as lágrimas e sofrimento foram transformados em alegria, solidez e liberdade.

Na manhã seguinte não havia vento. As nuvens retornaram. Agora ele as reflete sem apego com equanimidade. Ele diz “Oi” cada vez que uma nuvem aparece. Quando a nuvem se vai, ele não fica triste. Ele achou a liberdade. Ele sabe que a liberdade é a fundação da sua felicidade. Ele aprendeu a parar e não correr mais. Naquela noite algo maravilhosos se revelou. A imagem da lua cheia foi refletida. Ele está muito feliz dando as mãos para as nuvens e a lua, praticando meditação caminhando para o oceano. Cada passo, feito em conjunto com as nuvens e a lua traz ao rio muita felicidade.

Cada um de nós é um rio. Começamos como um regato descendo do alto da montanha, querendo correr o mais rápido possível. Então aprendemos como ficar mais lentos um pouco, e começamos a perseguir objetos de nosso desejo. Sofremos. Às vezes sofremos tanto que não queremos nem mais existir. Então temos a chance de voltarmos para nós mesmos e refletir profundamente. Percebemos que o objeto de nosso desejo é a causa de nosso desespero e das nossas aflições. Todos os elementos da felicidade estão disponíveis no aqui e agora. Temos tudo que precisamos. De repente conseguimos o tipo de liberdade que nunca tivemos e somos capazes de viver cada momento de nossa vida diária profundamente. Como nos tornamos um rio feliz, podemos ajudar muitos rios a nossa volta a se tornarem felizes também.

(Traduzido do  livro “The Path of Emancipation” – Thich Nhat Hanh – por Leonardo Dobbin)

quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Atenção Plena nas Sensações e na Mente

A Atenção Plena Correta (samyak smriti) está sempre no âmago de todos os ensinamentos de Buda. Tradicionalmente, a Atenção Plena Correta é a sétima etapa do Caminho Óctuplo, mas aqui ela está colocada em terceiro lugar, para enfatizar sua grande importância. A palavra sânscrita que designa atenção plena, smriti, significa "lembrar-se". A atenção plena consiste em lembrar-se constantemente de voltar ao momento presente. No Discurso Os Quatro Estabelecimentos da Atenção Plena (Satipatthana Sutta), o Buda propõe quatro objetos para a prática da atenção plena: o corpo, as sensações, a mente e os objetos da mente. (...)

O segundo estabelecimento é a atenção plena às sensações nas sensações. Os autores do Abhidharma enumeraram cinqüenta e um tipos de formações mentais. As sensações (vedana) são apenas um deles, Dentro de nós existe um rio de sensações, no qual cada gota representa uma sensação diferente. Para observar nossas sensações, só precisamos nos sentar à margem do rio e identificar cada sensação enquanto ele passa por nós e desaparece. As sensações podem ser agradáveis, desagradáveis ou neutras.

Quando nos vem uma sensação agradável, temos tendência a nos agarrar a ela, e quando é desagradável, desejamos que vá embora. Mas é mais eficaz em ambos os casos retomar à respiração e simplesmente observar a sensação, identificando-a silenciosamente: "Ao inspirar, eu sei que existe uma sensação agradável (ou desagradável) dentro de mim. Ao expirar, eu sei que existe uma sensação agradável (ou desagradável) dentro de mim." Chamar uma sensação por seu verdadeiro nome, como "alegria", "felicidade", "raiva" ou "tristeza" nos ajuda a identificá-la e enxergá-la com mais clareza. Em uma fração de segundo podem surgir muitas sensações.

Se nossa respiração for leve e calma - resultado natural da respiração consciente -, a mente e corpo se tornarão calmos, leves e claros, juntamente com as sensações. Nossas sensações não são separadas de nós nem causadas por coisas externas. Nossas sensações são nós mesmos, por um breve instante n6s nos tornamos as sensações. Não precisamos nos sentir intoxicados ou aterrorizados por elas, nem precisamos rejeitá-las. A prática de não se agarrar nem rejeitar as sensações é uma parte muito importante da meditação. Se encararmos nossas sensações com carinho, respeito e não-violência, podemos transformá-las em um tipo de energia saudável que irá nos nutrir. Quando uma sensação surge, a Atenção Plena Correta a identifica, reconhece que está lá e observa se é agradável, desagradável ou neutra.

A Atenção Plena correta é como uma mãe. Quando o filho sorri, ela o ama, e quando o filho chora, ela também o ama. Tudo o que ocorre em nosso corpo ou mente precisa ser observado com equanimidade. Não devemos lutar contra, mas sim acolher a sensação e procurar conhecer melhor o que está ocorrendo. Assim, da próxima vez que essa sensação surgir, nós a acolheremos ainda com mais calma.

Devemos acolher todas as nossas sensações, inclusive as difíceis, como a raiva. A raiva é um fogo que queima dentro de nós, e precisamos nos acalmar. "Inspirando, eu acalmo minha raiva. Expirando, eu curo a minha raiva." Quando a mãe pega no colo o bebê que chora, a criança já se sente aliviada. Quando abraçamos a nossa raiva com a Atenção Plena Correta, imediatamente passamos a sofrer menos.

Todos temos emoções difíceis, mas se permitirmos que elas nos dominem, ficaremos exauridos. As emoções se tornam descontroladas quando não sabemos o que fazer com elas. Quando as sensações são mais fortes do que a atenção plena, nós sofremos. Mas se praticarmos a respiração consciente diariamente, a atenção plena se tornará um hábito. Não espere para começar a praticar .quando estiver dominado por uma sensação qualquer, porque talvez seja muito tarde.

O terceiro estabelecimento é a atenção plena da mente (chítta) na mente. Estar consciente da mente é ter consciência das formações mentais. "Formações" (samskara) é um termo técnico budista que descreve algo que é "formado", algo que é feito a partir de outra coisa. Uma flor é uma formação. Nossa raiva é uma formação mental. Algumas formações mentais estão presentes o tempo todo e são chamadas de "universais" (contato, atenção, sensação, percepção e volição). Outras só surgem em circunstâncias particulares (zelo, determinação, atenção plena, concentração e sabedoria). Outras ainda nos elevam, ajudando a transformar o sofrimento (formações mentais benéficas ou saudáveis), e existem também as pesadas, que nos aprisionam ao sofrimento (formações mentais não-sadias ou prejudiciais).

Existem formações mentais que por vezes são saudáveis e outras não-sadias, tais como o sono, arrependimento, os pensamentos iniciais, e os pensamentos de desenvolvimento. Quando nosso
corpo e mente precisam de repouso. dormir é saudável. Mas se dormimos o tempo todo, pode ser não-sadia. Se magoamos alguém e nos arrependemos, isso é benéfico. Mas se o arrependimento conduzir a um complexo de culpa que vai tingir todos os nossos futuros atos, então o arrependimento é prejudicial. Quando nosso pensar nos ajuda a enxergar com clareza, ele é benéfico. Mas se a mente está dispersa em todas as direções, esse pensamento não nos ajuda em nada.

Existem muitos aspectos belos em nossa consciência, como fé, humildade, auto-respeito, ausência de desejo, raiva e ignorância, diligência, carinho com as pessoas, o sentir-se bem, equanimidade e não-violência. Por outro lado, as formações mentais doentias se assemelham a um novelo emaranhado. Tentamos desembaraçar a linha, e acabamos nos enrolando de tal forma que não conseguimos mais nos mover. Estas formações mentais às vezes são chamadas de aflições (kleshas), porque trazem dor para si e para os outros. Às vezes são chamadas de obscurecimentos, porque nos confundem e nos fazem perder o caminho. São também chamadas de impedimentos ou contratempos (ashrava), porque se assemelham a vasos rachados.

As formações mentais doentias básicas são a ganância, o ódio, a ignorância, o orgulho, a dúvida e as opiniões. As formações mentais doentias secundárias, que se originam das básicas, são raiva, malícia, hipocrisia, malevolência, inveja, egoísmo, fraude, astúcia, excitação doentia, desejo de prejudicar, falta de modéstia, arrogância, preguiça, agitação, falta de fé, indolência, indiferença, negligência, esquecimento e falta de atenção. De acordo com a Escola Vijnanavada de Budismo, existem cinquenta e um tipos de formações mentais, dos quais as sensações são apenas uma. Considerando-se que as sensações são, por si mesmas, o segundo estabelecimento da atenção plena, os outros cinqüenta caem na categoria do terceiro estabelecimento da atenção plena.

Cada vez que surge uma formação mental, podemos praticar o reconhecimento. Quando estamos agitados, dizemos: "estou agitado", e isso é suficiente para que a atenção plena se instale. Até sermos capazes de reconhecer a agitação como agitação, ela irá nos empurrar para cá e para lá, sem que saibamos o que está acontecendo nem por quê. A prática da atenção plena da mente não significa não ficar agitado. Significa apenas que quando estamos agitados temos consciência disso, porque a agitação tem um amigo dentro de nós, que é a atenção plena.

Mesmo antes da agitação se manifestar em nossa consciência, ela já faz parte da nossa consciência armazenadora sob a forma de uma semente. Todas as formações mentais estão latentes, sob a forma de sementes, na nossa consciência armazenadora. Algo feito por alguém faz regar a semente da agitação, e a agitação se manifesta em nossa consciência mental. Por isso, cada formação mental que surgir precisa ser reconhecida. Caso ela seja uma formação saudável, a atenção plena a cultivará. Se não for saudável, a atenção plena encorajará o seu retorno para nossa consciência armazenadora, para que permaneça ali, adormecida.

Podemos achar que a agitação é nossa, mas se pensarmos bem veremos que ela é herdada de toda a sociedade, por gerações e gerações de ancestrais. A consciência individual é feita da consciência coletiva, e a consciência coletiva, das consciências individuais. As duas coisas não podem ser separadas. Contemplando a consciência individual, tocamos a coletiva. Nossas idéias sobre beleza, bondade e felicidade, por exemplo, são as idéias da sociedade. Todos os invernos, os designers de moda nos dizem o que estará na moda na próxima primavera, e nós vemos suas criações pela lente da consciência coletiva.

Quando compramos um vestido da última moda, é porque estamos enxergando com os olhos da consciência coletiva. Alguém que vive na selva amazônica jamais gastaria tanto dinheiro para comprar um simples vestido, que nem sequer será considerado bonito. Quando produzimos uma obra literária, ela é feita tanto com a consciência coletiva como com a individual.
Costumamos falar na consciência mental e na consciência armazenadora como duas coisas diferentes, mas a consciência armazenadora é apenas a consciência mental em um nível mais profundo. Se considerarmos nossas formações mentais, veremos que elas têm raízes na consciência armazenadora. A atenção plena consegue olhar para as profundezas da consciência. Cada vez que uma das cinqüenta e uma formações mentais emerge, nós reconhecemos sua presença. Olhamos para ela, observando sua natureza impermanente e interdependente.

Esta prática tem o poder de nos liberar do medo, da tristeza e dos fogos que ardem dentro de nós. Se nossa atenção plena for capaz de acolher com carinho a alegria, a tristeza, e todas as nossas formações mentais, acabaremos enxergando, mais cedo ou mais tarde, suas raízes profundas. Cada passo e cada respiração realizados conscientes nos ajudam a enxergar as raízes das formações mentais. A atenção plena verte sua luz sobre as formações e nos ajuda a transformá-las.

(Do livro “A Essência dos ensinamentos de Buda”– Thich Nhat Hanh)

terça-feira, 11 de setembro de 2018

Nossa Verdadeira Casa

Você tem um lar? Você pode ser negro, amarelo, mulato ou branco; você pode vir de qualquer raça ou herança cultural. Pode voltar a cada noite para uma casa ou apartamento. Mas você tem um lar? Tem um lar verdadeiro onde se sinta confortável, em paz e livre?

Esta é uma questão para todos nós ponderarmos. Há brancos, cidadãos americanos, que têm vivido nos Estados Unidos por gerações, mas ainda não têm a sensação de pertencimento. Não estão felizes com a questão militar, com a economia e a política de seu país, e querem sair porque não se sentem confortáveis morando lá. O mesmo é verdade no Vietnã. Há muitos vietnamitas que não sentem que o Vietnã é seu verdadeiro lar, não se sentem amados ou entendidos por outros que dividem a mesma raça, o mesmo país, os mesmos ancestrais. Eles não vêem um futuro para eles mesmos, querem abandonar o país.

Quais dentre nós têm um verdadeiro lar? Quem se sente confortável no seu país? Eu tenho um lar que ninguém pode tirar de mim, e me sinto confortável nele. Você pode estar surpreso por esta resposta, afinal eu estou exilado do Vietnã há mais de 40 anos. Mas a verdade é que embora eu tenha sido afastado da minha terra natal, eu não tenho sentido dor. Eu não sofro porque achei meu verdadeiro lar. Ele não está na França onde Plum Village está localizado. Meu verdadeiro lar não está nos Estados Unidos. Meu verdadeiro lar não é limitado por um lugar ou tempo. Meu verdadeiro lar não fica no Vietnã, África, Palestina ou Israel.

Meu verdadeiro lar não pode ser descrito em termos de localização geográfica ou em termos de cultura. É muito simples dizer o que sou apenas em termos de nacionalidade ou cultura. No meu caso, eu não tenho um passaporte vietnamita. Portanto, legalmente falando, eu não sou vietnamita. Eu tenho elemento da cultura francesa, chinesa, indiana e mesmo da cultura dos nativos americanos em mim – e como você pode tirá-los de mim? Você não pode. Se você tirá-los de mim eu não seria a pessoa que sou hoje. Não há uma coisa chamada raça vietnamita. Olhando para dentro de mim você pode ver elementos melanésios, indonésios, mongóis e africanos. A raça vietnamita é feita apenas de elementos não-vietnamitas. Se você sabe isso, é livre. O cosmos inteiro se juntou para te ajudar a se manifestar. Em você, todo o cosmos pode ser achado. (...)

Quando temos o sentimento que não somos aceitos, que não pertencemos a nenhum lugar e não temos identidade, é quando temos a chance de penetrar na realidade e achar nosso verdadeiro lar.

As pessoas acham que eu sofri porque não me permitiram voltar ao Vietnã. Mas não foi o caso. Quando eu finalmente voltei para visitar o Vietnã depois de 40 anos, era uma alegria ser capaz de oferecer ensinamentos aos monges, monjas e leigos e falar aos artistas, escritores e outros. Quando eu tiver que voltar para a França, eu não sofri.

A expressão “eu cheguei, estou em casa”, é a incorporação da minha prática. Expressa meu entendimento dos ensinamentos do Buda. É a nata da minha prática. Desde que eu encontrei meu verdadeiro lar, não sofro mais. O passado não é mais uma prisão para mim. O futuro não é mais uma prisão para mim. Sou capaz de viver no aqui e agora e tocar meu verdadeiro lar. Sei que o futuro é disponível através do presente; isto foi o que eu encontrei. E quando tocamos o momento presente profundamente, tocamos o passado; e se soubermos como lidar com o momento presente apropriadamente, curamos o passado.

Na tradição budista, uma sessão de meditação começa com o som do sino. Um pedaço de madeira chamado “convidador” toca o sino e o convida a soar. Este som é um gentil lembrete para voltarmos para o lar. Em Plum Village, cada vez que ouvimos o som do sino, silenciosamente recitamos este poema: “Eu ouço, eu ouço, este maravilhoso som me leva de volta ao meu verdadeiro lar.” Nosso verdadeiro lar é o momento presente, seja o que for que esteja acontecendo exatamente aqui e exatamente agora.

Nosso verdadeiro lar é um lugar sem discriminação, um lugar sem ódio.  Nosso verdadeiro lar é o lugar onde não mais procuramos, não mais desejamos, não mais lamentamos. Nosso verdadeiro lar não é o passado; não são os objetos de nossos lamentos, nossa melancolia, nossas saudades ou remorsos. Nosso verdadeiro lar não é o futuro; não é o objeto de nossas preocupações, esperanças e medos. Nosso verdadeiro lar reside exatamente no momento presente. Se pudermos praticar de acordo com os ensinamentos do Buda e retornar para este exato momento, aqui e agora, então a energia da plena consciência nos ajudará a estabelecer nosso verdadeiro lar no momento presente.

De acordo com os ensinamentos do Buda, a liberação reside no momento presente. Todos os seus ancestrais espirituais e de sangue estão presentes em nós se soubermos como voltar a este momento. Quando podemos sentir estes ancestrais conosco no momento presente, não mais nos preocupamos ou sofremos. Paramos de tentar achar nosso lar no espaço, no tempo, território, nacionalidade, cultura ou raça e finalmente encontramos a felicidade.

Eu já encontrei meu verdadeiro lar. Meu verdadeiro lar é a vida. É por isso que não sofro. Não estou procurando ou esperando nada mais e também não estou mais fugindo de nada. Encontrei minha felicidade. Tomei refúgio no momento presente, no aqui e agora. Gostaria que todos nós, independentemente da cor de nossas peles – preto, branco, mulato ou amarelo – fossemos capazes  de retornar ao momento presente, penetrá-lo com profundidade e descobrir nosso verdadeiro lar.

O Buda nos oferece práticas maravilhosas, por isso podemos por fim às nossas preocupações, nosso sofrimento, nossa busca, nossos lamentos e assim poder entrar em contato com as maravilhas da vida no momento presente. Então podemos abrir nossos braços para abraçar todas as pessoas e todas as espécies sem discriminação e todos podem ser objeto de nosso amor. Quando formos capazes de fazer isso, teremos um lar. Nosso verdadeiro lar não é uma idéia abstrata. É uma realidade sólida que podemos tocar com nossos pés, com nossas mãos e com nossa mente a cada momento e que podemos viver a cada momento. Se soubermos isto, então ninguém poderá tirar de nós nosso verdadeiro lar. Mesmo se pessoas ocuparem seu país, ou nos puserem na prisão, ainda teremos nosso verdadeiro lar, e eles nunca poderão nos tirar isso.

Eu falo estas palavras para os jovens e para aqueles de vocês que sentem que nunca tiveram um lar. Eu falo estas palavras para os pais que sentem que o antigo país não é mais sua casa e que o novo país não é ainda seu lar, que vêem seus filhos sofrendo, procurando seu verdadeiro lar, enquanto nem mesmo vocês encontraram o seu. Esta prática é tal que você pode encontrar seu verdadeiro lar e ajudar seus filhos a acharem o deles. Isto é o que eu desejo para você.


(Do livro “Together we are one”– Thich Nhat Hanh)
(Traduzido por Leonardo Dobbin)