quarta-feira, 25 de julho de 2018

Como Experimentar o Milagre da Vida

Alegria e felicidade nascem da concentração. Quando você está bebendo uma xícara da chá, o valor dessa experiência depende de sua concentração. Você tem que beber sua xícara de chá com 100% de seu ser. O verdadeiro prazer é experimentado na concentração. Quando você anda e está 100% concentrado, a alegria que obtém dos passos que está dando é muito maior que a alegria que teria sem concentração. Você tem que investir 100% de seu corpo e mente no ato de andar. Então experimentará que estar vivo e dar passos neste planeta são coisas maravilhosas.

O mestre Zen Linji (também conhecido como Rinzai) disse: “Milagre é andar na Terra, não andar sobre a água ou fogo. O milagre real é andar sobre a Terra.” Porque você não deveria realizar um milagre apenas andando? Um passo dado com plena atenção pode te levar ao Reino de Deus. Isto é possível. Você pode fazer isso hoje. A vida é muito preciosa para nos perdermos em idéias e conceitos, na nossa raiva e no nosso desespero. Devemos acordar para a realidade maravilhosa da vida. Devemos começar a viver plenamente e verdadeiramente, cada momento de nossas vidas diárias.

Quando você está segurando uma xícara de chá na sua mão, faça isto enquanto fica 100% presente. Você sabe como fazer isso – uma profunda inspiração, uma gentil expiração e o corpo e mente ficam juntos. Você está realmente presente, absolutamente vivo, plenamente presente! Isto apenas leva dez ou quinze segundos, e de repente o chá se revela para você em todo seu esplendor e maravilha.

Quando eu pego um livro ou abro a porta, quero investir 100% de mim mesmo neste ato. Isto foi o que aprendi durante meu treinamento monástico, quando meu professor me ensinou como oferecer um incenso. Um bastão de incenso é muito pequeno e muito leve, ainda assim a maneira correta de segura-lo é com as duas mãos. Quando oferecer um incenso, você deveria investir 100% de seu ser nas suas mãos e em dois de seus dedos – a energia da plena atenção deve estar concentrada lá. Isto pode parecer como um ritual, mas é na realidade um ato de atenção concentrada. Eu coloco minha mão esquerda sobre a minha mão direita, e durante esse tempo me concentro 100%. O incenso é uma oferenda ao Buda, mas o Buda de fato precisa de incenso? Na verdade é uma oferenda de paz, de alegria e de concentração.

Durante meu primeiro ano de treinamento no templo, meu professor me pediu para fazer um favor para ele. Eu o amava tanto que fiquei muito excitado e corri para fazer. Eu estava com tanta pressa que não deixei a sala como deveria. Eu não fechei a porta apropriadamente, com 100% de meu ser.

Ele me chamou de volta. “Noviço,” ele disse, “venha aqui.” Eu soube imediatamente que havia algo de errado. Ele disse apenas, “Meu filho, você pode fazer melhor.” Ele não teve que me ensinar uma segunda vez. Na vez seguinte, eu fiz meditação caminhando até a porta, abri em plena consciência e fechei a porta atrás de mim perfeitamente.

Desde esse dia, eu sei como fechar uma porta. Eu tenho sempre feito isso com plena atenção – não pelo Buda, nem pelo professor, mas por mim mesmo. Esta é a maneira que você cria a paz; esta é a maneira que você traz liberdade. Você faz pela sua própria felicidade, e quando estiver feliz, as pessoas com as quais você se relaciona se beneficiarão da sua presença e ficarão felizes também. Uma pessoa feliz é uma coisa importante, porque a felicidade se espalha ao seu redor. Você pode também ser uma pessoa feliz e se tornar um refúgio para todos os seres próximos.

Concentração é a prática da felicidade. Não há felicidade sem concentração. Quando você comer uma laranja, tente praticar a concentração. Coma de tal modo que prazer, alegria e felicidade sejam possíveis o tempo todo. Você poderia chamar isto de meditação da laranja.  Você pega a laranja na palma da mão. Você olha para ela e respira de tal modo que ela se revele como o milagre que é. Uma laranja não é nada menos que um milagre. É como você – você também é um milagre. Você é um milagre manifestado.

Se eu estou 100% presente, a laranja se revela para mim 100%. Ao me concentrar na laranja, tenho insights profundos dela. Eu posso ver o sol e a chuva que estão nela. Posso ver as flores da laranjeira. Posso ver o pequeno broto e depois a fruta crescendo. Então eu começo conscientemente a descascar a fruta. Sua presença, sua cor, sua textura, seu cheiro e gosto – é um milagre real, a felicidade que vem para mim ao entrar profundamente em contato com a laranja se torna muito, muito grande. Uma simples laranja é suficiente para te dar uma grande porção de felicidade quando você está verdadeiramente presente, inteiramente vivo em profundo contato com um dos milagres da vida que estão ao seu redor.

Aos poucos você deve se treinar para viver, para ser feliz. Você provavelmente recebeu um diploma universitário para o qual você trabalhou por anos, e você pensou que a felicidade seria possível depois de obtê-lo. Mas isso não era verdade porque depois de obter esse diploma e achar um emprego, você continuou a sofrer. Você tem que perceber que a felicidade não é algo que você acha no final do caminho. Tem que entender que ela está aqui, agora. A prática da plena consciência não é uma fuga ou uma alienação. Significa entrar vigorosamente na vida com a força gerada pela energia de plena consciência. Sem esta liberdade e concentração, não há felicidade.

Budismo engajado significa engajamento não apenas na ação social mas na vida diária. O objeto desta prática é alegria da vida diária, o que é liberdade. Deveríamos usar nosso tempo com muita inteligência, porque tempo não é apenas dinheiro; é muito mais precioso que isso. É vida. Um dia tem 24 horas; você sabe como gerenciar esse dia? Você é inteligente e tem muitos talentos diferentes, mas sabe como administrar os seus dias? Você deveria investir 100% em organizar os dias que te são dados para viver. Você pode fazer isso.

Com a prática da plena consciência, transformar sua dor se tornará muito mais fácil. Alegria e felicidade te ajudarão a ter novamente equilíbrio e curar a sua dor.

Você sabe que a boa circulação do sangue é necessária para o bem estar de seu corpo. O mesmo é verdade para sua mente: você deve viver e praticar de tal forma que sua consciência se beneficie da boa circulação. A má circulação dos elementos psicológicos cria problemas. Blocos de sofrimento, medo, ciúme e stress estão presos nas profundezas da consciência. Eles não podem circular e eles te fazem sentir medo. É por isso que você fechou a porta da sua consciência armazenadora, porque você não quer que essas coisas venham para a superfície. Você tem medo da dor dentro de você e, portanto quando há um espaço no seu dia você o preenche com livros ou televisão de forma que esses blocos de sofrimento não possam vir para a superfície.

Isto é o que a maioria de nós faz. É uma política de embargo. Você faz o melhor que pode para esquecer o que tem por dentro e consumir o que quer que esteja disponível para ajudá-lo. Desta maneira você cria uma má circulação psicológica e os problemas mentais logo vão aparecer. Enquanto você está dormindo, o acúmulo de sofrimento irá se revelar sozinho nos seus sonhos. Eles irão implorar por ajuda, mas você continua a praticar a supressão e a repressão. Depressão, medo e confusão podem também se manifestar no reino do soma, no corpo. Você terá dores de cabeça e todos os tipos de outras dores, mas seu médico não será capaz de identificar a fonte porque ela tem natureza psicológica.

O budismo ensina que o corpo e mente são dois aspectos da mesma coisa. Não há dualidade entre os aspectos físicos e mentais. Há uma expressão em sânscrito, namarupa. Nama é o nosso aspecto mental e rupa significa forma. Não podemos distinguir entre o físico e o mental. Sua mão não é apenas uma formação física, é uma formação mental ao mesmo tempo. As células de seu corpo não são apenas físicas, também são mentais. Elas são ambas ao mesmo tempo.

O budismo descobriu que a realidade às vezes se manifesta como psique e às vezes como soma. Psicossomático é o termo ocidental; namarupa é o equivalente em sânscrito. Deveríamos nos treinar a ver as coisas “físicas” não apenas como físicas. Na verdade, “físico” e “mental” não são mais do que expressões.

O Manifesto Humanista que foi assinado em 1933 diz que a dualidade mente-corpo deveria ser rejeitada, incluindo-se a idéia de uma alma que sobrevive depois da morte, porque ela também representa uma dualidade. O que o budismo diz sobre isso? O budismo concorda que a dualidade mente-corpo deve ser rejeitada, mas não diz que a desintegração do corpo representa uma negação total. O budismo nos ajuda a ver que nem o conceito de permanência nem o conceito de aniquilação se aplicam à realidade.

(Do livro “You are here”, de Thich Nhat Hanh)
(Tradução para o português: Leonardo Dobbin)

quinta-feira, 12 de julho de 2018

Perguntas Sobre Apego e Escuta Compassiva


Apegos e Escuta Compassiva



Pergunta. Eu tenho muitos problemas para deixar as coisas irem embora: relacionamentos, empregos, sentimentos e assim por diante. Como posso reduzir esses apegos?



Thich Nhat Hanh: "Deixar ir" significa abrir mão de algo. Esse algo pode ser um objeto de nossa mente, algo que nós criamos, como uma ideia, sentimento, desejo ou crença. Ficar preso a essa ideia pode trazer muita infelicidade e ansiedade. Nós gostaríamos de deixá-la ir, mas como? Não basta apenas querer deixá-la ir; temos de reconhecê-la primeiramente como sendo algo real. Temos que olhar profundamente para a sua natureza e de onde ela veio, porque as ideias nascem de sentimentos, emoções e experiências passadas, de coisas que temos visto e ouvido. Com a energia de plena consciência e concentração, podemos olhar profundamente e descobrir as raízes da ideia: o sentimento, a emoção, o desejo. Plena atenção (mindfulness) e concentração trazem insight e insight pode nos ajudar a liberar o objeto da nossa mente.



Digamos que você tenha uma noção de felicidade, uma ideia sobre o que vai fazer você feliz. Essa ideia tem suas raízes em você e no seu ambiente. A ideia lhe diz que condições você precisa para ser feliz. Você manteve a ideia por dez ou vinte anos e agora você percebe que a sua ideia de felicidade está fazendo você sofrer. Pode haver um elemento de ilusão, raiva ou desejo nela. Estes elementos são a substância do sofrimento. Por outro lado, você sabe que tem outros tipos de experiências: momentos de alegria, liberação ou o amor verdadeiro. Você reconhece estes como sendo momentos de felicidade real. Ao ter um momento de felicidade verdadeira, torna-se mais fácil para você se liberar dos objetos de seu desejo, porque você está desenvolvendo a percepção de que esses objetos não vão fazer você feliz.



Muitas pessoas têm o desejo de soltar, deixar ir, mas não são capazes de fazê-lo, porque ainda não têm discernimento suficiente; eles não viram outras alternativas, outras portas para a paz e a felicidade. O medo é um elemento que nos impede de soltar, desapegar. Estamos com medo de que, se "deixarmos ir", não teremos mais nada para nos agarrar. Deixar ir é uma prática; é uma arte. Um dia, quando você for forte o suficiente e determinado o suficiente, você vai deixar de lado as aflições que o fazem sofrer.



Pergunta: Eu tenho praticado escuta compassiva, mas é muito difícil de ouvir as pessoas que gritam raivosamente e repetidamente. Quanto tempo é necessário para a prática da escuta compassiva?



Thay: Muitas pessoas sentem a necessidade de falar o tempo todo. Isto tornou-se um hábito para elas. Embora os amigos deles possam já ter ouvido o que estão dizendo, elas ficam repetindo as mesmas coisas várias vezes. A verdadeira prática da escuta profunda é algo que pode ajudar as pessoas a dizer coisas que nunca foram capazes de dizer. A mais preciosa oportunidade é ser ouvido por alguém que tem a capacidade de escuta profunda; isto pode trazer grande alívio para as pessoas. Mas, neste caso, tal escuta profunda não é útil, porque esta pessoa não está dizendo nada novo; está apenas repetindo a mesma coisa. E a mesma coisa é regar as sementes negativas nela e em nós. Assim permitir que esta prática continue não ajuda ninguém.



Nós temos que dizer: "Querido amigo, eu já ouvi o que você está dizendo. Não há sentido em repetir a mesma coisa várias vezes. Você sabe que há blocos de sofrimento dentro de você, mas você ainda não teve a oportunidade de reconhecê-los, olhar profundamente e descobrir a fonte que os nutre. É por isso que você não foi capaz de transformá-los. É por isso que o seu sofrimento continua a ser expresso de uma forma que pode fazê-lo sofrer e fazer sofrer as pessoas ao seu redor. Portanto, a solução não é falar sobre isso, mas reconhecer esses blocos de sofrimento e descobrir as suas causas, os tipos de alimentos que os trouxeram para você. Reconhecer o sofrimento e cortar a fonte do sofrimento é a nossa prática. E eu gostaria de ajudá-lo, meu caro, a fazê-lo. Como fiz a mesma coisa em mim, tenho sido capaz de me libertar. Eu não reclamo mais, porque tenho sido capaz de reconhecer os blocos de sofrimento em mim mesmo. Já os abracei e olhei profundamente para eles. Eu encontrei a sua fundação, as suas raízes, e tenho praticado a fim de parar de alimentá-los, para que eu possa me transformar. Eu gostaria de ajudá-lo a ver que você está fazendo a mesma coisa, e eu vou fazer tudo ao meu alcance para ajudá-lo."



Com discurso amoroso, podemos incentivar os nossos amigos a iniciar na prática, para abraçar o seu sofrimento, olhar profundamente na natureza do sofrimento e começar o trabalho de transformação e cura.



Pergunta: Tenho tentado praticar a fala e escuta amorosa no trabalho, mas meus colegas respondem com muito cinismo.



Thay: Paciência é parte da compaixão. Quando somos verdadeiramente compassivos, temos a capacidade de esperar e de sermos pacientes. As pessoas respondem com cinismo e suspeita porque encontraram situações negativas no passado. Elas não acreditam facilmente. Não receberam amor e entendimento suficientes. Suspeitam que o que temos a oferecer a eles não sejam amor e compaixão autênticos. Mesmo se realmente temos amor e entendimento a oferecer, eles ainda assim têm suspeitas.



Há muitos jovens que não receberam entendimento e amor das suas famílias, pais, professores ou da sociedade. Eles não vêem nada bonito, verdadeiro ou bom. Eles vagam a procura de algo em que acreditar. Eles são como fantasmas famintos. Na tradição budista, descrevemos fantasmas famintos tendo uma barriga grande e uma garganta muito fina, fina como uma agulha. Eles têm muita fome, mas sua habilidade de engolir comida é limitada. Fantasmas famintos são famintos por amor e entendimento, mas sua capacidade de receber é pequena. Você tem que ajudar a trazer o tamanho de sua garganta de volta para o normal antes que eles possam digerir a comida que você oferece.



Isto requer a prática da paciência, contínua bondade amorosa e entendimento. Leva tempo para ganhar a confiança deles. Enquanto isso você não pode ajudá-los. Mesmo quando encarando o cinismo e a suspeita, você tem que continuar com sua prática. Você tem que ser paciente.



(Do livro “Answers from the Heart” – Thich Nhat Hanh)

(Tradução: Leonardo Dobbin)