segunda-feira, 28 de maio de 2018

Tomar Conta de Nossos Relacionamentos

Depois de algumas semanas praticando o “tomar conta de nós mesmos”, nos sentiremos muito melhor. Então podemos dar o segundo passo e ir para nosso parceiro, amigo ou colega de trabalho para tomar conta dele. Temos que tomar conta de nós mesmos antes que possamos amar e tomar conta de alguém. Podemos amar nossos entes queridos tomando conta de seu sofrimento, mas não antes de podemos tomar conta de nós mesmos.

Quando pudermos tomar conta bem de nós mesmos, poderemos mais claramente ver que aqueles que amamos estão também sofrendo. Eles têm suas próprias dificuldades. Estender a mão para nosso parceiro, colegas ajudará a fortalecer nossas próprias habilidades como pais e professores.

Muitos de nós não têm mais a capacidade de ouvir e usar palavras amorosas. Nos sentimos muito sozinhos, mesmo na nossa própria família. Quando a comunicação é cortada, todos sofremos. Quando ninguém nos ouve ou nos entende, tornamo-nos uma bomba prestes a explodir.

Ouvir profundamente e de forma compassiva pode curar a situação. Às vezes apenas dez minutos ouvindo atentamente podem nos transformar e trazer um sorriso de volta para nossos lábios. Precisamos também nos treinar para usar a fala amorosa de forma que possamos restaurar a harmonia, o amor e a felicidade.

Perdemos nossa capacidade de dizer as coisas calmamente e de falar com gentileza. Ficamos irritados muito facilmente. Talvez ambos, você e seu parceiro, tenham sofrido nos últimos anos. Parece que ambos perderam sua capacidade de ouvir profundamente, um ao outro, com compaixão. Como há muita dor, sofrimento e violência em você, é difícil ouvir com compaixão e paciência. Como os blocos de sofrimento são muito grandes, mesmo que você queira usar a fala amorosa, ficou muito difícil. Você pretende falar calmamente, mas assim que você começa a falar para a outra pessoa o que está no seu coração, se torna amargo e crítico.

Isto faz com que se torne mais difícil para o outro te ouvir. Aprender a ouvir calmamente e compassivamente e usar fala pacífica e amorosa é muito importante. Estes dois instrumentos são necessários para restabelecer a comunicação.

Depois de praticar a respiração atenta, olhar em profundidade para a situação e reconhecer que você contribuiu para criar a situação difícil entre vocês, você pode se dirigir até a outra pessoa. Com sua presença plena, diz a ela em uma linguagem amável: “ Querido(a), sei que você sofreu muito nos últimos três ou quatro anos. Eu sou também parcialmente responsável por este sofrimento. Eu não entendia o bastante de seu sofrimento e de suas dificuldades, por isso eu cometi muitos erros na minha fala e nas minhas ações. Não pretendo fazer você sofrer. Eu fiz e disse estas coisas devido à minha falta de habilidade. Eu apenas queria fazer você feliz, mas como não sabia o suficiente sobre seu sofrimento e dificuldades cometi muitos erros. Eu realmente quero ouvir o que há no seu coração. Por favor me fale de seu sofrimento, suas dificuldades, seu desejo mais profundo. Por favor me ajude para que possamos ser felizes de novo.”  Se você puder falar com este tipo de linguagem, a porta do coração da outra pessoa se abrirá novamente.

Quando a outra pessoa compartilhar com você, diga a si mesmo que o único propósito de ouvir é permitir que ela alivie seu sofrimento. Não importa o que ela diga, você ouvirá. Em uma relação, podemos ter percepções errôneas um do outro a cada dia. Quando você ouve a pessoa amada, reconhece quantas percepções errôneas ela tem de você, e você pode reconhecer que você também tem percepções errôneas dela.

Mas você continua apenas a ouvir. Você não reage. Depois você pode oferecer informações que pode curar as percepções equivocadas, mas não agora. Talvez em alguns dias você possa compartilhar informações para ajudar a outra pessoa a alterar suas percepções, mas não muito de uma só vez para que ela possa pegar tudo. Compartilhe informações aos poucos de forma que a outra pessoa tenha a capacidade de receber e corrigir suas percepções erradas.

Mesmo se a outra pessoa expressar muito amargor, percepções erradas, julgamentos e condenação, você continua a ouvir com compaixão. Manter a compaixão viva enquanto você ouve é uma arte, a para conseguir isso você tem que lembrar da pratica da plena atenção. Uma hora de escuta assim já poderá ajudar a pessoa a sofrer menos.

Compaixão te protege de forma que o que a outra pessoa disser não irá tocar a semente da irritação ou raiva em você. Você ouve como a bodisatva, ou grande ser, de compaixão. Esta é a técnica. O bodisatva da compaixão não está em algum lugar no céu. O bodisatva da compaixão está em cada célula de seu corpo. Se você sabe como tocá-lo, ele irá expressar a si mesmo e ficar no seu coração durante o tempo da escuta profunda.

Quando você puser todo o seu coração nisto, poderá ouvir melhor até mesmo que um psico-terapeuta. Se a pessoa amada sofre, não há modo de você ser feliz, portanto invista cem por cento no ato de ouvir. Mantenha a compaixão viva no seu coração durante todo o tempo da escuta. Se você sentir que não é forte o suficiente para escutar, não se force. Diga a sua pessoa amada, “ Querido(a), não estou bem hoje. Podemos sentar juntos outro momento de forma que eu possa te escutar com todo o meu coração?” Então você pode sair e praticar a meditação caminhando e a respiração atenta para obter mais força para ter sucesso na prática da escuta profunda.

Se não estamos conscientes de nossas relações, podemos dizer ou fazer coisas que podem criar sofrimento para a outra pessoa. Pode ser um pequeno grão de sofrimento que pensamos que não vale a pena comentar, mas pensar dessa maneira é muito perigoso.

Dia após dia, o sofrimento continua a crescer, e então um dia, você não consegue mais olhar para a outra pessoa com felicidade. No início seu amor é tão bonito. Você apenas quer olhar para sua amada todo o dia. Apenas olhar para ela te traz muito prazer. Mas agora quando você olha para ela, não sente mais alegria, e ao invés disso podem ambos olhar para a televisão para evitar se olharem. Esta é uma falha na relação. Podemos sempre fazer algo para ajudar ambos a redescobrir nosso amor.

A melhor maneira de encorajar a outra pessoa a usar a fala amorosa é praticarmos nós mesmos. Quando praticamos a fala amorosa, nos beneficiamos; experimentos felicidade, e lentamente a outra pessoa reconhece o poder e a efetividade da fala amorosa.

Ao confrontar uma situação de injustiça ou opressão, você pode usar também a fala amorosa porque é o único tipo de fala que pode alcançar a outra pessoa ou grupo. Se você insultar, reprovar ou condenar alguém, eles não irão te ouvir. Você perderá sua energia e não levará a lugar nenhum.

Uma vez que você tenha sucesso em transformar sua raiva, medo e tristeza, poderá ajudar a transformar o seu amado. No passado você pode ter tentado, mas não teve sucesso porque ainda não tinha mudado. Agora que você se transformou, pode inspirar seu amado a fazer o mesmo.

(Do livro “Planting Seeds” – Thich Nhat Hanh)
(Traduzido por Leonardo Dobbin)

quinta-feira, 24 de maio de 2018

O Poder do Silêncio

Em 1947, eu estava em Hue morando e estudando no Instituto Budista do Templo de Quoc Bao, não muito longe do meu templo raiz onde eu havia sido ordenado para a vida monástica e onde normalmente vivia. Foi durante a primeira guerra da Indochina. Naquela época, o exército francês estava ocupando toda a região e tinha montado uma base militar em Hue. Muitas vezes ouvíamos tiros entre soldados franceses e vietnamitas ao nosso redor. As pessoas que viviam nas colinas tinham montado pequenos fortes para se protegerem. Houve noites quando os aldeões se fechavam em suas casas, se segurando contra a barreira. De manhã quando acordavam, encontraram na estrada os cadáveres da batalha da noite anterior e slogans escritos em cal misturado com sangue. Ocasionalmente monges viajavam por caminhos remotos nesta região, mas quase ninguém mais se atrevia a passar através da área — especialmente os moradores da cidade de Hue que só recentemente tinham voltado depois da cidade ter sido evacuada. Apesar de Bao Quoc situar-se perto de uma estação de trem, dificilmente alguém se arriscava ir lá!

Uma manhã saí de Bao Quoc para minha visita mensal ao meu templo raiz. Era muito cedo; o orvalho ainda estava nas pontas da grama. Dentro de um saco de pano, eu carregava meu manto cerimonial e alguns sutras. Na minha mão carregava o tradicional chapéu de palha vietnamita em forma de cone. Eu me sentia leve e alegre com a ideia de ver o meu professor, meus irmãos monásticos e o templo antigo e altamente venerado.

Tinha acabado passar por colina quando ouvi um grito. Em cima na colina, acima da estrada, eu vi um soldado francês acenando. Pensei que ele estava fazendo graça comigo porque eu era um monge, virei-me e continuei a descer rindo. Atrás de mim ouvi o barulho das botas do soldado correndo atrás de mim. Talvez ele quisesse me revistar. Eu estava carregando o saco de pano que poderia parecer suspeito para ele. Parei de andar e esperei. Aproximou-se um jovem soldado com um rosto magro e bonito.

"Onde você vai?", perguntou em vietnamita. A partir de sua pronúncia, eu poderia dizer que ele era francês, e que seu conhecimento de vietnamita era muito limitado.

Sorri e perguntei-lhe em francês, "Se eu fosse responder em vietnamita, você entenderia?"

Quando ele percebeu que eu podia falar francês, seu rosto se iluminou. Ele disse que não tinha intenção de me revistar, e que só queria me perguntar algo. "Eu queria saber de qual templo você vem," ele disse.

Quando eu lhe disse que eu estava vivendo no templo de Quoc Bao, ele pareceu interessado.

"Templo de Quoc Bao", ele repetiu. "É o grande templo na colina perto da estação de trem?"

Quando concordei, ele apontou para uma bomba d'água ao lado da colina — seu posto de guarda aparentemente — e disse: "Se você não estiver muito ocupado, por favor, vamos lá para que possamos conversar um pouco." Nos sentamos perto da casa de bomba e ele me contou sobre a visita que ele e outros cinco soldados tinham feito dez dias antes ao templo de Quoc Bao. Eles tinham ido ao templo às dez da noite em busca de guerrilheiros da resistência vietnamita, Viet Minh, que supostamente estavam se reunindo lá.

"Estávamos determinados a encontrá-los. Nós carregávamos armas. As ordens foram para prender e até mesmo matar, se necessário. Mas quando entramos no templo ficamos atordoados."

"Porque não havia tantos Viet Minh"?

"Não! Não!", ele exclamou. "Não estaríamos atordoados se tivéssemos visto Viet Minh. Teríamos atacado não importa quantos fossem."

Eu estava confuso. "O que te surpreendeu?"

"O que aconteceu foi muito inesperado. Sempre que fazíamos buscas anteriormente, as pessoas fugiam ou ficavam em estado de pânico."

"As pessoas foram aterrorizadas tantas vezes que fogem com medo", expliquei.

"Eu mesmo não tenho o hábito de aterrorizar ou ameaçar as pessoas," ele respondeu. "Talvez fiquem tão assustadas porque foram prejudicadas por aqueles que vieram antes de nós.

"Mas quando entramos no templo Quoc Bao, foi como entrar em um lugar completamente deserto. As lâmpadas de óleo ficavam muito baixas. Nós deliberadamente batemos nossos pés bem alto sobre o cascalho, e tivemos a sensação que havia muitas pessoas no templo, mas não conseguíamos ouvir ninguém. Estava incrivelmente silencioso. Os gritos de um camarada me deixaram desconfortável. Ninguém respondeu. Liguei minha lanterna e apontei para a sala que pensávamos estar vazia — e vi cinquenta ou sessenta monges sentados estáticos em silêncio na meditação."

"Isso é porque você veio durante o nosso período de meditação da noite", eu disse, balançando a cabeça.

"Sim. Foi como se nos encontrássemos inesperadamente com uma força estranha e invisível," ele disse. "Nós ficamos tão surpresos que nos viramos e voltamos para o pátio. Os monges nos ignoraram! Eles não levantam a voz em resposta, e não mostraram qualquer sinal de pânico ou medo."

"Eles não estavam ignorando vocês; estavam praticando a concentração na respiração — isso era tudo. "

"Senti-me atraído pela tranquilidade deles", admitiu. "Realmente ganhou o meu respeito. Nós ficamos em silêncio no pátio ao pé de uma grande árvore e esperamos talvez meia hora. Então uma série de sinos soaram e o templo voltou à atividade normal. Um monge acendeu uma tocha e veio nos convidar para entrar, mas nós simplesmente lhe dissemos porque estávamos lá e então fomos embora. Naquele dia, comecei a mudar minhas ideias sobre o povo vietnamita.

"Há muitos jovens entre nós", continuou. "Estamos com saudades de casa. Temos saudade das nossas famílias e do nosso país. Fomos enviados aqui para matar os Viet Minh, mas não sabemos se iremos matá-los ou sermos mortos por eles e nunca voltaremos para casa e nossas famílias. Ver as pessoas aqui trabalhar tão duro para reconstruir suas vidas destroçadas me lembra as vidas destroçadas de meus parentes na França após a Segunda Guerra. A vida tranquila e serena daqueles monges me faz pensar sobre a vida de todos os seres humanos na Terra. E eu me pergunto por que viemos a este lugar. Por que o ódio entre nós e os Viet Minh é tão forte que nos fez viajar até aqui para combatê-los?"

Profundamente comovido, peguei a mão dele. Contei-lhe a história de um velho amigo meu que tinha se alistado para lutar contra os franceses, e que tinha sido bem sucedido em ganhar muitas batalhas. Um dia meu amigo veio ao templo onde eu estava e desatou a chorar enquanto me abraçava. Ele me disse que durante um ataque a uma fortaleza, enquanto ele estava escondido atrás de umas pedras, viu dois jovens soldados franceses sentados e conversando. "Quando vi as faces brilhantes, bonitas e inocentes desses rapazes," ele disse, "não suportei abrir fogo, querido irmão. As pessoas podem me rotular de fraco e mole. Eles podem dizer que se todos os guerreiros vietnamitas fossem como eu, logo todo o nosso país seria conquistado. Mas por um momento eu estava amando o inimigo, como minha mãe me ama! Eu sabia que a morte desses dois jovens faria suas mães na França sofrer, assim como minha mãe tinha ficado de luto pela morte do meu irmão mais novo. "

"Então," Eu disse ao soldado francês, "o coração do jovem soldado vietnamita foi preenchido com o amor da humanidade."

O jovem soldado francês sentou-se calmamente, perdido em pensamentos. Talvez, como eu, ele estivesse se tornando mais consciente do absurdo da matança, a calamidade da guerra e o sofrimento de tantos jovens morrendo de forma injusta e comovente.

O sol já tinha subido alto no céu e era hora de eu ir. O soldado me disse que seu nome era Daniel Marty e tinha vinte e um anos de idade. Tinha acabado a faculdade antes de vir para o Vietnã. Ele me mostrou fotos de sua mãe, de um irmão e uma irmã mais nova. Nos separamos com um sentimento de compreensão e amizade entre nós e ele prometeu visitar-me no templo aos domingos.

Nos meses que se seguiram, ele me visitava quando podia, e levei-o ao nosso salão de meditação para praticar comigo. Dei-lhe o nome espiritual Thanh Luong, significando "vida pura, refrescante e pacífica." Eu o ensinei vietnamita — ele sabia apenas as poucas frases ensinadas pelos militares — e depois de alguns meses, fomos capazes de conversar um pouco em minha língua nativa. Ele me disse que ele já não tinha que ir em incursões como anteriormente, e eu compartilhei seu alívio. Se houvesse cartas de casa, ele me mostrava. Sempre que ele me via, ele juntava as palmas das mãos em saudação.

Um dia convidamos Thanh Luong para uma refeição vegetariana no templo. Ele aceitou o convite feliz e elogiou muito as deliciosas azeitonas pretas e os saborosos pratos que lhe servimos. Ele achou a sopa de arroz perfumado com cogumelos que meu irmão tinha preparado, tão deliciosa que ele não podia acreditar que era vegetariana. Tive que lhe explicar em detalhes como foi feita para ele acreditar.

Havia dias quando, sentados ao lado da torre do templo, iríamos mergulhar em conversas sobre espiritualidade e literatura. Quando eu elogiava a literatura francesa, os olhos de Thanh Luong se iluminavam com orgulho da cultura do seu país. Nossa amizade se tornou muito profunda.

Então um dia quando ele veio me visitar, Thanh Luong anunciou que sua unidade iria se mudar para outra área, e era provável que ele logo voltasse para a França. Levei-o até ao portão do templo e nos abraçamos em adeus. "Vou escrever-lhe, irmão," ele disse.

"Ficarei muito feliz em receber suas cartas e em responder."

Um mês depois, recebi uma carta com a notícia de que ele iria realmente voltar para a França, mas em seguida, iria para a Argélia. Ele prometeu me escrever de lá. Não tenho notícias dele desde então. Quem sabe onde Thanh Luong está agora. Estaria ele seguro? Mas eu sei que última vez que o vi, ele estava em paz. Aquele momento de profundo silêncio no templo o havia mudado. Ele permitiu que as vidas de todos os seres vivos preenchessem seu coração, e viu a insensatez e a destruição da guerra. O que tornou tudo isso possível foi aquele momento de completa e total parada e a abertura ao oceano poderoso, curador e milagroso chamado silêncio.

(Trecho do livro de Thich Nhat Hanh – At Home on the World)
(Tradução – Leonardo Dobbin)

segunda-feira, 21 de maio de 2018

Tomar Conta de Nós Mesmos

Temos que aprender como tomar conta de nós mesmos ao longo do dia enquanto caminhamos, sentamos, comemos ou escovamos nossos dentes. Nosso lar é composto pelo nosso corpo, sentimentos, emoções, percepções e consciência. O território de nosso lar é largo e somos o monarca responsável por ele. Deveríamos saber como retornar ao lar e tomar conta do nosso corpo e mente. Plena atenção pode ajudar.

Suponha que tenhamos dor, tensão e estresse no nosso corpo. O primeiro passo é voltar a ele e tomar conta. Podemos fazer isso tomando um momento para ficarmos imóveis e dizer:

Inspirando, estou consciente do meu corpo inteiro.
Expirando, deixo ir embora todas as tensões no meu corpo.

Depois de sabermos como tomar conta de nosso corpo, aprendemos como tomar conta de nossos sentimentos e nossas emoções. Com plena atenção podemos trazer a tona sentimentos de alegria e felicidade. Quando uma emoção forte surge, deveríamos saber como tomar conta dela. Podemos repetir este pequeno poema, chamado gatha, para nos ajudar a cuidar dessas emoções.

Inspirando, estou consciente do sentimento doloroso em mim.
Expirando, estou abraçando este sentimento com ternura.

Não tente cobrir este sentimento através do consumo. Muitos de nós tentaríamos evitar nossa dor, afogando o sentimento com filmes, internet, livros, álcool, comida, compras e conversas de forma que não tenhamos que sentir o nosso sofrimento. No final, isso apenas torna a situação pior.

O Buda disse que nada pode sobreviver sem comida. Se nossa dor, tristeza e medos ainda estão presentes, é porque continuamos a alimentá-los. Uma vez que tenhamos reconhecido e abraçado nossa dor, tristeza, medo e encontrarmos algum alívio, podemos continuar a praticar o olhar em profundidade para a natureza da nossa dor de forma a reconhecer suas raízes. Podemos reconhecer que tipos de nutrientes trouxeram nosso mal-estar, medo e depressão.

Se sofremos de depressão, significa que temos vivido e consumido de tal forma que torna a depressão possível. O Buda disse que se olharmos profundamente no que veio a ser, nominalmente nosso mal-estar, e reconhecer a fonte do nutriente que a trouxe a tona, já estamos no caminho da emancipação.

Nossos filhos podem consumir muita violência, medo e desejo. Quando eles vêem televisão, testemunham milhares de atos de violência que fazem as sementes de violência, desejo e medo neles crescer. Agora há muita violência nos jovens e eles não sabem como lidar com suas emoções e sofrimento. Nós, pais e educadores, deveríamos ser capazes de ajudá-los a lidar com seus medos, raiva e violência.

A população da França não é muito grande, mas mesmo assim a cada ano doze mil jovens cometem suicídio. Eles são vítimas de emoções fortes como raiva, medo e desespero. Na escola não ensinam a eles como lidar com essas emoções fortes. É muito importante que nós, pais e professores, possamos aprender como lidar com as nossas emoções de forma que possamos ajudar aos jovens em casa e na sala de aula a fazer o mesmo.

Consumimos de tal forma que nosso medo, raiva e desespero cresceram e ficaram grandes, portanto o consumo consciente é a resposta e é nossa prática. Deveríamos consumir de tal forma que previna que os elementos negativos em nós sejam nutridos.

Amor também não pode sobreviver sem comida. Se não alimentarmos nosso amor, ele irá morrer algum dia. É por isso que é muito importante reconhecer que tipo de alimentos precisamos para nutrir as coisas boas em nós. Podemos consumir apenas essas coisas que desenvolvem nosso entendimento, nossa compaixão e nosso amor.

Aqui estão práticas que você pode aplicar em sua vida diária para fortalecer a energia da plena atenção, reduzir a tensão e nutrir a alegria. Você pode começar devagar, aplicando apenas uma prática na sua vida diária e gradualmente aumentando o número. Você não precisa praticar a plena atenção perfeitamente antes que possa compartilhar com as crianças. Quando você começar a praticar já começa a se transformar, e o fruto da sua transformação – mesmo que seja bem pequeno, irá beneficiar seus filhos, seus alunos ou os jovens com os quais você trabalha.

Primeira prática: Estabelecer uma rotina diária de plena atenção

É muito útil separar cinco a dez minutos a cada dia para a respiração consciente, durante a manhã ou à noite. Tente praticar na mesma hora todo dia em um lugar que apóie sua calma e concentração. Você pode sentar em uma cadeira ou numa almofada no chão. Sente-se confortavelmente com suas costas retas, mas relaxadas. Você pode fechar seus olhos ou mantê-los semi-cerrados. Simplesmente siga sua inspiração e expiração, dando atenção a sua inspiração e expiração do início ao fim.

Segunda prática: Meditação guiada

A meditação guiada pode ser praticada na posição sentada, durante a caminhada ou deitado na cama antes de dormir. Pratique cada exercício por pelo menos dez inspirações e expirações, usando as palavras chave que sumarizam cada exercício. Se sua mente vaguear, apenas gentilmente traga-a de volta para a respiração e para as palavras-chave.

Terceira Prática: Uma ação em plena atenção

Em adição a praticar a respiração consciente diariamente, você pode escolher ficar totalmente consciente de uma ação todo dia. Cada vez que eu subo escadas, eu desfruto de cada passo. Inspirando, eu dou meu passo e sorrio. Expirando, eu desfruto. Eu fiz um tratado com as escadas de meu eremitério que se eu esquecer de desfrutar um passo, se eu der um passo sem plena atenção, então eu volto e tento novamente! Se você gostar, pode assinar um tratado de paz com suas escadas, com uma parte da rota de sua casa ao ponto de ônibus, ou de seu trabalho até o seu carro.

Você pode escolher outras atividades para desfrutar profundamente: talvez escovar os dentes em total atenção, abrir e fechar portas, ligar a luz ou dirigir. Seja quando for que você fizer essas atividades, não permita que sua mente esteja em outro lugar perdida no seu pensamento; traga cem por cento de sua atenção para o ato e faça dele uma meditação.

Quarta Prática: Poemas para respiração

Gathas são pequenos poemas de plena atenção que podemos usar para trazer mais despertar à nossa vida diária. Podemos recitar uma linha com nossa inspiração e a seguinte com nossa expiração. Seja criativo e faça seus próprios poemas para as atividades que você quer mais atenção da mente.

Quinta prática: meditação do sorriso

É importante não esquecer do nosso sorriso e do poder que tem. Nosso sorriso pode trazer muita alegria e relaxamento para nós e para os outros ao nosso redor ao mesmo tempo. Sorrir é um tipo de yoga da boca. Quando sorrimos, relaxa a tensão na nossa face. Outros notam isto, mesmo estranhos e provavelmente vão sorrir de volta. Ao sorrir, iniciamos uma maravilhosa reação em cadeia, tocando a alegria em cada um que encontramos. Um sorriso é um embaixador da boa vontade. Ao sorrir, tome algumas inspirações e expirações.

Inspirando, eu sorrio
Expirando, eu relaxo e toco a alegria

Sexta Prática: Dia do Ócio

Em todos os centros de prática de Plum Village ao redor do mundo, há um Dia do Ócio uma vez por semana onde não há nenhuma atividade programada exceto as refeições. Quando sabemos como viver profundamente, nosso Dia do Ócio pode ser o dia mais delicioso da semana. Ficar ocioso não significa que não praticamos, mas simplesmente que praticamos por nossa conta. Não há sinos chamando para as atividades, não há agenda, e todos estão livres para fazerem o que quiserem, incluindo dormir ou ler.

O Dia do Ócio é um dia muito sagrado, similar ao Sabath em outras tradições. No Dia do Ócio tentamos ficar o mais ocioso possível. Não é fácil ficar ocioso porque temos o hábito de sempre fazermos alguma coisa.

Se quisermos podemos descansar em uma rede. Podemos praticar meditação caminhando por nossa conta ou podemos organizar um piquenique. Podemos desligar o celular e o computador e dar a nós mesmos tempo e espaço para fazer outras coisas que não podemos fazer nos outros dias, como dar uma longa caminhada, escrever um poema, fazer uma xícara de chá e bebê-la lentamente enquanto contemplamos o céu, ou convidar um amigo para sentar silenciosamente conosco em quanto desfrutamos da sua companhia. Seja o que for que fizermos, fazemos com plena atenção, porque é a melhor maneira de desfrutar profundamente.

Não fazer nada, apenas desfrutar de nós mesmos e o que quer que esteja ao nosso redor é uma prática muito profunda porque todos temos uma energia dentro de nós que nos empurra constantemente a fazer isto ou aquilo. Não podemos sentar ou deitar parados e desfrutar de nós mesmos ou do bonito céu azul. Se não estivermos fazendo algo, não podemos suportar. Temos que praticar de forma a transformar este tipo de energia de hábito que está sempre nos empurrando a fazer ou dizer algo.

Se formos capazes de fazer isso, nosso Dia do Ócio será recompensador. Se não pudermos pegar um dia inteiro, podemos dispor de meio dia ou algumas horas por semana. Cada Dia do Ócio pode nos oferecer diferentes coisas a fazer – não exatamente a fazer, mas a ser.

(Do livro “Planting Seeds” – Thich Nhat Hanh)
(Traduzido por Leonardo Dobbin)

segunda-feira, 14 de maio de 2018

Parar, Acalmar-se, Descansar e Curar-se

A meditação budista tem dois aspectos - shamatha e vipashyana. Existe uma tendência a enfatizar a importância da vipashyana ("olhar em profundidade"), uma vez que ela tem o potencial de nos proporcionar insight e nos libertar do sofrimento e das aflições. Mas a prática da shamatha ("cessação") é fundamental. Se não conseguirmos parar, o insight não chegará a nós.

Existe uma história zen sobre um homem e um cavalo. O cavalo está galopando rapidamente, e parece que o homem que cavalga se dirige a algum lugar importante. Outro homem, em pé ao lado da estrada, grita: "Aonde você está indo?" e o homem a cavalo responde: "Não sei. Pergunte ao cavalo!" Esta é a nossa história. Estamos todos sobre um cavalo, não sabemos aonde vamos e não conseguimos parar. O cavalo é a força de nossos hábitos que nos puxa, e somos impotentes diante dela. Estamos sempre correndo, e isso já se tornou um hábito. Estamos acostumados a lutar o tempo todo, até mesmo durante o sono. Estamos em guerra com nós mesmos, e é fácil declarar guerra aos outros também.

Precisamos aprender a arte de fazer cessar - parar nosso pensamento, a força de nossos hábitos, nossa desatenção, bem como as emoções intensas que nos regem. Quando uma emoção nos assola, ela se assemelha a uma tempestade, que leva consigo a nossa paz. Nós ligamos a TV e depois a desligamos, pegamos um livro e depois o deixamos de lado. O que podemos fazer para interromper este estado de agitação? Como podemos fazer cessar o medo, o desespero, a raiva e os desejos? É simples. Podemos fazer isso através da prática da respiração consciente, do caminhar consciente, do sorriso consciente e da contemplação profunda - para sermos capazes de compreender. Quando prestamos atenção e entramos em contato com o momento presente, os frutos que colhemos são a compreensão, a aceitação, o amor e o desejo de aliviar o sofrimento e fazer brotar a alegria.

Mas a força do hábito costuma ser mais forte do que nossa vontade. Dizemos e fazemos coisas que não queremos e depois nos arrependemos. Causamos sofrimento a nós mesmos e aos outros, e de forma geral produzimos grande quantidade de destruição. Podemos ter a firme intenção de nunca mais fazer isso, mas sempre acabamos fazendo de novo. Por quê? Porque a força do hábito acaba vencendo e nos levando de roldão.

Precisamos da energia da atenção plena para perceber quando o hábito nos arrasta, e fazer cessar esse comportamento destrutivo. Com atenção plena, temos a capacidade de reconhecer a força do hábito a cada vez que ela se manifesta. "Alô força do hábito, sei que você está aí!" Nessa altura, se conseguirmos simplesmente sorrir, o hábito perderá grande parte de sua força. A atenção plena é a energia que nos permite reconhecer a força do hábito e impedi-la de nos dominar.

Por outro lado, o esquecimento ou negligência é o oposto. Tomamos uma xícara de chá sem sequer perceber o que estamos fazendo. Sentamo-nos com a pessoa que amamos, mas não percebemos que a pessoa está ali. Andamos sem realmente estar andando.

Estamos sempre em outro lugar, pensando no passado ou no futuro. O cavalo dos nossos hábitos nos conduz, e somos prisioneiros dele. Precisamos deter este cavalo e resgatar nossa liberdade. Precisamos irradiar a luz da atenção plena em tudo o que fizermos, para que a escuridão do esquecimento desapareça. A primeira função da meditação - shamatha - é fazer parar.

A segunda função da shamatha é acalmar. Quando sofremos uma emoção forte, sabemos que talvez seja perigoso agir sob sua influência, mas não temos força nem clareza suficientes para nos abstermos. Precisamos aprender a arte de respirar, de inspirar e expirar, parando tudo o que estamos fazendo e acalmando nossas emoções. Precisamos aprender a nos tornar mais estáveis e firmes, como se fossemos um carvalho, e não nos deixar arrastar pela tempestade de um lado para outro. O Buda ensinou uma variedade de técnicas para nos ajudar a acalmar corpo e mente, e considerar a situação presente em toda a sua profundidade. Essas técnicas podem ser resumidas em cinco estágios:

            (1) Reconhecimento - se estamos zangados, dizemos "reconheço que a raiva está dentro de mim".
            (2) Aceitação - quando estamos zangados, não negamos a raiva. Aceitamos aquilo que está presente em nós.
(3) Acolher - abraçamos a raiva como faz uma mãe com o filho que chora. Nossa atenção plena acolhe a emoção, e só isso já é capaz de acalmar a raiva e a nós mesmos.
            (4) Olhar em profundidade - quando nos acalmamos o suficiente, conseguimos observar profundamente para entender o que provocou a raiva, ou seja, o que está fazendo o bebê chorar.
(5) Insight - o fruto do olhar profundo é a compreensão das causas e condições, tanto primárias quanto secundárias, que provocaram a raiva e fizeram nosso bebê chorar. Talvez ele esteja com fome. Talvez o alfinete da fralda o esteja machucando. Talvez nossa raiva tenha surgido quando um amigo nos falou em um tom ofensivo, mas de repente nos lembramos de que essa pessoa não está bem hoje porque seu pai está muito doente. Continuamos a refletir dessa forma até compreendermos a causa de nosso atual sofrimento. A compreensão nos dirá o que fazer ou não fazer para mudar a situação.

Depois de nos acalmarmos, a terceira função da shamatha é o repouso. Suponha que alguém nas margens de um rio joga uma pedra para o ar e a pedra cai no rio. A pedra afunda lentamente e chega ao fundo do rio sem esforço algum. Depois que a pedra chega ao fundo do rio, ela descansa, deixando que a água passe por ela. Quando sentamos para meditar podemos nos permitir repousar da mesma forma que essa pedra. Podemos nos deixar afundar naturalmente, na posição sentada - repousando, sem fazer esforço. Temos que aprender a arte de repousar, permitindo que nosso corpo e nossa mente descansem. Se tivermos feridas em nosso corpo e em nossa mente precisamos repousar para que elas possam por si só se curar.

O ato de se acalmar produz o repouso, e o descanso é um pré-requisito para a cura. Quando os animais selvagens estão feridos, eles procuram um lugar escondido para deitar, e descansam completamente por muitos dias. Não pensam em comida nem em mais nada. Apenas descansam, e com isso obtêm a cura de que precisam. Quando nós seres humanos ficamos doentes, nos preocupamos o tempo todo. Procuramos médicos e remédios, mas não paramos. Mesmo quando vamos para a praia ou para as montanhas com a intenção de descansar, não chegamos realmente a repousar, e voltamos mais cansados do que partimos. Temos que aprender a repousar.

A posição deitada não é a única posição de descanso que existe. Podemos descansar muito bem durante meditações sentados ou caminhando. A meditação não deve ser um trabalho árduo. Simplesmente permita que seu corpo e sua mente descansem, como o animal no mato. Não lute. Não há necessidade de fazer nada nem realizar nada. Eu estou escrevendo um livro, mas não estou lutando. Estou descansando. Por favor, leiam este livro de uma forma alegre e relaxante. O Buda disse: "Meu Darma é a prática do não-fazer." Pratiquem de uma forma que não seja cansativa, mas que seja capaz de proporcionar descanso ao corpo, às emoções e à consciência. Nosso corpo e mente sabem curar a si mesmos se lhes dermos uma oportunidade para isso.

Parar, acalmar-se e descansar são pré-requisitos para a cura. Se não conseguirmos parar, nosso ritmo de destruição simplesmente vai prosseguir. O mundo precisa imensamente de cura. Os indivíduos, comunidades e países estão cada vez mais necessitados de cura.

(Do livro “A Essência dos ensinamentos de Buda” – Thich Nhat Hanh)

segunda-feira, 7 de maio de 2018

Cinco Práticas para o Cultivo da Felicidade p.2: A Prática da Autorregulação

Podemos regular nossos corpos e mentes para a felicidade através das cinco práticas de: “Deixar ir”, “Atraindo sementes positivas”, “Plena Atenção”, “Concentração” e “Discernimento”.

1. Deixar Ir

O primeiro método para fazer surgir alegria e felicidade é soltar as amarras, deixar para trás. Há um tipo de alegria que vem como o ato de deixar ir. A maioria de nós está presa a muitas coisas. Acreditamos que essas coisas são necessárias para nossa sobrevivência, nossa segurança e nossa felicidade. Mas muitas dessas coisas — ou mais precisamente, nossas crenças sobre sua necessidade absoluta — são realmente obstáculos para nossa alegria e felicidade.

Às vezes você acha que ter uma certa carreira, diploma, salário, casa, ou parceiro é crucial para a sua felicidade. Você acha que não pode continuar sem essas realizações. E mesmo quando você alcança tais situações, ou conquista tal pessoa, você continua a sofrer. Ao mesmo tempo, você continua a temer que, ao desprender-se do prêmio ao qual está apegado, será ainda pior; pensa que ficará ainda mais infeliz sem o objeto no qual está se agarrando. Você não pode conviver com isso, e não pode viver sem isso.

Se você for capaz de olhar profundamente para seu apego assustador, vai perceber que na verdade ele é o real obstáculo para sua alegria e felicidade. Você tem condições de libertar-se dele. Deixar ir exige muita coragem, às vezes. Mas uma vez que você se liberta, a felicidade retornará muito rapidamente. Você não precisa sair por aí procurando por ela.

Imagine que você é um típico morador da cidade, viajando no fim de semana para o campo. Se você vive em uma grande metrópole, há muito ruído, poeira, poluição e odores, mas também muitas oportunidades e excitação.

Um dia, um bom amigo o convence a se afastar por alguns dias. No começo você argumenta, "Eu não posso. Eu tenho muito trabalho. Eu poderia perder algum telefonema importante." Mas finalmente ele lhe persuade a viajar, e uma ou duas horas mais tarde você está no campo. Você vê o espaço aberto. Olha o céu, e sente a brisa no rosto. A felicidade nasce do fato de que você foi capaz de deixar a cidade para trás. Se não a tivesse deixado, como poderia experimentar esse tipo de alegria? Você precisou libertar-se.

2. Convidando Sementes Positivas

Todos nós possuímos diversos tipos de "sementes" armazenadas profundamente em nosso subconsciente. Aquelas que estimulamos são as que brotam, surgem em nossa percepção, e manifestam-se externamente [em nossos atos, palavras e pensamentos].

Então, em nossa própria consciência existe o inferno, mas também o paraíso. Nós somos capazes de ser compassivos, compreensivos e alegres. Se prestarmos atenção apenas nas coisas negativas em nós, especialmente o sofrimento das dores que ocorreram em nosso passado, iremos mergulhar em lamentações e não obter qualquer nutrição positiva.

Podemos, por outro lado, praticar a correta atenção, favorecendo as qualidades saudáveis em nós por meio do resgate de coisas positivas que estão sempre disponíveis em nosso interior e em torno de nós. Esta prática nos fornece bom alimento para nossa mente.

Uma forma de cuidar de nosso sofrimento é convidar uma semente de natureza oposta a crescer. Como não existe nada sem o seu oposto, se você possui em si a semente da presunção, também possui a semente de compaixão. Todos nós possuímos a semente de compaixão.

Se você praticar a plena consciência da compaixão todos os dias, a semente da compaixão em você vai se tornar forte. É preciso apenas concentrar-se nela, e ela irá surgir como uma poderosa zona de energia. Quando a compaixão surge, a arrogância naturalmente volta a mergulhar no subconsciente. Não é preciso entrar em conflito com a semente da arrogância, ou empurrá-la para o fundo.

Podemos seletivamente regar as boas sementes e abster-se de regar as sementes negativas. Isto não significa ignorar nosso sofrimento; apenas significa permitir que as sementes positivas, naturalmente existentes em nossa mente, recebam atenção e cuidado [para que assim nos ajudem a reconhecer, compreender, transformar e curar nosso sofrimento].

3. Plena Consciência como fonte de alegria

A plena consciência nos ajuda não só a entrar em contato com o sofrimento para assim podermos abraça-lo e transformá-lo, mas também a tocar as maravilhas da vida, incluindo nosso próprio corpo. Assim, inspirar torna-se um deleite, e expirar também pode ser uma delícia. Você realmente torna-se capaz de desfrutar sua respiração.

Alguns anos atrás, eu contraí um vírus nos meus pulmões que os fazia sangrar. Eu cuspia sangue. Com pulmões assim era difícil respirar, e era difícil ser feliz enquanto se respirava. Após o tratamento, meus pulmões se curaram e minha respiração ficou muito melhor. Agora, quando eu respiro, tudo o que preciso fazer é lembrar da época em que meus pulmões estavam infectados com o vírus. Então cada respiração que faço torna-se realmente deliciosa, muito boa.

Quando praticamos a respiração consciente ou o caminhar consciente, trazemos nossa mente de volta para o abrigo de nosso corpo, e nos firmamos no aqui e o agora. Nos sentimos muito afortunados; percebemos muitas condições para atingir a felicidade disponíveis para nós. Alegria e felicidade surgem imediatamente. Assim, plena consciência é uma fonte de alegria. Plena consciência é uma fonte de felicidade.

Plena consciência é uma energia que você pode gerar durante o dia inteiro através de sua prática. Você pode lavar os pratos em plena consciência. Você pode cozinhar seu jantar em plena consciência. Você pode esfregar o chão em plena consciência. E com atenção plena, você pode alcançar as muitas condições de felicidade e alegria que já estão disponíveis. Você é um verdadeiro artista. Você sabe como criar alegria e felicidade no momento que quiser. Esta é a alegria e a felicidade nascida da plena consciência.

4. Concentração

Concentração nasce da plena consciência. A concentração tem o poder de romper, consumir as aflições que lhe fazem sofrer, e assim abrir caminho para que a alegria e a felicidade possam entrar. Permanecer no momento presente exige concentração. Preocupações e ansiedades sobre o futuro estão sempre próximas, prontas para nos levar embora. Podemos vê-las, reconhecê-las e usar nossa concentração para retornar ao momento presente.

Quando possuímos concentração, obtemos muita energia. Não nos deixamos levar por visões de sofrimentos passados ou temores sobre o futuro. Habitamos com solidez no momento presente e assim temos condições de entrar em contato com as maravilhas da vida, gerando alegria e felicidade.

Concentração é sempre concentração em algo. Ao concentrar-se com fluidez em sua respiração, você já está cultivando força interior. Quando retornar ao presente para sentir a respiração, concentre-se nela com todo seu coração e mente. Concentrar-se não é trabalho duro. Você não tem que exigir muito de si ou fazer um esforço enorme. Desta forma, a felicidade surge de forma leve e fácil.

5. Discernimento

Com atenção plena, reconhecemos a tensão em nosso corpo e queremos muito solta-la, mas às vezes não podemos. O que precisamos é obter um pouco mais de discernimento. Discernimento significa ver o que está presente. É a clareza que pode libertar-nos de aflições como ciúme ou raiva, e permitir que a verdadeira felicidade apareça. Todos nós possuímos o dom do discernimento, embora nem sempre o usamos para favorecer nossa felicidade.

Podemos saber, por exemplo, que algo (um forte desejo, ou rancor) é um obstáculo para a nossa felicidade, e que isso nos conduz à ansiedade e ao medo. Mas também sabemos que essa coisa não vale o sono que estamos perdendo por causa dela. Ainda assim, perdemos nosso tempo e energia com essa obsessão. Somos como um peixe que foi capturado uma vez antes e descobriu que há um anzol escondido sob a isca; se o peixe for capaz de usar essa descoberta esclarecedora, ele não vai morder porque sabe que vai ser capturado pelo anzol.

Muitas vezes, mordemos a isca de nossos desejos ou rancores, e deixamos o anzol nos capturar. Ficamos seduzidos e presos a estas situações que não são dignas de nossa atenção. Se a plena consciência e concentração estão presentes então o correto discernimento também estará, e poderemos usá-lo para nos afastar bem longe, livres.

Na primavera, quando há muito pólen no ar, muitos têm dificuldade para respirar devido a alergias. Mesmo quando não estamos correndo 8km e só queremos sentar ou deitar, não conseguimos respirar muito bem. Então no inverno, quando não há nenhum pólen, em vez de reclamar do frio podemos lembrar que em abril ou maio não podíamos ir ao ar livre de forma alguma. Agora nossos pulmões estão limpos, podemos dar um passeio estimulante lá fora e respirar muito bem. Nós conscientemente resgatamos nossa experiência do passado para nos ajudar a valorizar as coisas boas que estamos obtendo neste momento.

No passado podemos realmente ter sofrido muito por uma coisa ou outra. E isso pode mesmo ter sido uma espécie de inferno. Se nos lembrarmos daquele sofrimento, não nos deixando sucumbir por sua memória, podemos usá-la para nos reassegurar, "Como sou afortunado. Não estou mais naquela situação. Eu posso ser feliz " — isso torna-se uma experiência de esclarecimento; e nesse momento, nossa alegria e nossa felicidade podem crescer muito rapidamente.

A essência da nossa prática pode ser descrita como transformar o sofrimento em felicidade. Não é uma prática complicada, mas nos obriga a cultivar plena consciência, concentração e clareza de discernimento [insight].

Antes de tudo requer que voltemos a nos abrigar em nós mesmos, que façamos as pazes com o nosso sofrimento, tratando-o com ternura e contemplando profundamente as raízes de nossa dor. Requer que saibamos nos libertar de sofrimentos inúteis, desnecessários, e observemos com cuidado nossa concepção de felicidade.

Finalmente, requer que nós saibamos nutrir a felicidade diariamente com reconhecimento, compreensão e compaixão por nós mesmos e por aqueles à nossa volta. Oferecemos estas práticas para nós mesmos, nossos entes queridos e para toda comunidade. Esta é a arte de saber como sofrer e a arte da felicidade. A cada respiração, aliviamos o sofrimento e geramos alegria. A cada passo, a flor do esclarecimento desabrocha.

Versão ao português de Monge Kōmyō (comentários entre colchetes de autoria do tradutor)
- From No Mud, No Lotus: The  Art of Transforming Suffering, by Thich Nhat Hanh

quarta-feira, 2 de maio de 2018

A Medicina da Plena Atenção (Cinco Práticas para o Cultivo da Felicidade, p.1)

Todos queremos ser felizes, e há muitos livros e professores no mundo que tentam ajudar as pessoas a se tornarem mais felizes. Contudo, ainda continuamos a sofrer. Portanto, podemos pensar que estamos "fazendo algo errado." De alguma forma estamos "falhando com a felicidade." Isso não é verdade. Ser capaz de desfrutar a felicidade não requer que nós tenhamos absolutamente nenhum sofrimento. Na verdade, a arte da felicidade também é a arte de saber como sofrer.

Quando aprendemos a reconhecer, aceitar e entender nosso sofrimento, nós sofremos muito menos. Não apenas isso, mas também seremos capazes de ir ainda mais fundo, e transformaremos o nosso sofrimento em compreensão, compaixão e alegria para nós mesmos e para outros.

Uma das coisas mais difíceis de aceitar é que não há nenhum reino onde existe apenas felicidade e nenhum sofrimento. Isto não significa que devemos nos desesperar. Sofrimento pode ser transformado. Assim que abrirmos nossa boca para dizer "sofrimento", sabemos que o oposto de sofrimento já está lá também. Onde existe sofrimento, existe também a felicidade. De acordo com a história da criação no livro bíblico do Gênesis, Deus disse, "Que haja luz". Eu gosto de imaginar que a luz respondeu, dizendo: "Deus, eu tenho que esperar minha irmã gêmea, a Escuridão, para estar comigo. Eu não posso existir sem a escuridão." Deus replica, "Por que precisa esperar? A escuridão já está aqui." A Luz então diz, "Nesse caso, então eu também estou presente."

Se nos concentrarmos exclusivamente em buscar a felicidade, podemos considerar o sofrimento como algo a ser ignorado ou reprimido. Podemos pensar nisso como algo que se consegue enquanto estamos a caminho da felicidade. Mas a arte da felicidade também é a arte de saber como sofrer. Se sabemos como lidar com o nosso sofrimento, podemos transformá-lo e sofrer muito menos. Saber como sofrer é essencial para que possamos realizar a verdadeira felicidade.

A maior aflição de nossa civilização moderna é que não sabemos como lidar com o sofrimento dentro de nós, e assim tentamos ocultá-lo usando todos os tipos de consumo. As lojas vendem uma infinidade de dispositivos para nos ajudar a esconder nosso sofrimento interior. Mas até que sejamos capazes de enfrentar o nosso sofrimento, não seremos capazes de realmente estar presentes e disponíveis para a vida, e a felicidade continuará a nos escapar.

Há muitas pessoas que têm enorme sofrimento dentro de si, e não sabem como lidar com isso. Para muitas pessoas, isso começa em uma tenra idade. Então, por que nossas escolas não ensinam aos jovens as maneiras saudáveis de lidar com o sofrimento? Se um aluno está muito infeliz, ele não consegue se concentrar e não aprenderá. O sofrimento em cada um de nós afeta todos os outros à nossa volta. Quanto mais aprendermos sobre a arte de sofrer corretamente, menos sofrimento haverá no mundo.

A plena consciência é a melhor maneira de conviver com o nosso sofrimento sem ser oprimido por ele. Plena Consciência é a capacidade de viver no momento presente, saber claramente o que está acontecendo aqui e agora. Por exemplo, quando vamos levantar os dois braços, estamos conscientes do fato de que vamos levantar os braços. Nossa mente é una nosso levantamento de nossos braços, e nós não pensamos sobre o passado ou o futuro, porque levantar os braços é o que está acontecendo no momento presente. Ser consciente significa estar atento. Esta é a energia que sabe o que está acontecendo no momento presente.

Levantar os braços e estar atento ao ato de levantar nossos braços — isso é plena consciência, atenção plena da nossa ação. Quando inspiramos e sabemos que estamos inspirando, isso é atenção plena. Quando damos um passo, e sabemos claramente que o ato de dar um passo está ocorrendo, estamos conscientes de cada passo. Plena consciência é sempre ter clara consciência de algo.

Essa é a energia que nos ajuda a estar ciente do que está acontecendo aqui e agora — em nosso corpo, nossos sentimentos, nossa percepção, em tudo à nossa volta. Com plena consciência, você pode reconhecer a presença do sofrimento em si mesmo e no mundo. É com essa mesma energia que você irá se tornar capaz de abraçar ternamente o sofrimento.

Por estar ciente de seu inspirar e expirar, você é capaz de gerar a energia de consciência, e assim é possível cuidar de seu sofrimento. Praticantes de plena consciência podem ajudar e apoiar uns aos outros para reconhecer, abraçar e transformar o sofrimento. Com atenção plena, não mais teremos medo da dor. Podemos até mesmo ir mais longe e fazer bom uso do sofrimento, para assim gerar a energia de compreensão e compaixão que irá nos curar. E quando isso acontecer, também poderemos ajudar os outros em direção a cura e a felicidade.

Começamos a produzir a medicina da plena atenção por meio da ação de parar e respirar conscientemente, colocando nosso foco no inspirar e expirar. Quando paramos e respiramos desta maneira, unimos corpo e mente e voltamos a nos abrigar em nós mesmos. Percebemos nossos corpos plenamente.

Estaremos verdadeiramente vivos somente quando a mente estiver unida ao corpo. A grande notícia é que esta unicidade de corpo e mente pode ser realizada através de uma simples inspiração. Talvez em alguns momentos não somos gentis o suficiente com o nosso corpo. Ao reconhecer a tensão, a dor, o stress em nosso corpo, poderemos banhá-lo em nossa energia de consciência, e isso é o começo da cura.

Se nós cuidarmos do sofrimento dentro de nós, teremos mais clareza, energia e força para nos ajudar a lidar com o sofrimento de nossos entes queridos, bem como o sofrimento existente em nossa comunidade e no mundo. Se, no entanto, estamos preocupados com o medo e desespero existentes em nós, nós não podemos ajudar a remover o sofrimento dos outros.

Há uma espécie de arte em saber sofrer. Se nós soubermos como cuidar de nosso sofrimento, não apenas sofreremos muito, muito menos, mas também iremos criar mais felicidade ao nosso redor e no mundo.

Quando eu era um jovem monge, eu me perguntava por que o Buddha continuou praticando plena consciência e meditação mesmo depois que ele já havia se tornado um Buddha. Agora eu sei que a resposta é simples o bastante para se perceber. Felicidade é impermanente, como tudo o mais. Para que a felicidade seja ampliada e renovada, temos que aprender a alimentar nossa felicidade.

Nada pode sobreviver sem alimento, incluindo a felicidade; sua felicidade pode morrer se você não souber como alimentá-la. Se você cortar uma flor, mas não a coloca na água, a flor vai murchar em poucas horas. Mesmo se a felicidade já está manifestada, temos que continuar a alimentá-la. Esta prática às vezes é chamada de autorregulação, e é muito importante.

Versão ao português de Monge Kōmyō (comentários entre colchetes de autoria do tradutor)
- From No Mud, No Lotus: The  Art of Transforming Suffering, by Thich Nhat Hanh