quarta-feira, 14 de março de 2018

Sem Objetivo

No  Ocidente, somos muito direcionados para os objetivos. Sabemos onde queremos ir e direcionamos nossas forças para chegar lá. Isso pode ser útil, mas muitas vezes nos esquecemos de apreciar também o caminho.

Existe no budismo uma palavra que significa "ausência de desejo" ou "ausência de objetivo". A idéia consiste em você não colocar um alvo à sua frente e sair correndo atrás dele, porque tudo já está aqui em você mesmo. Enquanto praticamos a meditação andando, não tentamos chegar a lugar nenhum. Damos apenas passos felizes, serenos. Se não pararmos de pensar no futuro, no que queremos realizar, perderemos nossos passos. O mesmo vale para a meditação sentada. Nós sentamos só para apreciar o estar sentado. Não nos sentamos a fim de alcançar um objetivo. Isso é de importância vital. Cada momento da meditação sentada nos traz de volta à vida, e nós devemos nos sentar de forma tal que nos sintamos bem o tempo todo. Quer estejamos chupando uma tangerina, tomando uma xícara de chá, ou caminhando em meditação, deveríamos fazê-lo "sem objetivo".

Muitas vezes dizemos a nós mesmos, "Não fique só aí sentado, faça alguma coisa!" Quando praticamos a plena consciência, porém, descobrimos algo inusitado. Descobrimos que o contrário pode ser ainda mais valioso: "Não fique aí fazendo alguma coisa. Sente-se!" Precisamos aprender a parar de vez em quando a fim de ver com nitidez. A princípio, "parar" pode parecer uma "resistência" à vida moderna, mas não se trata disso. "Parar" não é só uma reação; é um estilo de vida. A sobrevivência da humanidade depende de nossa capacidade de desacelerar. Temos mais de 50.000 bombas atômicas, e mesmo assim não conseguimos parar de fabricar mais. "Parar" não significa um basta ao que é negativo, mas também permitir que se realize uma cura positiva. É esse o propósito da nossa prática — não evitar a vida, mas experimentar e comprovar que a felicidade é possível agora e também no futuro.

A base da felicidade é a plena consciência. A condição fundamental para ser feliz é ter a consciência de que se é feliz. Se não percebermos que estamos felizes, não estaremos realmente felizes. Quando estamos com dor de dente, nos damos conta de que não ter dor de dente é maravilhoso. Mas, mesmo assim, não nos sentimos felizes quando estamos sem dor de dente. Esquecemos o quanto é agradável não ter dor de dente. Há tantas coisas que são agradáveis, mas que não sabemos apreciar se não praticamos a plena consciência. Quando estamos com a mente alerta, valorizamos essas coisas e aprendemos a protegê-las. Ao cuidar bem do momento presente, estamos cuidando bem do futuro. Trabalhar pela paz do futuro é trabalhar pela paz no momento presente.

Nossos sentimentos desempenham um papel muito importante por dirigirem todos os nossos pensamentos e ações. Existe em nós um rio de sentimentos, no qual cada gota d'água é um sentimento diferente e cada um depende de todos os outros para sua existência. Para observar esse rio, sentamo-nos à sua margem e identificamos cada sentimento à medida que ele vem à tona, passa por nós e desaparece.

Há três tipos de sentimentos — agradáveis, desagradáveis e neutros. Quando temos um sentimento desagradável, podemos querer afastá-lo. O mais eficaz é voltar à nossa respiração consciente e apenas observá-lo, identificando-o em silêncio para nós mesmos. "Inspirando, sei que há um sentimento desagradável em mim. Expirando, sei que há um sentimento desagradável em mim." Chamar o sentimento pelo seu nome, "raiva", "tristeza", "alegria" ou "felicidade", nos ajuda a identificá-lo com clareza e reconhecê-lo em maior profundidade.

Podemos usar nossa respiração para entrar em contato com nossos sentimentos e aceitá-los. Se nossa respiração for leve e tranqüila — resultado natural da respiração consciente — nossa mente e nosso corpo irão lentamente se tornando leves, tranqüilos e claros. E da mesma forma nossos sentimentos. A observação plenamente consciente se baseia no princípio da "não-dualidade"; nosso sentimento não está separado de nós nem foi causado apenas por algo externo a nós. Nosso sentimento é nosso eu, e temporariamente nós somos esse sentimento. Não submergimos nesse sentimento, nem nos aterrorizamos com ele, tampouco o rejeitamos. Nossa atitude de não nos agarrarmos aos nossos sentimentos e de tampouco rejeitá-los é a atitude de desapego, uma parte vital da prática da meditação.

Se encararmos nossos sentimentos desagradáveis com cuidado, afeição e não-violência, podemos transformá-los naquele tipo de energia que é saudável e que tem a capacidade de nos nutrir. Através da observação consciente, nossos sentimentos desagradáveis podem ser muito esclarecedores para nós, proporcionando-nos revelações e compreensão a respeito de nós mesmos e da nossa sociedade.

O primeiro passo ao lidar com os sentimentos é reconhecer cada sentimento no instante em que surge. O meio para isso é a plena consciência. No caso do medo, por exemplo, você recorre à plena consciência, olha para o medo e o reconhece como medo. Você sabe que o medo brotou de você mesmo e que a plena consciência também brotou de você mesmo. Os dois estão em você, não em luta, mas cuidando do outro.

O segundo passo consiste em se tornar uno com o sentimento. Melhor não dizer, "Vá embora, Medo. Não gosto de você. Você não é eu." Muito mais eficaz é dizer, "Oi, Medo. Como é que você está hoje?" Em seguida, você pode estimular esses dois aspectos, a plena consciência e o medo, a se cumprimentarem como amigos e a se unirem. Isso pode parecer assustador, mas, como você já sabe que você é mais do que seu medo, não é preciso se amedrontar. Desde que sua mente esteja alerta, ele fará companhia ao seu medo. A prática fundamental é nutrir a plena consciência com a respiração consciente, para mantê-la alerta, cheia de vida e força. Embora no início sua plena consciência possa não ser muito potente, se você a alimentar, ela se tornará mais forte. Contanto que a sua consciência esteja plena e presente, você não será submerso pelo medo. Na realidade, você começará a transformá-lo no exato instante em que dentro de si der à luz a percepção.

O terceiro passo é o de acalmar o sentimento. Como a consciência plena está cuidando bem do seu medo, ele começa a acalmar-se. "Inspirando, acalmo as atividades do corpo e da mente." Você acalma seu sentimento só por estar com ele, como uma mãe segurando ternamente o filhinho que chora. Ao sentir a ternura da mãe, o neném se acalma e pára de chorar. A mãe é a sua mente alerta, nascida das profundezas da sua consciência, e ela tratará do sentimento da dor. A mãe que segura o bebê forma uma unidade com ele. Se a mãe estiver pensando em outras coisas, a criancinha não se acalmará. A mãe tem de abandonar as outras coisas e apenas segurar seu filhinho. Por isso, não evite seu sentimento. Não diga, "Você não é importante. Você é só um sentimento." Passe a formar uma unidade com ele. Você pode dizer, "Expirando, acalmo meu medo."

O quarto passo é largar o sentimento, soltá-lo. Graças à sua calma, você está à vontade, mesmo em meio ao medo; e sabe que esse medo não vai crescer e se transformar em algo esmagador. Quando você se descobre capaz de tomar conta do seu medo, ele já está reduzido a um mínimo, tornando-se mais brando e menos desagradável. Agora você pode sorrir para ele e deixá-lo partir, mas por favor pare por aqui. Acalmar e largar um sentimento são apenas curas para os sintomas. Você agora tem a oportunidade de se aprofundar e trabalhar na transformação da raiz do seu medo.

O quinto passo é olhar profundamente. Você examina em profundidade o seu bebê — seu sentimento de medo — para ver o que está errado, mesmo depois que o bebê parou de chorar, mesmo depois que o medo se foi. É impossível segurar uma criança no colo o tempo todo. Por isso, você deve examiná-la para ver a causa do que está errado. Com esse exame, você será o que o ajudará a começar a transformar o sentimento. Você perceberá, por exemplo, que seu sofrimento tem muitas causas, intensas e externas ao seu corpo. Se há algo de errado em volta dele, se você conserta a situação, com carinho e cuidado, ele se sentirá melhor. Ao examinar seu bebê, você verá os elementos que o estão fazendo chorar. Ao vê-los, você saberá o que fazer e o que não fazer para transformar o sentimento e se sentir livre.

Esse processo é semelhante ao da psicoterapia. Em companhia do paciente, o terapeuta observa a natureza da dor. Muitas vezes, o terapeuta pode revelar causas de sofrimento que se originaram da forma pela qual o paciente encara a vida, das opiniões que ele tem sobre si mesmo, sobre a sua cultura e o mundo em geral. O terapeuta examina esses pontos de vista e essas opiniões com o paciente, e juntos eles colaboram para libertá-los daquele tipo de prisão em que estava. No entanto, o esforço do paciente é crucial. O professor deve trazer à luz o professor que existe dentro do aluno; e o psicoterapeuta deve trazer à luz o psicoterapeuta que há no íntimo do seu paciente. O "psicoterapeuta interno" do paciente poderá então trabalhar em tempo integral de uma forma muito eficaz.

O terapeuta não trata do paciente simplesmente lhe repassando um outro conjunto de opiniões. Ele tenta ajudar o paciente a perceber que tipos de idéias e de crenças causam o seu sofrimento. Muitos pacientes querem se ver livres dos sentimentos dolorosos, mas não querem se livrar das opiniões, dos pontos de vista que são as verdadeiras raízes dos seus sentimentos. Portanto, o terapeuta e o paciente têm que trabalhar juntos para ajudar o paciente a ver as coisas como elas são. O mesmo vale para quando recorrermos à plena consciência para transformar nossos sentimentos. Depois de reconhecermos o sentimento, de nos tornarmos unos com ele, de o acalmarmos o de o largarmos, podemos examinar suas causas em profundidade. Elas muitas vezes se baseiam em percepções incorretas. Assim que compreendemos as causas e a natureza dos nossos sentimentos, eles começam a se transformar.

(Do livro “Paz a cada passo” – Thich Nhat Hanh)

sexta-feira, 9 de março de 2018

Perdão e Tentação

As "ofensas" são os erros que cometemos contra nossas pessoas queridas. Dissemos alguma coisa, fizemos alguma coisa ou pensamos alguma coisa. Nossas palavras, ações ou pensamentos fizeram a outra pessoa sofrer, e estas são as graves ofensas que cometemos. Como podemos viver de modo a perdoar todo dia os outros? Nós perdoamos porque eles não têm bastante mente alerta, bastante compreensão, bastante amor e porque ainda têm percepções erradas. Temos então de ser capazes de engolir nosso ressentimento, porque também nós cometemos erros da mesma natureza contra outras pessoas. Se quisermos que nosso Pai do céu nos perdoe, também devemos perdoar aos outros os erros, as ofensas que acumularam.

Em nossa vida, podemos ter cometido erros com relação a nossos pais, irmãos, irmãs e amigos e queremos ser perdoados. Assim devemos perdoar também os defeitos, as fraquezas, as grosserias, em primeiro lugar dos nossos familiares, de nossa família de sangue. Isto é uma prática, isto é uma oração que executamos com nossas ações e com nosso modo de vida. Lembremo-nos que foi o próprio Jesus que ensinou estas palavras a seus discípulos.

Já devemos ter rezado muito, mas talvez não tenhamos aprendido a arte mais profunda da oração. Quando temos um problema, invocamos o Buda, invocamos os bodhisattvas, invocamos a Deus para nos ajudar. Não há nada de errado nisto. Temos o direito de fazê-lo. Mas este tipo de oração não é feito com as palavras da maior das orações, isto é, rezar de tal forma a irmos além do nascimento e da morte.

Muitas vezes, quando rezamos, é para pedir a Deus, ou a Buda, que faça alguma coisa que nós não podemos: "Senhor Deus, meu ente querido N. está numa situação difícil. Por favor, livrai-o dessa condição perigosa". Enviamos a Deus mensagens como esta: "Senhor, meu irmão está com câncer. Por favor, cure-o". Em princípio, Deus sabe o que deve fazer. Mas em geral nós queremos simplesmente ditar a Deus o que ele deveria fazer. Procedemos como se Deus não soubesse o que é necessário, como se tivéssemos de dizer a ele claramente o que fazer. Mas, na verdade, esta mente una é bem mais sábia do que nós. Mais engraçado ainda é que às vezes barganhamos com o Buda ou com Deus: "Senhor Buda, se me concederes isto, vou raspar minha cabeça", ou: "serei vegetariano por três meses". Às vezes somos até mais específicos quanto ao preço: "Se meu filho, ou minha filha, passar no exame, farei oferendas a dez templos".

Mais de dez anos atrás ouvi minha querida amiga Irmã Chan Khong rezando de maneira semelhante. Ela dizia: "Senhor Buda, como pode ser possível para Thây viver mais tempo? Se Thây puder viver um longo tempo, muitas pessoas vão beneficiar-se de seus ensinamentos". (Thây era como me chamavam os meus alunos e amigos; significa "mestre" em vietnamita.) Mesmo nestas palavras da oração há uma idéia de barganha. Há muitas pessoas que querem gozar do benefício dos verdadeiros ensinamentos e da prática. O coração da Irmã Chan Khong era muito grande quando fez este tipo de oração. Achava que o ponto fraco do Buda era que ele queria que seus ensinamentos durassem por muito tempo e que muitas pessoas fossem libertadas por eles; por isso esses parâmetros: "Senhor Buda, se permitires que meu mestre viva por mais dez anos, inúmeras pessoas serão capazes de se beneficiar dos ensinamentos que ele dá". Isto não é uma forma de barganha?

Isto não é tão óbvio como a oração: "Se meu filho, ou minha filha, passar no exame, eu farei oferendas a dez templos", ou: "Eu rasparei minha cabeça"? Isto soa como se, quando raspamos a cabeça, Buda se beneficiará muito.

Se olharmos um pouco mais fundo na oração da Irmã Chan Khong, veremos algo que é muito encantador, mas que ela na verdade não disse: isto é, ela pensa que seu mestre é seu lugar de refúgio e que ela ainda não está sólida o suficiente, de modo que, se ele não existir mais, ela sentirá falta de algo. Por isso também a Irmã Chan Khong tem o mesmo estado de espírito de todas as outras monjas mais jovens, ela quer que seu mestre viva o maior tempo possível. Nesta oração há um pouco de egoísmo,

O desejo de não querermos ficar sozinhos(as), sem um mestre. Queremos que nosso lugar de refúgio esteja aqui o maior tempo possível. Não é verdade que os discípulos querem que seus mestres vivam o maior tempo possível de modo que muitas pessoas se possam beneficiar de seus ensinamentos e que todos os discípulos continuem a ter um lugar de refúgio?

Como é triste quando seu mestre morre tão logo você seja consagrado monge ou monja! Há, portanto, algo de simpático nas palavras desta oração e não há nada de errado nela. Mas se soubermos como olhar profundamente quando rezamos, seremos capazes de ver o que está acontecendo nas profundezas de nossa consciência. Rezar assim pode ser muito comovente, mas devemos olhar mais profundamente a fim de ver com clareza. Se formos budistas, cristãos ou de outra tradição religiosa, temos em nossa oração uma tendência geral de barganhar com Deus, com o Buda, ainda que barganhemos de maneira muito agradável?

"Tentação" significa nossa tendência à ganância, raiva, amargura, desconfiança, dúvida e luxúria. Alguns cristãos chamam isto de tentações do demônio. No budismo, chamamos isto as ações perniciosas do corpo, da linguagem e da mente, e as tentações dos cinco sentidos: visão, audição, olfato, paladar e tato. O budismo tem outra maneira de descrever a tentação: os três destinos perniciosos. Há o destino do reino do espírito faminto. Um espírito faminto é alguém perpetuamente com fome de compreensão e de amor, mas incapaz de recebê-los quando lhe são oferecidos. Há o destino da região do inferno. No budismo, estamos na região do inferno, quando ardemos de raiva, ódio, cobiça, inveja e outros estados perniciosos da mente. A tentação faz parte do destino do reino animal. É verdade que os seres humanos também são animais, mas o reino animal é o mundo daqueles que simplesmente seguem seus desejos instintivos e cujo coração de amor e de compreensão jamais teve chance de se desenvolver.

Minha experiência é que somos mais facilmente tentados nessas esferas quando estamos sós. Quando estamos com nossa comunidade, com nossos irmãos e irmãs, somos protegidos pela energia da sangha e não será tão fácil cair em tentação. E, assim, a oração pode traduzir-se em ação e não consistir apenas de palavras. Quando temos uma mente alerta, quando temos uma sangha, estamos numa posição bem mais sólida e não precisamos cair em tentação.

Quando o Buda ainda estava neste mundo, as pessoas começavam sua prática recitando: "Eu me refugio no Buda". Refugiar-se significa ligar-se ao que existe de mais saudável em nós e que nos apóia em nossas aspirações mais profundas. As pessoas não esperaram até o Buda morrer para praticar o "refugiar-se no Buda". Também naquela época já começaram a recitar: "Eu me refugio na sangha". Monges, monjas e pessoas leigas sentavam-se juntos e rezavam. Quando monges, monjas e pessoas leigas se sentam juntos e rezam, não são apenas mais capazes de resistir à tentação, mas também aumentam e fortalecem sua energia da mente alerta.

Hoje em dia, muitas pessoas vivem nas regiões do inferno das drogas, da solidão e do desespero. Há também aqueles que criam, de vários modos diferentes, o inferno para as pessoas ao redor delas. E há também aqueles que matam, roubam, seqüestram e estupram. Há tantos espíritos famintos vagando por aí, com fome de amor, de compreensão, de uma família, de um ideal.

Rezamos para não cair nesses três caminhos perniciosos. Nossa oração pode ser bem concreta, assim que tivermos descoberto um caminho a trilhar, assim que nos tivermos refugiado na sangha e assim que soubermos como seguir praticando um caminho espiritual. O desejo mais profundo nesta oração é afastar-se dos caminhos da tentação e animar-se a seguir nosso caminho espiritual. Isto é um desejo que todos nós podemos entender.

(Do livro “A energia da oração” – Thich Nhat Hanh)