segunda-feira, 30 de abril de 2018

Os Cinco Reinos da Paz

Temos nosso próprio território dentro de nós, que é composto de cinco reinos – nosso corpo, sentimentos, percepções, formações mentais e consciência. Temos que levar paz para nosso corpo e remover suas aflições, tensões e dores. Há também muitas tempestades, aflições e dores no reino das emoções. Temos que aprender como levar paz para o território dos nossos sentimentos e emoções.

Quando olho para minha caneta, tenho uma percepção dela. Se minha percepção corresponde à realidade da caneta ou não é uma questão verdadeira – porque vivemos com muitas percepções errôneas. Acreditamos que somos os únicos que sofrem, que os outros estão nos fazendo sofrer e que eles absolutamente não sofrem. Este é um tipo de percepção errada. Se tivermos tempo para inspirar e expirar e tivermos paz em nós mesmos, poderemos ver que as outras pessoas também sofrem assim como nós e que elas precisam ser ajudadas e não punidas.

È por isso que a paz não é possível sem remover os elementos das percepções errôneas. Quando nossas percepções nascem da raiva e do medo, não podem ser chamadas de percepções corretas. Nossas percepções errôneas fazem surgir o medo, raiva e desespero que nos levam a cometer atos de violência, punição e matança. É por isso que é muito importante praticar as meditações sentada e caminhando de forma que possamos levar paz ao reino de nossas percepções e assim remover os elementos que levam ao erro.

O quarto reino é o das formações mentais. Uma formação é algo que se manifesta quando muitas condições se juntam. Uma flor é uma formação física – a chuva, o sol, a terra, tempo e espaço se juntaram para a flor se manifestar. Nosso corpo é uma manifestação psicológica. Todas as formações são impermanentes e estão constantemente mudando. Nosso medo, raiva, discriminação, esperança, alegria e plena atenção são todas formações mentais. Na tradição budista identificamos 51 formações mentais. Quando contemplamos nossa mente, não estamos olhando para um espaço claro e vazio, estamos olhando para nossas formações mentais.

Finalmente há o reino da consciência. Temos que voltar ao lar de nossa consciência porque nossa consciência é a base de tudo. Nosso corpo, sentimentos, percepções e formações mentais nasceram da base de nossa consciência. Não apenas nosso corpo contém nossa consciência, mas nossa consciência contém nosso corpo.

Eu estou sólido, eu estou livre. O que significa estar sólido? Significa ficar no momento presente. Temos a tendência a ser empurrados de volta ao passado. Lamentamos algo ou sentimos culpa e nos perdemos nisso. Não somos sólidos porque somos vítimas do passado. Não somos capazes de viver no momento presente porque o passado se tornou um fantasma, sempre nos empurrando para trás, de volta para ele mesmo. Há aqueles que apenas pensam no passado, que não são capazes de desfrutar a vida no momento presente, que não são livres e sólidos.

Há também aqueles que estão presos nas preocupações, medos e incertezas sobre o futuro. Estas preocupações e medos não nos permitem estar no momento presente e tocar a vida. Quando dizemos, “eu cheguei, estou em casa”; ”você não pode me pegar, estou no aqui e agora”; ou “sou o mestre de mim mesmo”, então nos tornamos sólidos. “Eu estou sólido” não é um pensamento positivo. Se você for capaz de chegar e se sentir em casa, então se torna sólido naturalmente.

Isto é o reconhecimento de que você está aqui e agora, que está em casa. Isto não é mais esperança, é uma realidade, e você se torna consciente que é mais sólido. Se gastar três minutos andando, chegando e se sentindo em casa em cada momento, então a solidez se tornará uma realidade, um fato. Você sabe se você é sólido ou não. É sólido quando está plenamente estabelecido no aqui e agora. O passado não pode te pegar e o futuro não pode te pegar. É por isso que dizemos, “Eu sou solido, eu sou livre.”

Livre de que? Livre do passado, das minhas preocupações, do meu medo. É por isso que solidez e liberdade não são duas coisas distintas. Quando você é sólido, é livre, quando você é livre, é sólido. É como o aqui e agora. Solidez e liberdade são a fundação da sua paz e alegria. Cada passo consciente que fazemos ajuda a cultivar mais solidez e liberdade. Seja você mesmo, seja livre, se estabeleça no aqui e agora. Toque a vida profundamente e receba a nutrição e paz que você precisa tanto.

A onda está agora descansando na água. Você está descansando na dimensão última, em Alá, em Deus, na sua budeidade. Este é o reconhecimento que você está tocando a dimensão última no aqui e agora. Não é uma questão de tempo. A dimensão última é a sua fundação, sua base. Ao andar e respirar desse modo, você estará sempre em contato com Deus – não como uma noção, não como uma ideia, mas como uma realidade. Você pode tocar a Deus ao tocar uma flor, ao tocar o ar ou tocando outra pessoa. Fora dessas coisas não há Deus. Se você remover todas as ondas não sobrará água. Tocar as maravilhas da vida em você e ao seu redor significa tocar a dimensão última.

Quando você fizer uma xícara de chá, desfrute o momento. Pegue sua xícara conscientemente e sorria para ela. Se estiver cheio de ideias e pensamentos, não poderá fazê-lo. Não-pensamento torna possível que você pegue a xícara. Você não pensa em nada. Está apenas consciente que está pegando a xícara. Você coloca um saquinho de chá na xícara e se refugia inteiramente no ato de colocar o saquinho na xícara. Não pense sobre o passado ou sobre o futuro. Desfrute enquanto pega sua xícara e coloca o saquinho. Sorria pra eles. Você está em contato com as maravilhas da vida. Fique com elas; não corra atrás da vida. Pegue sua xícara com todo o seu corpo e mente.

Eu aprendi com meu mestre como acender incenso quando era um noviço de 17 anos. Ele disse, “Meu filho, inspire, peque o incenso e olhe para ele. ‘Este é um incenso.’  Coloque sua mão esquerda sobre a mão direita ao segurar o incenso e depois acenda-o. Você coloca 100% de seu corpo no ato de acender o incenso. Quando coloca o incenso no suporte, faça da mesma maneira, com todo o seu corpo e mente. Você está concentrado durante todo o tempo em que acende e oferece o incenso.

Plena atenção é o tipo de energia que pertence ao reino das formações mentais. É uma boa formação mental – uma muito importante. Quando você inspira, se sabe que está inspirando e pode tomar refúgio inteiramente na sua inspiração, isto é chamado de plena atenção na respiração. Sua inspiração se torna o único objeto de sua mente. Quando você inspira, não pensa em absolutamente nada. Você apenas está com sua inspiração – cem porcento.

Quando você anda, se sabe que está dando um passo e está plenamente consciente de cada passo, isto é chamado de plena atenção no caminhar. Quando bebe chá, se fica com seu chá cem porcento e não se permite ser empurrado de volta ao passado, ao futuro ou aos seus pensamentos, então está praticando plena atenção no beber o chá.

Plena atenção é a energia que te ajuda a saber o que está acontecendo aqui e agora, que te ajuda a reconhecer o momento presente como seu verdadeiro lar e saber que as maravilhas da vida estão aqui. Inspirando, sei que o brilho do sol está presente. Expirando, sei que as folhas do outono estão caindo. Plena atenção é a energia que nos ajuda a estar consciente do que está acontecendo.

Na França há um comercial de iogurte que diz “Coma devagar, assim vai durar mais”. Se você estiver correndo, leva apenas alguns segundos para comer cada colherada devagar e permanecer com seu iogurte. Se pergunte se você é capaz de estar em paz e alegre enquanto está bebendo seu chá. Desafie-se hoje. Não perca sua atenção de forma que você possa estar inteiramente com seu chá de momento que começa até que tenha terminado de tomá-lo. Permita-se tempo suficiente para beber seu chá de forma que a paz e relaxamento sejam possíveis. Se livre das preocupações, medos e desespero. Não permita que eles estraguem sua vida. Se você tem uma chance de beber uma xícara de chá porque estragar isso com seus medos e incertezas? Se você for bem sucedido ao beber a xícara de chá, é uma vitória da paz. Paz para o indivíduo, para nós, para seu país e para o mundo.

Quando ando conscientemente daqui até ali, desfruto de minha inspiração, expiração e dos meus passos. Você pode desfrutar de cada momento de sua vida quando está atento e concentrado. Quando estiver concentrado, mergulhe profundamente no que está presente. Quando você contempla uma flor, se tiver atenção e concentração, entrará em contato profundamente com ela, que é uma maravilha da vida. Quando segura seu chá, se tiver atenção e concentração suficientes, você entrará em contato profundamente com ele e desfrutará de paz, alegria e liberdade que é oferecida a você ao beber seu chá. Liberdade é a nossa prática. Se você tiver alguma liberdade e solidez trazida a você pela sua atenção e concentração, paz e alegria são possíveis.

Você pode fazer o mesmo ao comer seu café da manhã. Mesmo que seu café da manhã não seja extraordinário, a alegria trazida a você por ter tempo suficiente para comê-lo pode ser grande. Se você souber como se sentar como uma pessoa livre, então vinte ou trinta minutos comendo sua refeição é um tempo para você desfrutar de paz. Porque você tem que se preocupar ou ter medo enquanto come seu café da manhã? Porque tem que correr? Muitos de nós não tomam seus cafés da manhã apropriadamente antes de ir trabalhar. Permitimos que nossa mente seja levada pelas nossas preocupações sobre o que acontecerá durante o dia. Não estamos com nosso café da manhã, não tomamos refúgio nele.

(Do livro “Peace begins here” – Thich Nhat Hanh)
(Traduzido por Leonardo Dobbin)

segunda-feira, 23 de abril de 2018

Tomar Conta de Nós Mesmos

Temos que aprender como tomar conta de nós mesmos ao longo do dia enquanto caminhamos, sentamos, comemos ou escovamos nossos dentes. Nosso lar é composto pelo nosso corpo, sentimentos, emoções, percepções e consciência. O território de nosso lar é largo e somos o monarca responsável por ele. Deveríamos saber como retornar ao lar e tomar conta do nosso corpo e mente. Plena atenção pode ajudar.

Suponha que tenhamos dor, tensão e estresse no nosso corpo. O primeiro passo é voltar a ele e tomar conta. Podemos fazer isso tomando um momento para ficarmos imóveis e dizer:

Inspirando, estou consciente do meu corpo inteiro.
Expirando, deixo ir embora todas as tensões no meu corpo.

Depois de sabermos como tomar conta de nosso corpo, aprendemos como tomar conta de nossos sentimentos e nossas emoções. Com plena atenção podemos trazer a tona sentimentos de alegria e felicidade. Quando uma emoção forte surge, deveríamos saber como tomar conta dela. Podemos repetir este pequeno poema, chamado gatha, para nos ajudar a cuidar dessas emoções.

Inspirando, estou consciente do sentimento doloroso em mim.
Expirando, estou abraçando este sentimento com ternura.

Não tente cobrir este sentimento através do consumo. Muitos de nós tentaríamos evitar nossa dor, afogando o sentimento com filmes, internet, livros, álcool, comida, compras e conversas de forma que não tenhamos que sentir o nosso sofrimento. No final, isso apenas torna a situação pior.

O Buda disse que nada pode sobreviver sem comida. Se nossa dor, tristeza e medos ainda estão presentes, é porque continuamos a alimentá-los. Uma vez que tenhamos reconhecido e abraçado nossa dor, tristeza, medo e encontrarmos algum alívio, podemos continuar a praticar o olhar em profundidade para a natureza da nossa dor de forma a reconhecer suas raízes. Podemos reconhecer que tipos de nutrientes trouxeram nosso mal-estar, medo e depressão.

Se sofremos de depressão, significa que temos vivido e consumido de tal forma que torna a depressão possível. O Buda disse que se olharmos profundamente no que veio a ser, nominalmente nosso mal-estar, e reconhecer a fonte do nutriente que a trouxe a tona, já estamos no caminho da emancipação.

Nossos filhos podem consumir muita violência, medo e desejo. Quando eles vêem televisão, testemunham milhares de atos de violência que fazem as sementes de violência, desejo e medo neles crescer. Agora há muita violência nos jovens e eles não sabem como lidar com suas emoções e sofrimento. Nós, pais e educadores, deveríamos ser capazes de ajudá-los a lidar com seus medos, raiva e violência.

A população da França não é muito grande, mas mesmo assim a cada ano doze mil jovens cometem suicídio. Eles são vítimas de emoções fortes como raiva, medo e desespero. Na escola não ensinam a eles como lidar com essas emoções fortes. É muito importante que nós, pais e professores, possamos aprender como lidar com as nossas emoções de forma que possamos ajudar aos jovens em casa e na sala de aula a fazer o mesmo.

Consumimos de tal forma que nosso medo, raiva e desespero cresceram e ficaram grandes, portanto o consumo consciente é a resposta e é nossa prática. Deveríamos consumir de tal forma que previna que os elementos negativos em nós sejam nutridos.

Amor também não pode sobreviver sem comida. Se não alimentarmos nosso amor, ele irá morrer algum dia. É por isso que é muito importante reconhecer que tipo de alimentos precisamos para nutrir as coisas boas em nós. Podemos consumir apenas essas coisas que desenvolvem nosso entendimento, nossa compaixão e nosso amor.

Aqui estão práticas que você pode aplicar em sua vida diária para fortalecer a energia da plena atenção, reduzir a tensão e nutrir a alegria. Você pode começar devagar, aplicando apenas uma prática na sua vida diária e gradualmente aumentando o número. Você não precisa praticar a plena atenção perfeitamente antes que possa compartilhar com as crianças. Quando você começar a praticar já começa a se transformar, e o fruto da sua transformação – mesmo que seja bem pequeno, irá beneficiar seus filhos, seus alunos ou os jovens com os quais você trabalha.

Primeira prática: Estabelecer uma rotina diária de plena atenção

É muito útil separar cinco a dez minutos a cada dia para a respiração consciente, durante a manhã ou à noite. Tente praticar na mesma hora todo dia em um lugar que apóie sua calma e concentração. Você pode sentar em uma cadeira ou numa almofada no chão. Sente-se confortavelmente com suas costas retas, mas relaxadas. Você pode fechar seus olhos ou mantê-los semi-cerrados. Simplesmente siga sua inspiração e expiração, dando atenção a sua inspiração e expiração do início ao fim.

Segunda prática: Meditação guiada

A meditação guiada pode ser praticada na posição sentada, durante a caminhada ou deitado na cama antes de dormir. Pratique cada exercício por pelo menos dez inspirações e expirações, usando as palavras chave que sumarizam cada exercício. Se sua mente vaguear, apenas gentilmente traga-a de volta para a respiração e para as palavras-chave.

Terceira Prática: Uma ação em plena atenção

Em adição a praticar a respiração consciente diariamente, você pode escolher ficar totalmente consciente de uma ação todo dia. Cada vez que eu subo escadas, eu desfruto de cada passo. Inspirando, eu dou meu passo e sorrio. Expirando, eu desfruto. Eu fiz um tratado com as escadas de meu eremitério que se eu esquecer de desfrutar um passo, se eu der um passo sem plena atenção, então eu volto e tento novamente! Se você gostar, pode assinar um tratado de paz com suas escadas, com uma parte da rota de sua casa ao ponto de ônibus, ou de seu trabalho até o seu carro.

Você pode escolher outras atividades para desfrutar profundamente: talvez escovar os dentes em total atenção, abrir e fechar portas, ligar a luz ou dirigir. Seja quando for que você fizer essas atividades, não permita que sua mente esteja em outro lugar perdida no seu pensamento; traga cem por cento de sua atenção para o ato e faça dele uma meditação.

Quarta Prática: Poemas para respiração

Gathas são pequenos poemas de plena atenção que podemos usar para trazer mais despertar à nossa vida diária. Podemos recitar uma linha com nossa inspiração e a seguinte com nossa expiração. Seja criativo e faça seus próprios poemas para as atividades que você quer mais atenção da mente.

Quinta prática: meditação do sorriso

É importante não esquecer do nosso sorriso e do poder que tem. Nosso sorriso pode trazer muita alegria e relaxamento para nós e para os outros ao nosso redor ao mesmo tempo. Sorrir é um tipo de yoga da boca. Quando sorrimos, relaxa a tensão na nossa face. Outros notam isto, mesmo estranhos e provavelmente vão sorrir de volta. Ao sorrir, iniciamos uma maravilhosa reação em cadeia, tocando a alegria em cada um que encontramos. Um sorriso é um embaixador da boa vontade. Ao sorrir, tome algumas inspirações e expirações.

Inspirando, eu sorrio
Expirando, eu relaxo e toco a alegria

Sexta Prática: Dia do Ócio

Em todos os centros de prática de Plum Village ao redor do mundo, há um Dia do Ócio uma vez por semana onde não há nenhuma atividade programada exceto as refeições. Quando sabemos como viver profundamente, nosso Dia do Ócio pode ser o dia mais delicioso da semana. Ficar ocioso não significa que não praticamos, mas simplesmente que praticamos por nossa conta. Não há sinos chamando para as atividades, não há agenda, e todos estão livres para fazerem o que quiserem, incluindo dormir ou ler.

O Dia do Ócio é um dia muito sagrado, similar ao Sabath em outras tradições. No Dia do Ócio tentamos ficar o mais ocioso possível. Não é fácil ficar ocioso porque temos o hábito de sempre fazermos alguma coisa.

Se quisermos podemos descansar em uma rede. Podemos praticar meditação caminhando por nossa conta ou podemos organizar um piquenique. Podemos desligar o celular e o computador e dar a nós mesmos tempo e espaço para fazer outras coisas que não podemos fazer nos outros dias, como dar uma longa caminhada, escrever um poema, fazer uma xícara de chá e bebê-la lentamente enquanto contemplamos o céu, ou convidar um amigo para sentar silenciosamente conosco em quanto desfrutamos da sua companhia. Seja o que for que fizermos, fazemos com plena atenção, porque é a melhor maneira de desfrutar profundamente.

Não fazer nada, apenas desfrutar de nós mesmos e o que quer que esteja ao nosso redor é uma prática muito profunda porque todos temos uma energia dentro de nós que nos empurra constantemente a fazer isto ou aquilo. Não podemos sentar ou deitar parados e desfrutar de nós mesmos ou do bonito céu azul. Se não estivermos fazendo algo, não podemos suportar. Temos que praticar de forma a transformar este tipo de energia de hábito que está sempre nos empurrando a fazer ou dizer algo.

Se formos capazes de fazer isso, nosso Dia do Ócio será recompensador. Se não pudermos pegar um dia inteiro, podemos dispor de meio dia ou algumas horas por semana. Cada Dia do Ócio pode nos oferecer diferentes coisas a fazer – não exatamente a fazer, mas a ser.

(Do livro “Planting Seeds” – Thich Nhat Hanh)
(Traduzido por Leonardo Dobbin)

segunda-feira, 16 de abril de 2018

Soltar, Deixar para Trás

O primeiro método para se criar alegria e felicidade é abandonar, deixar para trás. Existe uma espécie de alegria que vem de deixar ir. Muitos de nós somos apegados a tantas coisas. Acreditamos que essas coisas são necessárias para nossa sobrevivência, nossa segurança e nossa felicidade. Mas muitas dessas coisas - ou mais precisamente, nossas crenças sobre sua total necessidade - são realmente obstáculos para a nossa alegria e felicidade.

Às vezes, você acha que ter uma determinada carreira, diploma, salário, casa ou parceiro é crucial para sua felicidade. Você acha que não pode continuar sem isso. Mesmo quando você obtém essa situação de vida, ou está com aquela pessoa que desejava, você continua a sofrer. Ao mesmo tempo, você ainda tem medo de que, se deixar ir esse prêmio que você alcançou, será ainda pior. Você será ainda mais miserável sem o objeto que está apegado. Não pode viver com aquilo, e também não pode viver sem aquilo.

Se você vier a olhar profundamente em seu apego terrível, perceberá que ele é de fato o próprio obstáculo para sua alegria e felicidade. Você tem a capacidade de deixá-lo ir. Deixar de lado precisa de muita coragem às vezes. Mas uma vez que você solta, a felicidade vem muito rapidamente. Você não terá que ficar procurando por ela.

Imagine que você seja um morador da cidade que faz uma viagem de fim de semana para o campo. Se você mora em uma grande metrópole, há muito barulho, poeira, poluição e odores, mas também muitas oportunidades e emoções. Um dia, um amigo te convence a fugir por alguns dias. No começo, você pode dizer: "Eu não posso. Eu tenho muito trabalho. Eu posso perder uma chamada importante". Mas finalmente ele te convence a sair, e uma ou duas horas mais tarde, você se encontra no campo. Você vê o espaço aberto, vê o céu e sente a brisa nas bochechas. A felicidade nasce do fato de que você foi capaz de deixar a cidade para trás. Se não tivesse saído, como poderia experimentar esse tipo de alegria? Você precisava deixar ir.

Um dia, o Buda estava sentado com alguns dos seus monges na floresta. Eles tinham acabavam de esmolar comida e estavam prontos para compartilhar juntos um almoço atento. Um fazendeiro passou, parecendo perturbado.

Ele perguntou ao Buda, "Monges, vocês viram algumas vacas passarem por aqui?"

"Que vacas?" O Buda respondeu.

"Bem", disse o homem. "Eu tenho quatro vacas e não sei o porquê, mas esta manhã todas fugiram. Eu também tenho dois acres de gergelim. Este ano os insetos comeram toda a safra. Eu perdi tudo: minha colheita e minhas vacas. Eu tenho vontade de me matar. " O Buda disse: "Querido amigo, estamos sentados aqui há quase uma hora e não vimos nenhuma vaca passando. Talvez você devesse ir e olhar em outra direção". Quando o fazendeiro se foi, o Buda olhou para seus amigos e sorriu conscientemente. "Queridos amigos, vocês têm muita sorte", disse ele. "Vocês não têm nenhuma vaca a perder".

Eu conhecia uma mulher rica que vivia na cidade de Nova York que tinha comprado um pedaço de terra ao lado de seu prédio. Ela queria construir um enorme complexo de apartamentos no terreno e depois vendê-lo para que pudesse ganhar muito dinheiro. Um amigo veio visitá-la e ficou olhando pela janela. Tinha uma bela vista da Ponte George Washington e muito céu azul. O amigo se voltou para a mulher que comprou a terra e disse: "Não construa o complexo de apartamentos. Se você fizer isso, não terá mais essa bela vista. Os seus vizinhos não terão mais uma vista. Você não verá mais o céu azul e o rio. Você só precisa estar aqui e olhar e já pode ter felicidade. Qual a vantagem de ter mais dinheiro e perder toda essa beleza e felicidade? " A mulher foi capaz de ouvir isso e mudou seus planos para o prédio, liberando uma grande vaca, graças ao sábio conselho de um amigo.

Uma das maiores vacas que temos é a nossa estreita ideia de felicidade. Você pode sofrer apenas por sua ideia; e você continua a sofrer até que um dia é capaz de liberar essa ideia e imediatamente se sente feliz.

Um país inteiro pode ser pego em uma única vaca. Uma nação de centenas de milhões pode acreditar que uma ideologia é crucial para que o país se torne uma grande potência no mundo, e que esse status de superpotência é essencial para a felicidade das pessoas. Então eles investem tudo nessa ideologia, e insistem que é a melhor maneira, a única maneira. Os países podem manter suas vacas por centenas de anos, e durante esse tempo as pessoas sofrem muito. Então, finalmente, um dia, o país pode estar aberto a mudanças e descobre que ele realmente funciona melhor e cria mais felicidade quando é executado de maneira diferente.

Cada um de nós tem uma ideia de felicidade que pode tornar-se muito entrincheirada, muito rígida. Cada um de nós tem vacas para serem soltas. Considere a prática de liberar suas vacas. Pegue um pedaço de papel e anote os nomes de suas vacas, as coisas que você considera cruciais para o seu bem-estar. Talvez esta semana você possa começar por liberar apenas uma, talvez duas. Ou talvez cada uma demore um ano ou mais. Quanto mais vacas você liberar, mais alegre e feliz vai se tornar.

(Trecho do livro de Thich Nhat Hanh – No mud no lotus)
(Tradução – Leonardo Dobbin)

terça-feira, 10 de abril de 2018

Carma: Seus Pensamentos, Palavras e Ações Corporais

Existe uma tendência de se imaginar que somos uma entidade se movendo através do espaço e do tempo em direção ao futuro. Acreditamos que, neste exato momento, somos nós mesmos e, quando chegarmos a um ponto no futuro, nós ainda continuaremos sendo nós mesmos. Mas isto não corresponde à realidade, porque nós estamos mudando o tempo todo. O Rio Mississipi tem um nome. O nome Rio Mississipi continua o mesmo, mas o rio está sempre mudando, a água dentro dele está sempre mudando. Um ser humano também é assim. Quando nascemos, nós éramos um bebê muito tenro de menos de cinco quilos e agora, como adulto, somos bem diferentes em todos os aspectos.

Os seres humanos são como uma nuvem. Quando nos visualizamos como uma nuvem, temos a oportunidade de olhar, de inquirir profundamente dentro da natureza da nuvem. Podemos visualizar como a nuvem se formou e como a nuvem se manifesta. A palavra “nuvem” pode fazer surgir uma idéia desta nuvem ou daquela nuvem. Esta nuvem não é aquela nuvem. E a nuvem não é o vento. A nuvem não é o raio do sol. A nuvem não é a água.

Suponha que parte da nuvem tenha se tornado chuva. E a nuvem lá em cima pode olhar para baixo e reconhecer-se enquanto córrego de água. Isto é possível. Quando nos vemos enquanto nuvens, podemos olhar em volta e ver que interexistimos com outras nuvens. Outras nuvens se juntarão a nós e nos tornaremos uma nuvem maior. Começamos a ver mais a realidade da nuvem; começamos a ver mais a realidade do eu. É possível para uma nuvem olhar para baixo e ver que parte da nuvem seguiu adiante em outras manifestações. É possível para a nuvem sorrir para ela mesma em forma de um córrego de água sobre a superfície da Terra.

Em cada momento de nossa vida, recebemos informações do ambiente. Nós recebemos o ar, recebemos a comida, recebemos a imagem, o som e as energias coletivas. Em cada minuto de nossa vida diária, existe informação sendo consumida. Todos os dias, nós ingerimos nutrientes em termos de alimentos comestíveis, de impressões sensoriais, em termos de pensamento, em termos de educação, e em termos de consciência coletiva. E, ao mesmo tempo, estamos enviando energia em termos de pensamento, em termos de fala, em termos de ações. Em cada momento de sua vida diária, você produz pensamento, você produz fala e produz ações.

O filósofo francês Jean Paul Sartre disse: “Nós somos a soma de nossas ações”. Carma significa ação, e ela pode ser expressa em termos de pensamento, fala ou ação corporal. Estamos produzindo carma o tempo todo e todo ele vai em direção ao futuro. É por isso que em nossa prática deveríamos nos treinar para nos ver em nossas ações, não somente neste corpo. É claro que ações de corpo, fala e mente também influenciam nosso corpo e sentimentos. Quando uma nuvem olha pra baixo, ela consegue se reconhecer como um córrego de água. Quando olhamos para baixo, podemos ver que fomos em direção ao futuro. Podemos nos reconhecer em muitos lugares.

Você não pode dizer que quando este corpo se desintegrar você não estará mais ali. Você continua de muitas maneiras. Quando uma nuvem vira chuva, a chuva pode ser vista como incontáveis gotas de água. Mas quando elas descem até a Terra, podem se juntar dentro de um córrego novamente, ou elas se tornam dois córregos ou três córregos, mas isto é continuação.

Existem três tipos de carma, de pensamento, de fala e ação corporal. Dizer que depois da decomposição do corpo nada resta é muito pouco científico. Antoine Laurent Lavoisier, o químico do século dezoito, disse que “Nada nasce, nada consegue morrer.” O que acontecerá depois que o seu corpo se desintegrar? A resposta é que você continuará por meio de seus pensamentos, das suas palavras e ações físicas. Se você quiser saber como você estará no futuro, apenas olhe para estas triplas ações e saberá. Você não precisa morrer para começar a ver isso – você pode ver agora – porque você está se produzindo a cada momento, você está produzindo a continuação de você mesmo. Cada pensamento, cada palavra, cada ato carrega sua assinatura – você não consegue escapar. Se você produz algo não tão bonito você não pode pegar de volta – já seguiu adiante para o futuro e começou a produzir uma corrente de ações e reações. Mas você pode sempre produzir algo diferente, algo positivo, e este novo ato seu, em termos de pensamento ou fala e ação, modificará as ações negativas anteriores.

Quando retornamos a nós mesmos e sabemos o que está acontecendo, temos o poder de modelar nossa continuação. É no aqui e agora que temos o poder de modelar nossa continuação. Nossa continuação não será algo no futuro. Nossa continuação acontece bem aqui e neste exato momento. Por isso você ainda tem a soberania de determinar seu futuro. Se tiver feito algo bom, você fica satisfeito. Você diz “eu posso continuar a produzir mais pensamento, mais fala, mais ação do mesmo tipo. Porque eu estou assegurando um bom futuro para mim e para meus filhos.” E se por acaso você tiver produzido algo negativo, você sabe que é capaz de produzir coisas de natureza oposta para corrigi-lo, para transformá-lo. Livre arbítrio é possível no aqui e agora.

Suponha que ontem eu disse algo não muito agradável para o meu irmão menor. Isto é algo feito, já concluído. Causou danos dentro de mim e dentro dele. E hoje eu acordo e compreendo que produzi um carma, uma ação que foi destrutiva. Agora quero retificar aquilo. Estou determinada a dizer algo diferente hoje quando encontrá-lo. Expresso uma opinião a partir do meu insight, minha compaixão, meu amor. Esta opinião está sendo produzida hoje, não ontem; mas ela vai tocar as palavras que eu disse ontem, transformá-las e corrigi-las. De repente sinto a cura acontecendo dentro de mim e a cura acontecendo dentro do meu irmão ou colega de trabalho, porque este segundo ato também carrega a minha assinatura.

Suponha que de manhã uma pessoa cheia de impaciência grita com seu filho. Isto é um erro, uma ação negativa. E suponha que de noite, esta mesma pessoa faz algo muito bom: salva um cachorro de ser atropelado por um carro. Aquela é uma ação muito boa. Cada ação é uma semente plantada dentro da consciência armazenadora dela. Nenhuma ação, nenhum pensamento, nenhuma palavra se perde. Então para onde irá aquela pessoa, se combinarmos ação um e ação dois?

Para saber para onde você está indo, em que direção, apenas olhe para a significação das sementes dentro da sua consciência armazenadora e você conhecerá seu caminho. Tudo depende do seu carma, das suas ações, em termos de pensar, em termos de falar em termos de agir. Você decide. Ninguém mais decide seu futuro. Isto é vipaka.

Toda vez que você produz um pensamento, isto é ação. Buda propôs que praticássemos o pensamento correto, pensamento que vai em direção da não-discriminação, da compaixão e da compreensão. Sabemos que somos capazes de produzir tal pensamento, um pensamento de compaixão, um pensamento de não segregação. Todas as vezes que produzimos um pensamento como este, ele terá um efeito benéfico em nosso corpo e no mundo. Um bom pensamento tem o efeito de curar o seu corpo, a sua mente e o mundo. Isto é ação. Se você produz um pensamento de raiva, de ódio e desespero, isto não é bom para sua saúde ou para a saúde do mundo. Atenção desempenha um papel muito importante. Dependendo do tipo de ambiente que você mora e do que você presta atenção, você tem uma chance maior ou menor de produzir bons pensamentos e ir em direção do pensar correto.

Todo pensamento que você produz carrega a sua assinatura. Você não pode dizer que ele não é você. Você é responsável por aquele pensamento e aquele pensamento é sua continuação. Seu pensamento é a essência do seu ser e da sua vida, e uma vez produzido, ele continua, pode jamais se perder. Podemos conceber nossos pensamentos como um tipo de energia que terá uma reação em cadeia no mundo. Por isso é bom cuidar para que produzamos muitos pensamentos benéficos todos os dias. Sabemos que se quisermos, podemos produzir pensamentos de compaixão, compreensão, irmandade e não-discriminação; e cada um deles carrega nossa assinatura, eles são nós, eles são nossos futuros, eles nunca podem se perder. É muito claro que um pensamento de compaixão, um pensamento de irmandade, compreensão e amor tem o poder de curar: curar o seu corpo, curar sua mente e curar o mundo. O livre arbítrio é possível, porque você sabe que consegue produzir tais pensamentos, com a ajuda de Buda, com a ajuda do seu irmão, da sua irmã na comunidade, com a ajuda do Darma que você aprendeu.

O que você diz também carrega a sua assinatura e é o seu carma. Sua fala pode expressar compreensão, amor e perdão. Desde que você use a fala correta, esta fala possui um efeito de cura. A fala correta tem o poder de curar e transformar e pode ser usada a qualquer momento. Você tem a semente de compaixão, compreensão e perdão dentro de si. Permita que elas se manifestem. Você pode parar de ler agora mesmo e telefonar para alguém e, usando a fala correta expressar compaixão, empatia, amor e perdão. O que você está esperando? Isto é ação real. A reconciliação pode ser obtida imediatamente com a prática da fala amorosa. A fala correta está na direção do perdão, compreensão e compaixão. Pegue o telefone e faça isso. Depois de ter feito isto você se sentirá bem melhor, a outra pessoa se sentirá muito melhor e a reconciliação acontecerá imediatamente. Os pensamentos que você produziu e as palavras que você falou também estarão lá como suas continuações.

O que você pode fazer para aliviar o sofrimento? Que tipo de ação pode ser alcançada todo dia para expressar compaixão? Os atos físicos são o terceiro aspecto de sua continuação. E nós sabemos que somos capazes de fazer algo para proteger pessoas, proteger animais, proteger o ambiente. Podemos fazer algo para salvar um ser vivo hoje. Pode ser algo pequeno, como abrir uma janela para um inseto sair voando. Ou pode ser grande como alimentar e agasalhar alguém que precisa de ajuda. Todo dia nós estamos em controle do nosso carma, de maneiras grandes e pequenas, e, no entanto, tão freqüentemente sentimos como se tivéssemos nenhum livre arbítrio ou controle.

(Do livro Buddha Mind, Buddha Body: Walking toward Enlightenment, de Thich Nhat Hanh)
(Tradução para o português: Tâm Vân Lang)

quarta-feira, 4 de abril de 2018

De Onde Viemos? Para Onde Vamos?

No meu eremitério na França há um arbusto de japônica, marmelo japonês. O arbusto usualmente floresce na primavera, mas em um inverno que foi muito quente os brotos vieram antes. Durante a noite uma frente fria veio e trouxe com ela gelo. No dia seguinte enquanto fazia meditação caminhando, notei que todos os brotos no arbusto tinham morrido. Reconheci isto e pensei: “Neste ano novo não teremos flores suficientes para decorar o altar do Buda”.

Poucas semanas depois o tempo esquentou novamente. Enquanto andava em meu jardim, vi os novos brotos na japônica manifestando uma outra geração de flores: “Vocês são as mesmas flores que morreram no frio ou são diferentes?” As flores responderam para mim: “Thay, não somos as mesmas nem somos diferentes. Quando as condições são suficientes nos manifestamos e quando as condições não são suficientes nos escondemos. É tão simples quanto isso.”

Isto é o que o Buda ensinou. Quando as condições são suficientes as coisas se manifestam. Quando as condições não são mais suficientes as coisas se retiram. Elas esperam até o momento certo para elas se manifestarem novamente.

Antes de dar a luz a mim, minha mãe havia ficado grávida de outro bebê. Ela o perdeu e aquela pessoa não nasceu. Quando eu era pequeno costumava perguntar: era meu irmão ou era eu? Quem estava tentando se manifestar naquela época? Se um bebê foi perdido significa que as condições não eram suficientes para ele se manifestar e a criança decidiu se retirar de forma a esperar por melhores condições. “É melhor eu me esconder, voltarei em breve, meu querido.” Temos que respeitar sua vontade. Se você vê o mundo com estes olhos, sofrerá muito menos. Foi meu irmão que minha mãe perdeu? Ou talvez eu estava quase por vir mas eu disse: “Não é a hora ainda.” Portanto me retirei.

Nosso grande medo é que quando morrermos nos tornaremos nada. Muitos de nós acreditam que nossa existência inteira é apenas o nosso tempo de vida, começando no momento que nascemos ou fomos concebidos e termina no momento que morremos. Acreditamos que nascemos do nada e que quando morremos nos tornaremos nada. E, portanto, estamos cheios do medo da aniquilação.

O Buda tem um entendimento muito diferente de nossa existência. É o entendimento que nascimento e morte são noções. Elas não são reais. O fato de pensarrmos que são verdadeiras cria uma poderosa ilusão que causa nosso sofrimento. O Buda ensinou que não há nascimento nem morte; não há vinda nem ida; não há igual, e não há diferente; não há eu permanente, não há aniquilação. Apenas achamos que há. Quando entendemos que não podemos ser destruídos, estamos libertos do medo. É um grande alívio. Podemos desfrutar da vida e apreciá-la de uma nova maneira.

O mesmo ocorre quando perdemos nossos entes queridos. Quando as condições não estão certas para suportar a vida, eles se retiram. Quando perdi minha mãe, sofri muito. Quando temos apenas 7 ou 8 anos de idade é difícil pensar que um dia perderemos nossa mãe. Ao final crescemos e todos perderemos nossas mães, mas se soubermos como praticar, quando a hora da separação chegar você não sofrerá muito. Rapidamente você perceberá que sua mãe está sempre viva dentro de você.

No dia que minha mãe faleceu, escrevi no meu diário. “Um sério infortúnio da minha vida chegou.” Sofri por mais de um ano depois de sua passagem. Mas uma noite, nas terras altas do Vietnã, estava dormindo na cabana de meu eremitério. Sonhei com minha mãe. Vi-me sentado com ela e estávamos tendo uma conversa maravilhosa. Ela parecia jovem e bonita, seu cabelo esvoaçante. Era muito prazeroso sentar lá e conversar com ela como se nunca tivesse morrido.

Quando acordei eram duas da manhã e eu senti fortemente que nunca havia perdido minha mãe. A impressão que ela estava ainda em mim era muito clara. Entendi então que a idéia de tê-la perdido era apenas uma idéia. Era óbvio naquele momento que minha mãe estava viva em mim.

Abri a porta e sai. Toda a colina estava banhada pela luz da lua. Era uma colina coberta com plantações de chá, e minha cabana estava localizada atrás do templo, no meio da colina. Andando devagar na luz da lua através da plantação, percebi que minha mãe estava ainda em mim. Ela era a luz da lua me acariciando assim como fazia frequentemente, muito carinhosa, muito doce...maravilhosa!

Cada vez que meus pés tocavam a terra, sabia que minha mãe estava lá comigo. Sabia que este corpo não era só meu, mas uma continuação viva da minha mãe e do meu pai e dos meus avós. Todos os meus ancestrais. Estes pés que eu via como meus eram na verdade nossos pés. Juntos minha mãe e eu estávamos deixando pegadas no solo.úmido.

Daquele momento em diante, a idéia que eu tinha perdido minha mãe nunca mais existiu. Tudo que eu tenho que fazer é olhar para a palma da minha mão, sentir a brisa no meu rosto ou a terra sob meus pés para me lembrar que minha mãe está sempre comigo, disponível a qualquer momento.

Quando você perde um ente querido, você sofre. Mas se souber como olhar em profundidade, tem a chance de perceber que a natureza dele é a do não nascimento e não morte. Há manifestação e há a cessação da manifestação. Você tem que ser muito perspicaz e muito alerta para reconhecer as novas manifestações de uma pessoa. Mas com a prática e com esforço você pode fazer.

Portanto, pegando na mão de alguém que conheça a prática, faça uma meditação caminhando com ela. Preste atenção em todas as folhas, as flores, os pássaros e gotas de orvalho. Se puder parar e olhar profundamente, será capaz de reconhecer seu amado se manifestando novamente e novamente em muitas formas. Você novamente abraçará a alegria da vida.

Um cientista francês, cujo nome era Lavoisier, declarou, “Nada se perde, nada se cria”. “Nada nasce, nada morre.” Embora ele não praticasse como um budista, mas como um cientista, ele descobriu a mesma verdade que o Buda. Nossa natureza verdadeira é de não nascimento e não morte. Apenas quando tocamos nossa verdadeira natureza podemos transcender o medo de não ser, o medo da aniquilação.

O Buda disse que quando as condições são suficientes, algo manifesta e dizemos que existe. Quando uma ou duas condições falham e a coisa não se manifesta do mesmo modo, então dizemos que não existe. De acordo com o Buda, para qualificar algo como existente ou não é errado. Na realidade, não existe uma coisa que exista totalmente ou não exista totalmente.

Podemos ver isso muito facilmente com a televisão e o rádio. Podemos estar em uma sala que não tem televisão ou rádio. E enquanto estamos nesta sala podemos pensar que os programas de rádio ou TV não existem naquela sala. Mas todos sabemos que o espaço da sala está cheio de sinais. Os sinais desses programas estão em todo lugar. Precisamos apenas de uma condição a mais, um aparelho de TV ou rádio, e muitas formas, cores e sons aparecerão.

Seria errado dizer que os sinais não existem porque não temos um aparelho para receber os sinais e manifestá-los. Eles apenas parecem não existir porque as causas e condições não eram suficientes para fazer os programas se manifestarem. Portanto naquele momento, naquela sala, dizemos que eles não existem. Não é porque não percebemos algo que podemos dizer que ele não existe. É apenas nossa noção de ser e não ser que nos faz pensar que algo existe ou não. Noções de ser ou não ser não podem ser aplicadas a realidade.
É como a noção de abaixo e acima. Dizer que elas existem é também errado. O que está abaixo de nós está acima de outro, em algum lugar. Estamos sentados aqui e dizemos que acima é a direção acima de nossas cabeças e pensamos que a direção oposta é abaixo.

Pessoas praticando meditação sentada no outro lado do mundo não concordariam que o que chamamos acima seja assim porque para eles é abaixo. Eles não estão sentados sob suas cabeças. As idéias de abaixo e acima também significam estar acima de algo ou abaixo de algo, e essas idéias não podem ser aplicadas a realidade do cosmos. Estes são apenas conceitos para nos ajudar a nos relacionar com nosso ambiente. Elas são conceitos que nos dão um ponto de referência, mas elas não são reais. A realidade é livre de todos os conceitos e idéias.

(Do livro “No death, no fear” – Thich Nhat Hanh)
(Traduzido por Leonardo Dobbin)