segunda-feira, 25 de junho de 2018

A Prática da Felicidade

Para mim, ser feliz significa sofrer menos. Se não fôssemos capazes de transformar a dor que existe dentro de nós, a felicidade seria impossível. Muitas pessoas procuram a felicidade fora de si mesmas, mas a verdadeira felicidade precisa vir de dentro de nós. Nossa cultura tem muitas receitas de felicidade, e afirma que a atingimos quando possuímos uma grande quantidade de dinheiro, muito poder e uma elevada posição na sociedade. Mas, se você observar com cuidado, verá que numerosas pessoas ricas e famosas não são felizes. Até você já viveu esta experiência: depois de alcançar um bem material que desejava ardentemente, experimentou alegria durante um certo tempo, mas rapidamente voltou à insatisfação inicial, passando a desejar outra coisa. Este é um processo interminável e frustrante.

O Buda e os monges da época dele não possuíam nada, a não ser três mantos e uma tigela de comida, mas eram felizes porque tinham algo extremamente precioso: a liberdade. De acordo com os ensinamentos do Buda, a condição básica para a felicidade é a liberdade. Não estamos nos referindo aqui à liberdade política, e sim à liberdade que conquistamos quando nos libertamos da raiva, do desespero, do ciúme e das ilusões. Buda os descreve como venenos. Enquanto eles estão no nosso coração, é impossível ser feliz.

Estamos muito estruturados em nossos comportamentos. Vivemos num mundo violento e reproduzimos, desde muito cedo, sem nos darmos conta, essa violência nos pequenos gestos do cotidiano, na relação com nossos parceiros, filhos, família, companheiros de trabalho, pessoas com quem cruzamos na rua. Regamos abundantemente a semente da raiva existente dentro de cada um de nós, e nos descuidamos das sementes do amor, da compaixão, da doçura, da solidariedade. Solidificamos os hábitos agressivos e recebemos agressão de volta, num processo sem fim.

Para que essa estrutura seja desmanchada, para que as sementes positivas sejam nutridas e para que o hábito se transforme, é necessário ouvirmos muitas vezes os novos conceitos, as novas práticas, os novos ensinamentos. Por isso eles serão repetidos, para que impregnem o seu ser, condicionem uma nova consciência, comecem a se traduzir nas suas atitudes, e tragam, para você e para o mundo, a paz, a felicidade e a harmonia que todos buscamos.

Suponhamos que, numa determinada família, pai e filho estão com raiva um do outro. Eles não conseguem mais se comunicar e por isso sofrem muito: Nenhum dos dois quer permanecer preso à raiva que estão sentindo, mas não sabem como dominá-la.

Quando estamos com raiva, sofremos como se estivéssemos ardendo no fogo do inferno. Quando sentimos um grande desespero ou ciúme, estamos no inferno. Precisamos, nesses momentos, procurar um amigo ou uma amiga que nos ajude a transformar a raiva e o desespero que ardem em nós.

Ouvir com compaixão alivia o sofrimento. Quando as palavras de uma pessoa estão cheias de raiva, é sinal de que ela está sofrendo profundamente. Por sofrer tanto, ela fica cheia de amargura, torna-se agressiva e está sempre pronta a se queixar e culpar os outros por seus problemas. Por isso você acha muito desagradável escutar o que ela tem a dizer e procura evitá-la. Para compreender e transformar a raiva, precisamos aprender a ouvir com compaixão e usar palavras amorosas.

Compaixão não é pena, é solidariedade, é colocar-se no lugar do outro para compreender o que ele sente. Existe um Bodisatva um Grande Ser capaz de ouvir profundamente e com grande compaixão. Quando somos capazes de ouvir alguém com compaixão, como este Grande Ser, conseguimos aliviar o sofrimento e oferecer uma orientação concreta àqueles que nos procuram em busca de ajuda. Não tenha pressa. Fique tranqüilamente ao lado da pessoa durante o tempo que for necessário e escute o que ela tem a dizer, deixando que ela se expresse livremente. Repito, você poderá aliviar grande parte do sofrimento dela se mantiver viva a compaixão durante todo o tempo em que a estiver ouvindo.

Você precisa se concentrar bastante enquanto escuta, ouvindo com todo o seu ser: com os olhos, os ouvidos, o corpo a mente. Se você apenas fingir que está ouvindo e não se esforçar para prestar atenção com a totalidade do seu ser, a outra pessoa perceberá isso e o sofrimento dela não será aliviado. Não é fácil manter essa concentração, porque o nosso pensamento se evade muitas vezes. Mas se você respirar serena e profundamente e trouxer de volta a atenção sempre que ela se dispersar, com o desejo sincero de ajudar a pessoa a encontrar alívio, você será capaz de sustentar a compaixão enquanto estiver ouvindo. Ouvir com compaixão é uma prática muito profunda. Você não ouve para julgar ou culpar ninguém. Você só escuta porque quer que a outra pessoa sofra menos. Ela pode ser seu pai, seu filho, sua filha, seu companheiro ou alguém amigo. Ouvir a outra pessoa pode efetivamente ajudar a transformar a raiva e o sofrimento dela.

Conheço uma mulher católica que mora na América do Norte. Ela sofria muito porque seu relacionamento com o marido era extremamente difícil. O casal tinha uma formação acadêmica elevada, mas o marido estava em guerra com a mulher e os filhos, não conseguindo muitas vezes nem mesmo falar com eles. Todos na família procuravam evitá-lo, porque ele era como uma bomba prestes a explodir. A raiva dele era enorme, o que o fazia sofrer bastante. Ele achava que a mulher e os filhos o desprezavam, porque se afastavam dele. Não era desprezo o que a mulher e os filhos sentiam, era medo. Ficar perto daquele homem era perigoso, porque ele podia explodir a qualquer momento.

Certo dia, a esposa pensou em se matar porque não podia mais suportar a situação. Mas, antes de cometer suicídio, ela telefonou para uma amiga que era praticante do budismo e contou o que estava planejando. A amiga a havia convidado várias vezes para praticar a meditação, a fim de sofrer menos, mas ela sempre recusara o convite, explicando que, sendo católica, não poderia praticar ou seguir os ensinamentos budistas. Ao tomar conhecimento de que a amiga pretendia se matar, a mulher budista disse ao telefone: "Se você é de fato minha amiga, quero lhe fazer um pedido. Tome um táxi e venha até a minha casa." Quando a mulher chegou, a amiga insistiu para que ela ouvisse uma fita que continha uma palestra do darma que ensinava como restabelecer a comunicação com os outros, sobretudo os mais próximos. Deixou-a sozinha na sala e, quando voltou, uma hora e meia depois, a amiga passara por uma grande transformação.

Ela descobrira muitas coisas. Compreendera que era em parte responsável pelo próprio sofrimento e que também tinha causado um grande sofrimento ao marido, pois não fora capaz de ajudá-lo. Entendeu que a raiva do marido era causada por um grande sofrimento e que o fato de evitá-lo apenas aumentava sua dor. As palavras da fita a fizeram entender que, para ajudar a outra pessoa, ela tinha que ser capaz de ouvir com profunda compaixão. Deu-se conta de que não conseguira fazer isso nos últimos cinco anos.

Depois de ouvir a palestra do darma, a mulher sentiu um intenso desejo de ir para casa, procurar o marido e pedir-lhe que falasse de seus sentimentos, para ajudá-lo. Mas a amiga budista lhe disse:  "Não, minha amiga, você não deve fazer isso hoje, porque, para ouvir com compaixão, é preciso treinar durante pelo menos uma ou duas semanas." A budista convidou então a amiga católica para participar de um retiro, onde ela poderia aprender mais.

Quatrocentas e cinqüenta pessoas participaram do retiro, comendo, dormindo e praticando juntas durante seis dias. Praticaram a respiração consciente, permanecendo atentas ao ar que entrava e saía, para unir o corpo e a mente. Praticaram o andar consciente, concentrando-se em cada passo, e o sentar consciente, para se tornarem capazes de observar e abraçar o sofrimento à sua volta.

Além de ouvir palestras sobre o darma, todas praticaram a arte de escutar umas às outras e usar palavras amorosas. Tentaram ouvir profundamente o que a outra dizia para compreender seu sofrimento. A mulher católica entregou-se com muita seriedade e profundidade à prática, porque para ela se tratava de uma questão de vida ou morte.

Ao voltar para casa depois do retiro, ela se sentia muito calma, com o coração repleto de compaixão, querendo sinceramente ajudar o marido a desarmar a bomba que pulsava dentro dele. Ela se movia devagar, prestando atenção em seus passos e respirando lenta e conscientemente para permanecer calma e alimentar sua compaixão. O marido notou imediatamente a mudança e surpreendeu-se quando a mulher se aproximou e se sentou perto dele, algo que não fazia há cinco anos.

Ela ficou em silêncio durante talvez dez minutos e depois colocou delicadamente a mão sobre a dele, dizendo: "Querido, eu sei que você tem sofrido muito nos últimos cinco anos e sinto muito por isso. Sei que sou em grande parte responsável pelo seu sofrimento. Cometi muitos erros e lhe causei muita dor, mesmo sem desejar. Sinto de fato muitíssimo. Gostaria que você me desse a chance de recomeçar. Quero fazer você feliz, mas não tenho sabido como, e não quero mais continuar desse jeito. Por isso, querido, preciso que você me ajude a compreendê-lo melhor para poder amá-lo melhor. Por favor, me diga o que se passa no seu coração. Eu sei que você sofre muito, mas preciso conhecer seu sofrimento para não repetir os mesmos erros do passado. Se você não me ajudar, não posso fazer nada. Preciso da sua ajuda para parar de magoá-la. Tudo o que eu quero é amar você." Ao ouvi-la falando dessa maneira, ele começou a chorar. Chorou como uma criança.

Sua mulher estivera amarga durante muito tempo. Ela gritava o tempo todo, criticando-o, e suas palavras eram cheias de raiva e agressividade. Tudo o que eles faziam era brigar um com o outro. Há anos ela não falava com ele daquele jeito, com tanto amor e carinho. Quando ela viu o marido chorar, soube que tinha uma chance. A porta do coração do marido começava a se abrir de novo. Ela sabia que precisava ter muito cuidado e por isso continuou a praticar a respiração consciente. Disse apenas: "Por favor, meu querido, abra seu coração para mim. Quero aprender a fazer melhor as coisas para não continuar a cometer erros."

Toda a formação acadêmica dos dois não lhes ensinara a ouvir um ao outro com compaixão. Mas aquela noite foi um marco na vida daquele homem e daquela mulher, porque ela aprendera a ouvir com compaixão. Passaram muitas horas conversando, e este foi o início de uma feliz reconciliação.

Quando a prática é correta e adequada, poucas horas podem ser suficientes para produzir a transformação e a cura. A conversa daquela noite fez com que o marido se inscrevesse também em um retiro.

Esse retiro durou seis dias e também causou no marido uma grande transformação. Durante uma meditação do chá, ele apresentou a mulher aos outros participantes, dizendo: "Queridos amigos e companheiros, gostaria de apresentar a vocês um Bodisatva, um Grande Ser. Trata-se da minha mulher uma grande Bodisatva. Eu a fiz sofrer muito nos últimos cinco anos. Fui um completo idiota. Mas ela conseguiu mudar tudo. Ela salvou minha vida." A seguir, os dois contaram sua história e o que os levara a participar do retiro. Descreveram também como foram capazes de se reconciliar num nível profundo e renovar o amor que sentiam um pelo outro.


(Do livro “Aprendendo a lidar com a raiva”– Thich Nhat Hanh)

segunda-feira, 18 de junho de 2018

Digo Olá ao Meu Sofrimento

O primeiro passo na arte de transformar o sofrimento é voltar para o nosso sofrimento e reconhecê-lo. Para a maioria de nós, sempre há um discurso mental dia e noite em nossas cabeças. Nós revivemos o passado, nos preocupamos com o futuro. Não paramos para respirar, mesmo para notar que estamos sofrendo - até que de repente, aparentemente do nada, o sofrimento nos esmaga. Nossos pensamentos, percepções e preocupações tomam todo o espaço dentro de nós e nos impedem de estar em contato com o que acontece a cada momento.

O Buda disse que nada pode sobreviver sem alimento. Isso é verdade, não apenas para a existência física de seres vivos, mas também para estados mentais. O amor precisa ser nutrido e alimentado para sobreviver; e nosso sofrimento também sobrevive porque o alimentamos. Nós ruminamos o sofrimento, o arrependimento e a tristeza. Nós os mastigamos, engolimos, os trazemos de volta e os comemos uma outra vez. Se estamos alimentando nosso sofrimento enquanto caminhamos, trabalhamos, comemos ou falamos, estamos nos tornando vítimas dos fantasmas do passado, do futuro ou de nossas preocupações no presente. Não estamos vivendo nossas vidas.

Se tentarmos usar o consumo para ignorar ou nos distrair do sofrimento, acabamos piorando o sofrimento. Ligamos a televisão. Conversamos, enviamos texto ou fofocamos no telefone. Entramos na Internet. Encontramo-nos na frente da geladeira muitas e muitas vezes. Quando nos separamos da dor em nossa mente, também estamos abandonando nossos corpos onde o sofrimento está sendo armazenado.

Quando sentimos solidão e desespero, procuramos encobri-los e fingimos que não estão presentes. Nós não nos sentimos muito bem por dentro, então, para esquecer, vamos procurar algo para comer, mesmo que não tenhamos fome. Nós comemos na tentativa de nos sentir melhor, mas acabamos ficando viciados em comer, porque estamos tentando encobrir o sofrimento interior e o problema real não é resolvido. Podemos também nos tornar viciados em jogos de computador ou outros tipos de entretenimento audiovisual.

As distrações eletrônicas não só não ajudam a curar o sofrimento subjacente, mas também podem conter histórias ou imagens que alimentam nosso desejo, ciúmes, raiva ou desespero. Em vez de nos fazer sentir melhor, elas nos adormecem apenas brevemente, então nos fazem sentir pior. Consumir para encobrir nosso sofrimento não funciona. Precisamos de uma prática espiritual para ter força e habilidade para analisar profundamente o nosso sofrimento, para obter informações sobre ele e ter um insight.

Quando surge o sofrimento, a primeira coisa a fazer é parar, seguir nossa respiração e reconhecê-lo. Não tente negar emoções desconfortáveis ​​ou encobri-las.

Inspirando, eu sei que o sofrimento está presente.
Expirando, digo olá ao meu sofrimento.

Ter uma respiração consciente exige a presença de nossa mente, nosso corpo e da nossa intenção. Através da nossa respiração consciente, reunimos nosso corpo e mente e chegamos no momento presente. Apenas respirar conscientemente já nos traz uma quantidade surpreendente de liberdade. Com cada respiração geramos energia consciente, trazendo mente e corpo juntos no presente momento para reconhecer de forma atenciosa o nosso sofrimento. Em apenas duas ou três respirações realizadas com toda a atenção, você pode notar que o arrependimento e tristeza sobre o passado fazem uma pausa, bem como a incerteza, o medo e as preocupações com o futuro.

Cada um de nós tem um corpo, mas nem sempre estamos em contato com ele. Talvez nosso corpo precise de nós, ele está nos chamando, mas não ouvimos. Estamos tão envolvidos no trabalho no nosso computador, no nosso telefone ou na nossa conversa, que podemos esquecer até que temos um corpo.

Se pudermos entrar em contato com nosso corpo, também poderemos entrar em contato com nossos sentimentos. Há muitos sentimentos que nos chamam. Todo sentimento é como nosso filho. O sofrimento é uma criança ferida gritando para nós. Mas ignoramos a voz da criança interior.

O processo de cura começa quando respiramos conscientemente. Na vida quotidiana, muitas vezes, nosso corpo está aqui, mas nossa mente está longe, no passado, no futuro ou em nossos projetos. A mente não está com o corpo. Quando respiramos e focamos nossa atenção em nossa inspiração, reunimos corpo e mente. Tomamos consciência do que está acontecendo no momento presente, no nosso corpo, nas nossas percepções e ao nosso redor.

Quando trazemos a mente para o nosso corpo, acontece algo maravilhoso; nosso discurso mental para de tagarelar. Pensar pode ser produtivo, mas a realidade é que a maior parte do nosso pensamento é improdutivo. Quando pensamos, pode ser fácil nos perdermos em nosso pensamento. Mas quando usamos nossa respiração para levar nossa mente para o corpo, podemos parar o pensamento.

Quando você volta para si mesmo e respira com atenção, a sua mente tem apenas um objeto, sua respiração. Se você continuar a respirar com atenção, você mantém esse estado de presença e liberdade. Sua mente será mais clara e você tomará melhores decisões. É muito melhor tomar uma decisão quando sua mente é clara e livre, em vez de dominada pelo medo, pela ira e preocupações.

Quando eu era um jovem monge, acreditava que demorava muito para se obter qualquer tipo de insight. A verdade é que existem insights que podem vir imediatamente. Quando você se esforça para respirar, sabe de imediato que está vivo e que estar vivo é uma maravilha. Se você pode estar ciente de que tem um corpo vivo e percebe quando há tensão em seu corpo, isso já é um insight importante. Com essa visão, você já começou a diagnosticar a situação. Você não precisa praticar oito anos ou vinte anos para acordar.

Respirar com atenção não é algo difícil de fazer. Você não precisa sofrer enquanto respira. Você já está fazendo isso o dia todo. Você não precisa se esforçar para controlar sua respiração. Na verdade, respirar pode se tornar um verdadeiro prazer. Você apenas se permite respirar naturalmente enquanto foca sua atenção em sua inspiração. É como o sol da manhã em uma flor que fechou durante a noite. O sol não interfere com a flor. A luz do sol apenas a abraça e subtilmente permeia a flor. Abraçada pela energia do sol, a flor começa a florescer.

(Trecho do livro de Thich Nhat Hanh – No mud no lotus)
(Tradução – Leonardo Dobbin)

segunda-feira, 11 de junho de 2018

Ação: Por que Salvar um Monte de Formigas é Bom

Alguns anos atrás, eu estava em uma viagem de canoa em uma remota região dos lagos ao norte de Ontário com um namorado chamado Doug e dois de seus amigos. Uma noite, nós quatro ficamos um pouco desesperados em busca de um acampamento adequado antes do anoitecer. Um dos últimos locais disponíveis tinha sido invadido por muitas formigas pretas, provavelmente juntas no mais gigantesco formigueiro conhecido pelo homem.

Se alguém tivesse estado por perto, teria visto quatro campistas muito cansados, pás na mão, olhando boquiabertos impotentes para uma colônia de insetos rastejantes. Finalmente o silêncio foi quebrado quando o amigo de Doug anunciou que devíamos derramar fluido de isqueiro sobre o formigueiro e queimar as formigas. Dizer que fiquei horrorizada com a idéia de incendiar a casa das formigas, mesmo ameaçadoras como eram, seria um eufemismo. Virei-me para Doug e disse que eu não estava disposta a fazer parte de nenhum grupo de queima de formigas. Doug sinceramente concordou.

Karma significa simplesmente "ação" e há três tipos: pensamento, fala e ação corporal. Seus pensamentos têm poder, as suas palavras têm poder e suas ações corporais têm poder. Tudo o que você pensar, dizer e fizer vai produzir uma cadeia de ações e reações, com conseqüências infinitas e incognoscíveis. Você não pode pegar de volta o seu comportamento feio. Em seu livro "Buddha Mind, Buddha Body", Thây enfatiza que não há como escapar: "Seu comportamento não tão bonito saiu imediatamente em direção ao futuro e começou uma reação em cadeia."

Pode parecer insignificante queimar um monte de formigas, mas na verdade esse tipo de coisa é feita todos os dias porque os seres humanos são muito frequentemente míopes e egoístas. Este pensamento errôneo levou à destruição e ao desequilíbrio ambiental, como o renomado entomólogo E. O. Wilson advertiu: "Se os insetos desaparecessem, o ambiente terrestre em breve colapsaria no caos ..."

Aparentemente, as formigas movem mais terra do que as minhocas, tornando-se essenciais para o solo. E, claro, precisamos do solo renovado para flores e plantas sobreviverem. Mas se proteger a vegetação que comemos não é um incentivo suficiente para observar nossas ações, há sempre esta parábola budista, que me deparei muitos anos depois do caso das formigas.

Era uma vez um velho monge que, através da prática diligente, tinha alcançado um certo grau de penetração espiritual. Este monge tinha um iniciante jovem de oito anos de idade. Um dia, o monge olhou para o rosto do menino e viu que ele morreria dentro dos próximos meses. Entristecido por isto, o monge disse ao menino para desfrutar de um longo feriado e ir visitar seus pais. "Tome o tempo que quiser", disse o monge. "Não se apresse para voltar." Ele sentiu que o menino deveria estar com sua família quando morresse.

Três meses depois, para espanto do monge, ele viu o garoto andando de volta até a montanha. Quando o rapaz chegou, o monge olhou fixamente para o rosto e viu que o menino agora viveria até uma idade madura. "Diga-me tudo o que aconteceu enquanto você estava fora", disse o monge. O rapaz falou de sua viagem ao descer a montanha, das aldeias que passou, das passagens por rios e as montanhas que escalou.

Então o menino disse ao monge que um dia ele se deparou com um córrego inundado. À medida que o menino tentava atravessar a corrente que fluía, percebeu que uma colônia de formigas tinha ficado presa em uma pequena ilha formada pela enxurrada. Movido por compaixão por essas pobres criaturas, o menino pegou um galho de árvore e colocou-o em uma parte do fluxo até que ele tocasse a pequena ilha. Enquanto as formigas atravessavam, o garoto segurava o ramo estável, até que teve certeza de que todas as formigas tinham escapado para terra firme. "Então", pensou o velho monge, "é por isso que os deuses tinham aumentado seus dias."

Em seu livro "A arte do poder", Thich Nhat Hanh enfatiza que "A qualidade de sua ação depende da qualidade do seu ser." Se você não está feliz, por exemplo, é impossível oferecer a verdadeira felicidade a qualquer outro ser. "Então, há uma ligação entre fazer e ser. Se não tiver êxito em ser, você não pode ter êxito em fazer."

Eu estou sentada no Salão de Dharma de Upper Hamlet ouvindo Thich Nhat Hanh explicar que é possível neutralizar o karma que geramos. Thay descreve como a plena consciência (mindfulness) pode abraçar uma ação não saudável a fim de neutralizar os seus efeitos, e que a plena consciência também poderia iniciar algum tipo de ação saudável. Assim, poderia ter havido uma saída para o nosso bando de campistas quase imprudentes anos atrás, mesmo que tivéssemos sido arrogantes o suficiente para queimar um monte de formigas.

Antes de contar o seguinte evento sombrio da Guerra do Vietnã, Thay diz: "A plena  consciência não cura só o presente mas também o passado e o futuro." Anos após a Guerra do Vietnã, Thich Nhat Hanh organizou retiros de meditação para veteranos de guerra dos EUA. Em um desses retiros, havia um ex-soldado extremamente traumatizado. Este veterano tinha involuntariamente contribuído para a morte de cinco crianças vietnamitas durante a guerra. A unidade do soldado americano tinha sido destruída por guerrilheiros vietnamitas, causando a morte de muitos soldados. Em sua tristeza e raiva, o soldado buscou a retaliação pelas mortes.

Ele inseriu explosivos em sanduíches e, em seguida, os colocou onde os mesmos soldados vietnamitas iriam encontrá-los e comê-los. Em vez dos soldados, porém, cinco crianças vietnamitas encontraram os sanduíches envenenados. Ao testemunhar a terrível cena, o soldado dos EUA ficou cheio de temor. Ele sabia que não havia nenhuma maneira de salvar as crianças inocentes. O hospital estava a quilômetros de distância. As crianças tiveram uma morte agonizante. O veterano de guerra americano tinha vivido uma vida de culpa torturando-se por muitos anos.

Thay nos diz que antes do veterano de guerra lhe contar sua história no retiro, ele não tinha falado sobre isso com ninguém, exceto sua mãe, e ela não tinha sido capaz de aliviar sua culpa. Depois da guerra, em qualquer momento que o ex-soldado se visse perto de crianças, o seu sofrimento tornava-se imenso. Ele não conseguia estar na presença de nenhuma criança, tão forte era o seu remorso e dor.

Thây passou a explicar que, ao saber da morte das cinco crianças, ele havia dito ao veterano que as mortes das crianças não tinham sido uma coisa boa. Que o karma não era bom. Mas era possível que este soldado fizesse outra coisa, algo bom para neutralizar essa ação ruim de seu passado. Thich Nhat Hanh lembrou ao veterano que todos os dias crianças estavam morrendo em muitos países, e por razões simples, como a falta de um comprimido de medicamento. Thay disse ao veterano de guerra que era possível para ele fazer alguma coisa naquele momento. Este ex-soldado poderia optar por salvar as vidas de outras cinco crianças. Não só isso, ele também poderia salvar as vidas de outras cinco crianças mais. Se este homem verdadeiramente arrependido pudesse fazer isso por algum tempo, o seu karma, a ação destruidora do passado, seria neutralizado.

Thay nos diz que após poucos minutos de aconselhamento, o soldado ferido se libertou de seu estado de espírito negativo. Ele imediatamente aspirava ajudar às crianças do mundo que morrem. Thay diz que o arrependido ex-soldado, recém-revigorado, passou a salvar ativamente a vida de inúmeras crianças no mundo que de outra forma certamente teriam morrido. O ato elevado do ex-soldado no presente transformou seu ato destrutivo do passado, catapultou-o para fora da culpa, tristeza e arrependimento e criou o seu futuro imensamente gratificante e pacífico.

Em seu livro, "Buddha Mind, Buddha Body", Thich Nhat Hanh, escreve: "Tudo é impermanente, sua culpa, sua raiva, seu medo As coisas podem se transformar muito rapidamente, se você conhece a prática." Sua Santidade o Dalai Lama. em seu livro  "Path to Bliss", escreve que "algumas pessoas não compreendem o conceito de karma. Elas distorcem a doutrina da lei da causalidade do Buda para dizer que tudo está pré-determinado, que não há nada que o indivíduo possa fazer. Este é um equívoco total.  Karma ou ação é um termo de força ativa, o que indica que os eventos futuros estão nas suas próprias mãos. Como a ação é um fenômeno que é cometido por uma pessoa, um ser vivo, está nas suas próprias mãos se quer ou não se envolver na ação." Mesmo se nós fizemos o mais horrível dos erros humanos, ainda há uma saída.

Os ensinamentos de Buda nos ajudam a compreender que temos a capacidade de neutralizar nosso karma negativo e elevar nossas ações no presente. Cada dia temos a oportunidade de salvar e proteger as vidas de muitos seres no mundo. Agir baseado neste poder traz imensa alegria.

-Mary Patterson (do livro “The monks and me” – relatando a experiência dela em um retiro de 40 dias em Plum Village)
(Traduzido por Leonardo Dobbin)

segunda-feira, 4 de junho de 2018

Começar Novamente


Começar Novamente não significa pedir perdão. "Começar Novamente" é transformar coração e mente, transformar a ignorância que leva a ações erradas de corpo, fala e mente, e assim lhe ajudar a cultivar a mente amorosa. Sua vergonha e culpa serão superadas, e você irá dar início a uma experiência de celebração por estar vivo.

Todos os equívocos surgem através da mente. É através da mente que esses equívocos poderão desaparecer.

Em Plum Village praticamos a cerimônia de Começar Novamente toda semana. Todos sentam em um círculo com um vaso de flores frescas no centro, e seguimos nossa respiração enquanto aguardamos o facilitador começar.

A cerimônia tem três partes: aguar as flores, expressar arrependimentos e expressar mágoas e dificuldades. Esta prática pode prevenir que os sentimentos dolorosos se acumulem ao longo de semanas, e ajuda a tornar a situação segura para todos na comunidade.

Começamos com aguar as flores. Quando alguém está pronto para falar, ele ou ela junta suas palmas e os outros também, de modo a mostrar que a pessoa tem o direito de falar. Então ela se levanta, caminha vagarosamente até o vaso de flores, toma o vaso nas mãos e retorna com ele ao seu lugar. Quando ela falar, suas palavras irão refletir o frescor e a beleza das flores que estão em suas mãos.

Durante a "Aguar as Flores", cada um que fala reconhece as qualidades saudáveis e maravilhosas dos outros. Não é adulação; nós falamos a verdade. Todos têm pontos fortes que podem ser percebidos com consciência. Ninguém interrompe a pessoa segurando as flores. A ela é permitido todo o tempo que precisar, e todos praticam a Escuta Atenciosa.

Quando ela termina de falar, ela levanta-se e lentamente devolve o vaso para o centro do salão.

Na segunda parte da cerimônia, nós expressamos nosso arrependimento por tudo o que possamos ter feito para ferir outros. Basta apenas uma frase impensada para magoar alguém. A cerimônia de Começar Novamente é uma oportunidade para que possamos resgatar arrependimentos feitos ao longo da semana e desfazê-los.

Na terceira parte da cerimônia, expressamos as formas com que outros tenham nos magoado. A uso da fala amorosa, consciente, é crucial. Nós queremos curar a comunidade, e não aumentar rancores. Falamos francamente, mas sem sermos destrutivos. A meditação do escutar corretamente é uma importante parte da prática. Quando nos sentamos em círculo entre amigos no Dharma que praticam com grande profundidade, nossa fala se torna bela e muito construtiva. Jamais acusamos ou culpamos alguém.

Escuta compassiva é crucial. Ouvimos com real interesse em aliviar o sofrimento da outra pessoa, e não julgá-la ou contestá-la. Ouvimos com toda nossa atenção. Mesmo se ouvirmos alguma inverdade, continuamos a ouvir profundamente de modo a permitir que a outra pessoa expresse sua dor e alivie as tensões que esteja sentido. Se nós a interrompermos ou tentarmos corrigi-la, nossa prática estará errada, e será infrutífera.

Nós apenas ouvimos. Se precisarmos dizer à pessoa que sua percepção sobre algum acontecimento foi errada, podemos fazer isso poucos dias depois, de forma particular e com calma. Assim, na próxima sessão da prática Começar Novamente, a pessoa poderá retificar o erro e todos nós aceitaremos em silêncio. Terminamos a cerimônia com uma canção ou apenas dando as mãos uns aos outros no círculo, praticando a respiração atenta por um minuto. Às vezes terminando com a Meditação do Abraço.

Meditação do Abraço é uma prática que criei. Em 1966, uma poeta levou-me ao aeroporto de Atlanta e me perguntou, "É correto abraçar um monge?" Em meu país, não somos acostumados a nos expressar desta forma, mas eu pensei, "Eu sou um professor do Zen. Eu não deveria ter qualquer dificuldade de abraçar alguém." Então eu disse, "Por que não?" e ela me abraçou. Mas eu correspondi de forma muito rígida. Enquanto estava no avião, eu decidi que se desejo trabalhar com amigos no ocidente, eu deveria aprender a cultura ocidental. Assim, eu criei a meditação do abraçar.

Meditação do Abraço é uma combinação do oriente e ocidente. De acordo com a prática, você deve realmente abraçar a pessoa que está entre seus braços. Você deve tornar ele ou ela muito real em seus braços -- não apenas por causa das aparências, dando um tapinha nas costas para fingir que você está lá; mas respirando conscientemente e abraçando com todo o seu corpo, espírito e coração.

"Meditação do Abraço" é uma prática de consciência. "Inspirando, eu sei que meu querido amigo ou amiga está em meus braços, vivo. Expirando, ela é tão preciosa para mim." Se você respira profundamente desta maneira, envolvendo a pessoa que você ama em seus braços com firmeza, a energia do cuidado, do amor, e da consciência penetrará nessa pessoa e ela irá se sentir nutrida, e irá desabrochar como uma flor.

Em um retiro para psicoterapeutas no Colorado, nós praticamos Meditação do Abraço. Um dos praticantes, quando ele voltou para casa na Filadélfia, abraçou sua esposa no aeroporto de uma forma que ele nunca a tinha abraçado antes. Para estar realmente lá, você só precisa respirar conscientemente, e de repente ambos se tornam reais. Esta experiência poder ser um dos melhores momentos de sua vida.

Após uma cerimônia de Começar Novamente, todos na Comunidade sentem-se leves e aliviados, mesmo que tenhamos tomado apenas medidas preliminares para a cura. Temos confiança de que, tendo começado, podemos continuar. Esta prática data do tempo do Buda, quando as comunidades de monges e monjas praticavam o Começar Novamente na véspera das luas cheia e nova. Eu espero que vocês pratiquem o Começar Novamente em suas próprias famílias todas as semanas.

 (Do livro “Teachings on Love” – Thich Nhat Hanh)
(Tradução – Monge Kōmyō)

sexta-feira, 1 de junho de 2018

As Três Fontes de Poder

Querida Sangha, ontem tivemos uma pergunta sobre autoridade, poder. Houve a questão feita por um estudante universitário que nos disse ter ambição pelo saber, pelo sucesso, por uma posição social. Como ele pode conciliar essa ambição, esse desejo de ter sucesso, com a prática da plena consciência? Quer dizer, buscando ter uma vida simples, etc. A pergunta sobre o poder é importante, porque muitos de nós possuem a tendência de abusar de nosso poder. Mesmo que você não tenha muito poder.

Pais podem abusar de seus filhos usando de seus poderes como pai e mãe. E embora algumas vezes sintam-se sem poder algum, assim mesmo usam do poder, da autoridade de pai ou mãe. E as crianças se sentem indefesas, porque elas não conseguem defender-se de igual para igual, e assim sentem-se incapazes. Mas não somente as crianças. Os pais sentem-se igualmente incapazes. Sentem que nada podem fazer para mudar – para ajudar – seus próprios filhos.

Nossos poderes são sempre limitados, incluindo o econômico e o político. Muitos jovens pensam que ser o presidente dos Estados Unidos da América é ter muito poder. Esse é o pensamento de muita gente. Mas acho que o Sr. Bush (*) muitas vezes sente-se incapaz, sem poder algum. Ele sente que precisa de mais poder para resolver problemas tais como o preço dos combustíveis, a guerra no Iraque. Ele se sente incapaz. Ele sente que não tem poder suficiente para parar a guerra. Continuar com a guerra é difícil, mas parar a guerra é igualmente difícil, então ele deve sentir-se algumas vezes incapaz. E se o presidente dos Estados Unidos não tem poder suficiente, quem dentre nós pode dizer que tem suficientes poderes?

Claro, quando você é rico sente-se mais poderoso. Com seu dinheiro você pode comprar muitas coisas. Você pode controlar muitas coisas, e ainda assim já testemunhamos o fato de tantos milionários, gente extremamente rica, sentir-se incapaz. E alguns deles cometem suicídio.

A questão do poder é muito importante. O que o Buda pensa sobre poder e autoridade? Na tradição budista falamos dos três tipos de virtude, sobre o poder verdadeiro, que todos podem buscar. Não há perigo algum em buscarmos estes poderes, porque estes poderes podem nos fazer felizes. Geralmente, no mundo, buscamos por outros tipos de poderes – a saber: riqueza, fama, poder e sexo. Muita gente no mundo pensa que a felicidade é feita desses quatro elementos. E estamos arruinando nosso planeta por conta deste tipo de busca.

Assim que você conquista alguma riqueza, é encorajado a possuir mais, porque uma pessoa rica sempre quer continuar a ser rica. Ela deseja ser mais rica, então segue nesse caminho. Não consegue parar. Alguém é famoso e quer ficar mais famoso, então continua a perseguir isso. Alguém tem algum poder e deseja ter uma posição ainda mais elevada. Busca mais e mais poder. Não há fim para este tipo de busca. E nem todos conseguem obter esse tipo de coisa correndo atrás dela. Muitas pessoas sofreram muito profundamente perseguindo esses quatro tipos de desejo.

Na tradição budista, falamos de três tipos de poder, três tipos de virtude. Quando você tem estes tipos de poder, sente-se forte, feliz, livre. O primeiro tipo de poder é o de “podar”.

Você tem desejos, e sofre muito por causa deles. Você tem raiva, e sofre por causa da sua raiva. Você tem ciúmes, e sofre muito por causa desse ciúmes. Você tem dúvidas. Desejo, raiva e ciúmes são como uma chama que consome você. Eles queimam. Por isso, se você for capaz de podar seu desejo, sua raiva e seu medo, irá tornar-se uma pessoa livre, e será muito feliz. O poder de “podar” é o primeiro poder mencionado pelo Buda.

Objetos do desejo sejam eles riqueza, fama, poder ou sexo, contém muito perigo. Quando você pesca, joga na água uma isca. Dentro da isca está o anzol. Hoje em dia, não se usa mais uma isca de verdade, elas são de plástico, e também parecem muito atrativas, e o peixe não sabe a diferença. Eles enxergam a isca e a mordem. São puxados pelo anzol para fora d’água, e morrem.

Tantos de nós correm atrás deste tipo de isca. Não vemos o perigo contido nestes tipos de objetos do nosso desejo e, portanto é muito importante não buscarmos felicidade na direção do desejo. Com sabedoria, entendimento – usamos a sabedoria e o entendimento como a uma espada – podamos nosso objeto do desejo. Este é o primeiro tipo de poder. Um bom praticante sempre tenta fazer isso. Podar a raiva, desejo e ciúmes, e para isso a espada que usam é a do entendimento. Eles conseguem ver na natureza do desejo todo o perigo, como o anzol que se esconde por trás da isca.

O segundo tipo de poder ensinado no budismo é o poder do entendimento. Isto é insight. Insight é o fruto da meditação. Se você tem bastante plena consciência, você cultiva sua concentração. Com plena consciência e concentração poderosas, você pratica o olhar em profundidade. E você tem a penetração do coração da realidade. Esse tipo de insight libera você das suas ilusões, das suas compreensões errôneas, das suas percepções, e você se liberta.

A sabedoria é uma espada. O bodhisattva Manjushri é uma pessoa que descrevemos com grande entendimento. Ele está sempre empunhando uma espada, a espada do entendimento. Com a espada da sabedoria, ele consegue cortar através de todo o tipo de compreensão errônea e ilusão. Se você é um bom praticante, com concentração e plena consciência, você pode ter esta penetração da realidade, e ter um insight que o ajudará a liberar-se do seu sofrimento.

Quando você tem esse tipo de insight, esse tipo de sabedoria, você pode superar suas dificuldades muito facilmente. É com sabedoria que você pode sair de situações difíceis. Quando outras pessoas chegam até você e apresentam os problemas delas, você pode ajudá-las a superar suas dificuldades. Talvez em 50 minutos você ajude uma pessoa a libertar-se a si mesma, porque você tem sabedoria, você possui insight.

Sozinha, aquela pessoa pode seguir anos a fio sem encontrar uma solução. Mas quando ela vem a você, por você ter sabedoria, você mostra o caminho a ela, e assim essa pessoa pode libertar-se em 50 minutos ou até menos. Este é o segundo tipo de poder que você pode obter com a prática [da meditação].

Insight é a flor e o fruto da prática. Quando temos bastante concentração e plena consciência, vamos de verdade obter o insight de que precisamos para superar nossas dificuldades e ajudar outras pessoas a superá-las. Você é muito rico em insight, e em liberdade.

O primeiro poder espiritual nos ajuda a libertar-nos do desejo, da ilusão e da raiva. O segundo tipo de poder também nos ajuda a remover a ilusão, a ignorância e a compreensão errônea. Com esse tipo de poder você pode ajudar muitas pessoas ao seu redor a fazerem o mesmo. Você distribui felicidade ao seu redor simplesmente porque você possui sabedoria, insight. E isso ninguém pode arrancar de você, ninguém pode roubar, porque não podem usar arma nenhuma para remover sua sabedoria.

A terceira fonte de poder é o amor, que significa gentileza. Você está distribuindo gentileza. “Você pode me fazer uma gentileza?” Sim. E você está sempre distribuindo felicidade. Esse é o poder do perdão, da aceitação. Aceitar, perdoar e oferecer compreensão e amor. Como um praticante capaz, você tem esse poder. Você tem a capacidade de perdoar. Você tem a capacidade de aceitar a pessoa assim como ela é.

Há aqueles dentre nós que não são capazes de aceitar o outro. Há aqueles dentre nós que têm dificuldade em aceitar uma situação. Dizem “Se eles não mudarem, eu não mudarei. Já que eles são daquele jeito, vou continuar a ser assim”. Isto porque eles não possuem este tipo de poder; porque se você o tiver irá aceita-los assim como são. Você aceita a situação, e segue em frente. Você para de reagir e começa a agir.

No passado, você esteve somente reagindo. Reagindo à situação, às outras pessoas, mas assim você não chega a parte alguma. No entanto, se você aceita a situação tal qual é, se aceita as pessoas assim como são, você simplesmente age. Com esta prática você se transforma, e com mais leveza, mais bondade amorosa, mais sabedoria, você é capaz de mudar a situação e as pessoas ao seu redor. Você não impõe a condição de “se o outro não mudar”. Não há maneira de a situação melhorar se você disser isso.

Agora, se você tem o terceiro tipo de poder, você diz “Ele é assim. Ela é assim. Eu os aceito como são, e irei cultivar mais bondade amorosa, mais insight, mais leveza. Com isso serei capaz de ajudá-los, e de mudar a situação”.

Porque agora você tem a capacidade da aceitação, do perdão. E esta é uma fonte tremenda de poder. Não há perigo algum em você empregar seu tempo cultivando estas três fontes de poder. E quanto mais desse tipo de poder você tiver, mais feliz você se torna, e as pessoas ao seu redor irão tornar-se também mais felizes.

Muitas pessoas são vítimas do próprio sucesso, riqueza, poder. Mas se você tiver este outro tipo de poder, você nunca se torna vítima do seu sucesso. Este é o único tipo de sucesso que não o fará vitima. Por outro lado, todos os outros tipos de sucesso farão de você uma vítima. Você tem sucesso político, e morre como político. Você tem sucesso como um líder nos negócios, e pode morrer vítima do seu próprio sucesso. Mas neste caso a situação é diferente. Quanto mais poder você tem, mais livre você fica, mais amoroso você se torna. E não há perigo algum em cultivar este tipo de poder.

Quanto à questão formulada pelo estudante universitário, creio que ele pode meditar sobre isso. Ele deseja ter sucesso, tornar-se um grande estudioso, tornar-se alguém com boa posição social. De fato, uma vez que você tenha estes três tipos de poder, não há perigo algum se você tiver alguma riqueza e alguma fama. Se você tiver esses poderes, então sua riqueza e sua fama irão tornar-se úteis para você. De outra maneira, são muito perigosas.

O Budismo não é contra riquezas e poder. A única coisa de que somos lembrados é que correr atrás de riqueza, poder e fama pode sair muito caro. Você pode sofrer tremendamente perseguindo estas coisas. Mas se você tiver poderes espirituais, então não se tornará vítima de sua própria riqueza, fama ou poder. De fato, saberá fazer bom uso da riqueza que possuir, do poder e da fama que obtiver, de maneira a fazer o bem para as pessoas ao seu redor.

Portanto, não é que um bom praticante busque a pobreza. Um bom praticante pode ter dinheiro, porém ele sabe usar o dinheiro de forma a concretizar seu ideal de compaixão e de compreensão. Quantas pessoas são assim livres? Quantas pessoas sabem usar seu dinheiro, seu poder, sua fama de uma maneira boa? Não muitas, a não ser que tenham algum poder espiritual -- o poder de “podar”, o poder da sabedoria, e do perdão. As pessoas não são capazes de usar os poderes mundanos para trazer felicidade a elas mesmas e às outras pessoas.

No budismo e no cristianismo falamos de pobreza voluntária. Você quer viver de modo simples. Uma vida simples está na sua maneira de viver, porque se você vive uma vida simples não gasta a maior parte da sua vida ganhando a vida. Você tem tempo de desfrutar de outras coisas, espiritualmente. Você tem tempo para o céu azul, para a chuva, para o brilho do sol, para as crianças, para aqueles a quem ama. Portanto, viver de maneira simples pode ajudar você a desfrutar de si mesmo, da vida, e a cuidar daqueles de quem ama.

Você é pobre, mas é porque você quer ser pobre. Na verdade, você é muito rico, porque tudo pertence a você – o brilho do sol, o céu azul, os pássaros, as colinas, e cada momento do seu cotidiano pertence a você. Há quem seja extremamente rico, mas que não tem nada. Não tem o céu maravilhoso, não tem as belas colinas, não tem tempo para amar nem para cuidar daqueles a quem amam. Os ensinamentos do Buda são claros nesse ponto. Não somos contra ter dinheiro ou uma boa posição social. Se você tiver poderes espirituais, e o bastante em insight e amor, todo aquele dinheiro, poder e prestígio que tiver o ajudarão a realizar o ideal do bodhisattva.

Portanto o jovem universitário pode continuar a buscar conhecimentos e uma boa posição social, se ao mesmo tempo ele for capaz de cultivar estes tipos de poderes espirituais. Haverá menos perigo para ele, se ele for um bom praticante, cultivando todos os dias mais destes poderes. O poder de “podar”, o poder do entendimento e o poder do amor. Isso traz a você muita liberdade, traz a você muita felicidade, e você não mais acredita que sem muito dinheiro e sem muita fama você não pode ser uma pessoa feliz.

(Palestra de Dharma de Thich Naht Hanh em Plum Village em 13 de julho de 2008)
(Traduzido por Marcelo Abreu – Sangha Plena Consciência)