quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Atenção Plena nas Sensações e na Mente

A Atenção Plena Correta (samyak smriti) está sempre no âmago de todos os ensinamentos de Buda. Tradicionalmente, a Atenção Plena Correta é a sétima etapa do Caminho Óctuplo, mas aqui ela está colocada em terceiro lugar, para enfatizar sua grande importância. A palavra sânscrita que designa atenção plena, smriti, significa "lembrar-se". A atenção plena consiste em lembrar-se constantemente de voltar ao momento presente. No Discurso Os Quatro Estabelecimentos da Atenção Plena (Satipatthana Sutta), o Buda propõe quatro objetos para a prática da atenção plena: o corpo, as sensações, a mente e os objetos da mente. (...)

O segundo estabelecimento é a atenção plena às sensações nas sensações. Os autores do Abhidharma enumeraram cinqüenta e um tipos de formações mentais. As sensações (vedana) são apenas um deles, Dentro de nós existe um rio de sensações, no qual cada gota representa uma sensação diferente. Para observar nossas sensações, só precisamos nos sentar à margem do rio e identificar cada sensação enquanto ele passa por nós e desaparece. As sensações podem ser agradáveis, desagradáveis ou neutras.

Quando nos vem uma sensação agradável, temos tendência a nos agarrar a ela, e quando é desagradável, desejamos que vá embora. Mas é mais eficaz em ambos os casos retomar à respiração e simplesmente observar a sensação, identificando-a silenciosamente: "Ao inspirar, eu sei que existe uma sensação agradável (ou desagradável) dentro de mim. Ao expirar, eu sei que existe uma sensação agradável (ou desagradável) dentro de mim." Chamar uma sensação por seu verdadeiro nome, como "alegria", "felicidade", "raiva" ou "tristeza" nos ajuda a identificá-la e enxergá-la com mais clareza. Em uma fração de segundo podem surgir muitas sensações.

Se nossa respiração for leve e calma - resultado natural da respiração consciente -, a mente e corpo se tornarão calmos, leves e claros, juntamente com as sensações. Nossas sensações não são separadas de nós nem causadas por coisas externas. Nossas sensações são nós mesmos, por um breve instante n6s nos tornamos as sensações. Não precisamos nos sentir intoxicados ou aterrorizados por elas, nem precisamos rejeitá-las. A prática de não se agarrar nem rejeitar as sensações é uma parte muito importante da meditação. Se encararmos nossas sensações com carinho, respeito e não-violência, podemos transformá-las em um tipo de energia saudável que irá nos nutrir. Quando uma sensação surge, a Atenção Plena Correta a identifica, reconhece que está lá e observa se é agradável, desagradável ou neutra.

A Atenção Plena correta é como uma mãe. Quando o filho sorri, ela o ama, e quando o filho chora, ela também o ama. Tudo o que ocorre em nosso corpo ou mente precisa ser observado com equanimidade. Não devemos lutar contra, mas sim acolher a sensação e procurar conhecer melhor o que está ocorrendo. Assim, da próxima vez que essa sensação surgir, nós a acolheremos ainda com mais calma.

Devemos acolher todas as nossas sensações, inclusive as difíceis, como a raiva. A raiva é um fogo que queima dentro de nós, e precisamos nos acalmar. "Inspirando, eu acalmo minha raiva. Expirando, eu curo a minha raiva." Quando a mãe pega no colo o bebê que chora, a criança já se sente aliviada. Quando abraçamos a nossa raiva com a Atenção Plena Correta, imediatamente passamos a sofrer menos.

Todos temos emoções difíceis, mas se permitirmos que elas nos dominem, ficaremos exauridos. As emoções se tornam descontroladas quando não sabemos o que fazer com elas. Quando as sensações são mais fortes do que a atenção plena, nós sofremos. Mas se praticarmos a respiração consciente diariamente, a atenção plena se tornará um hábito. Não espere para começar a praticar .quando estiver dominado por uma sensação qualquer, porque talvez seja muito tarde.

O terceiro estabelecimento é a atenção plena da mente (chítta) na mente. Estar consciente da mente é ter consciência das formações mentais. "Formações" (samskara) é um termo técnico budista que descreve algo que é "formado", algo que é feito a partir de outra coisa. Uma flor é uma formação. Nossa raiva é uma formação mental. Algumas formações mentais estão presentes o tempo todo e são chamadas de "universais" (contato, atenção, sensação, percepção e volição). Outras só surgem em circunstâncias particulares (zelo, determinação, atenção plena, concentração e sabedoria). Outras ainda nos elevam, ajudando a transformar o sofrimento (formações mentais benéficas ou saudáveis), e existem também as pesadas, que nos aprisionam ao sofrimento (formações mentais não-sadias ou prejudiciais).

Existem formações mentais que por vezes são saudáveis e outras não-sadias, tais como o sono, arrependimento, os pensamentos iniciais, e os pensamentos de desenvolvimento. Quando nosso
corpo e mente precisam de repouso. dormir é saudável. Mas se dormimos o tempo todo, pode ser não-sadia. Se magoamos alguém e nos arrependemos, isso é benéfico. Mas se o arrependimento conduzir a um complexo de culpa que vai tingir todos os nossos futuros atos, então o arrependimento é prejudicial. Quando nosso pensar nos ajuda a enxergar com clareza, ele é benéfico. Mas se a mente está dispersa em todas as direções, esse pensamento não nos ajuda em nada.

Existem muitos aspectos belos em nossa consciência, como fé, humildade, auto-respeito, ausência de desejo, raiva e ignorância, diligência, carinho com as pessoas, o sentir-se bem, equanimidade e não-violência. Por outro lado, as formações mentais doentias se assemelham a um novelo emaranhado. Tentamos desembaraçar a linha, e acabamos nos enrolando de tal forma que não conseguimos mais nos mover. Estas formações mentais às vezes são chamadas de aflições (kleshas), porque trazem dor para si e para os outros. Às vezes são chamadas de obscurecimentos, porque nos confundem e nos fazem perder o caminho. São também chamadas de impedimentos ou contratempos (ashrava), porque se assemelham a vasos rachados.

As formações mentais doentias básicas são a ganância, o ódio, a ignorância, o orgulho, a dúvida e as opiniões. As formações mentais doentias secundárias, que se originam das básicas, são raiva, malícia, hipocrisia, malevolência, inveja, egoísmo, fraude, astúcia, excitação doentia, desejo de prejudicar, falta de modéstia, arrogância, preguiça, agitação, falta de fé, indolência, indiferença, negligência, esquecimento e falta de atenção. De acordo com a Escola Vijnanavada de Budismo, existem cinquenta e um tipos de formações mentais, dos quais as sensações são apenas uma. Considerando-se que as sensações são, por si mesmas, o segundo estabelecimento da atenção plena, os outros cinqüenta caem na categoria do terceiro estabelecimento da atenção plena.

Cada vez que surge uma formação mental, podemos praticar o reconhecimento. Quando estamos agitados, dizemos: "estou agitado", e isso é suficiente para que a atenção plena se instale. Até sermos capazes de reconhecer a agitação como agitação, ela irá nos empurrar para cá e para lá, sem que saibamos o que está acontecendo nem por quê. A prática da atenção plena da mente não significa não ficar agitado. Significa apenas que quando estamos agitados temos consciência disso, porque a agitação tem um amigo dentro de nós, que é a atenção plena.

Mesmo antes da agitação se manifestar em nossa consciência, ela já faz parte da nossa consciência armazenadora sob a forma de uma semente. Todas as formações mentais estão latentes, sob a forma de sementes, na nossa consciência armazenadora. Algo feito por alguém faz regar a semente da agitação, e a agitação se manifesta em nossa consciência mental. Por isso, cada formação mental que surgir precisa ser reconhecida. Caso ela seja uma formação saudável, a atenção plena a cultivará. Se não for saudável, a atenção plena encorajará o seu retorno para nossa consciência armazenadora, para que permaneça ali, adormecida.

Podemos achar que a agitação é nossa, mas se pensarmos bem veremos que ela é herdada de toda a sociedade, por gerações e gerações de ancestrais. A consciência individual é feita da consciência coletiva, e a consciência coletiva, das consciências individuais. As duas coisas não podem ser separadas. Contemplando a consciência individual, tocamos a coletiva. Nossas idéias sobre beleza, bondade e felicidade, por exemplo, são as idéias da sociedade. Todos os invernos, os designers de moda nos dizem o que estará na moda na próxima primavera, e nós vemos suas criações pela lente da consciência coletiva.

Quando compramos um vestido da última moda, é porque estamos enxergando com os olhos da consciência coletiva. Alguém que vive na selva amazônica jamais gastaria tanto dinheiro para comprar um simples vestido, que nem sequer será considerado bonito. Quando produzimos uma obra literária, ela é feita tanto com a consciência coletiva como com a individual.
Costumamos falar na consciência mental e na consciência armazenadora como duas coisas diferentes, mas a consciência armazenadora é apenas a consciência mental em um nível mais profundo. Se considerarmos nossas formações mentais, veremos que elas têm raízes na consciência armazenadora. A atenção plena consegue olhar para as profundezas da consciência. Cada vez que uma das cinqüenta e uma formações mentais emerge, nós reconhecemos sua presença. Olhamos para ela, observando sua natureza impermanente e interdependente.

Esta prática tem o poder de nos liberar do medo, da tristeza e dos fogos que ardem dentro de nós. Se nossa atenção plena for capaz de acolher com carinho a alegria, a tristeza, e todas as nossas formações mentais, acabaremos enxergando, mais cedo ou mais tarde, suas raízes profundas. Cada passo e cada respiração realizados conscientes nos ajudam a enxergar as raízes das formações mentais. A atenção plena verte sua luz sobre as formações e nos ajuda a transformá-las.

(Do livro “A Essência dos ensinamentos de Buda”– Thich Nhat Hanh)

terça-feira, 11 de setembro de 2018

Nossa Verdadeira Casa

Você tem um lar? Você pode ser negro, amarelo, mulato ou branco; você pode vir de qualquer raça ou herança cultural. Pode voltar a cada noite para uma casa ou apartamento. Mas você tem um lar? Tem um lar verdadeiro onde se sinta confortável, em paz e livre?

Esta é uma questão para todos nós ponderarmos. Há brancos, cidadãos americanos, que têm vivido nos Estados Unidos por gerações, mas ainda não têm a sensação de pertencimento. Não estão felizes com a questão militar, com a economia e a política de seu país, e querem sair porque não se sentem confortáveis morando lá. O mesmo é verdade no Vietnã. Há muitos vietnamitas que não sentem que o Vietnã é seu verdadeiro lar, não se sentem amados ou entendidos por outros que dividem a mesma raça, o mesmo país, os mesmos ancestrais. Eles não vêem um futuro para eles mesmos, querem abandonar o país.

Quais dentre nós têm um verdadeiro lar? Quem se sente confortável no seu país? Eu tenho um lar que ninguém pode tirar de mim, e me sinto confortável nele. Você pode estar surpreso por esta resposta, afinal eu estou exilado do Vietnã há mais de 40 anos. Mas a verdade é que embora eu tenha sido afastado da minha terra natal, eu não tenho sentido dor. Eu não sofro porque achei meu verdadeiro lar. Ele não está na França onde Plum Village está localizado. Meu verdadeiro lar não está nos Estados Unidos. Meu verdadeiro lar não é limitado por um lugar ou tempo. Meu verdadeiro lar não fica no Vietnã, África, Palestina ou Israel.

Meu verdadeiro lar não pode ser descrito em termos de localização geográfica ou em termos de cultura. É muito simples dizer o que sou apenas em termos de nacionalidade ou cultura. No meu caso, eu não tenho um passaporte vietnamita. Portanto, legalmente falando, eu não sou vietnamita. Eu tenho elemento da cultura francesa, chinesa, indiana e mesmo da cultura dos nativos americanos em mim – e como você pode tirá-los de mim? Você não pode. Se você tirá-los de mim eu não seria a pessoa que sou hoje. Não há uma coisa chamada raça vietnamita. Olhando para dentro de mim você pode ver elementos melanésios, indonésios, mongóis e africanos. A raça vietnamita é feita apenas de elementos não-vietnamitas. Se você sabe isso, é livre. O cosmos inteiro se juntou para te ajudar a se manifestar. Em você, todo o cosmos pode ser achado. (...)

Quando temos o sentimento que não somos aceitos, que não pertencemos a nenhum lugar e não temos identidade, é quando temos a chance de penetrar na realidade e achar nosso verdadeiro lar.

As pessoas acham que eu sofri porque não me permitiram voltar ao Vietnã. Mas não foi o caso. Quando eu finalmente voltei para visitar o Vietnã depois de 40 anos, era uma alegria ser capaz de oferecer ensinamentos aos monges, monjas e leigos e falar aos artistas, escritores e outros. Quando eu tiver que voltar para a França, eu não sofri.

A expressão “eu cheguei, estou em casa”, é a incorporação da minha prática. Expressa meu entendimento dos ensinamentos do Buda. É a nata da minha prática. Desde que eu encontrei meu verdadeiro lar, não sofro mais. O passado não é mais uma prisão para mim. O futuro não é mais uma prisão para mim. Sou capaz de viver no aqui e agora e tocar meu verdadeiro lar. Sei que o futuro é disponível através do presente; isto foi o que eu encontrei. E quando tocamos o momento presente profundamente, tocamos o passado; e se soubermos como lidar com o momento presente apropriadamente, curamos o passado.

Na tradição budista, uma sessão de meditação começa com o som do sino. Um pedaço de madeira chamado “convidador” toca o sino e o convida a soar. Este som é um gentil lembrete para voltarmos para o lar. Em Plum Village, cada vez que ouvimos o som do sino, silenciosamente recitamos este poema: “Eu ouço, eu ouço, este maravilhoso som me leva de volta ao meu verdadeiro lar.” Nosso verdadeiro lar é o momento presente, seja o que for que esteja acontecendo exatamente aqui e exatamente agora.

Nosso verdadeiro lar é um lugar sem discriminação, um lugar sem ódio.  Nosso verdadeiro lar é o lugar onde não mais procuramos, não mais desejamos, não mais lamentamos. Nosso verdadeiro lar não é o passado; não são os objetos de nossos lamentos, nossa melancolia, nossas saudades ou remorsos. Nosso verdadeiro lar não é o futuro; não é o objeto de nossas preocupações, esperanças e medos. Nosso verdadeiro lar reside exatamente no momento presente. Se pudermos praticar de acordo com os ensinamentos do Buda e retornar para este exato momento, aqui e agora, então a energia da plena consciência nos ajudará a estabelecer nosso verdadeiro lar no momento presente.

De acordo com os ensinamentos do Buda, a liberação reside no momento presente. Todos os seus ancestrais espirituais e de sangue estão presentes em nós se soubermos como voltar a este momento. Quando podemos sentir estes ancestrais conosco no momento presente, não mais nos preocupamos ou sofremos. Paramos de tentar achar nosso lar no espaço, no tempo, território, nacionalidade, cultura ou raça e finalmente encontramos a felicidade.

Eu já encontrei meu verdadeiro lar. Meu verdadeiro lar é a vida. É por isso que não sofro. Não estou procurando ou esperando nada mais e também não estou mais fugindo de nada. Encontrei minha felicidade. Tomei refúgio no momento presente, no aqui e agora. Gostaria que todos nós, independentemente da cor de nossas peles – preto, branco, mulato ou amarelo – fossemos capazes  de retornar ao momento presente, penetrá-lo com profundidade e descobrir nosso verdadeiro lar.

O Buda nos oferece práticas maravilhosas, por isso podemos por fim às nossas preocupações, nosso sofrimento, nossa busca, nossos lamentos e assim poder entrar em contato com as maravilhas da vida no momento presente. Então podemos abrir nossos braços para abraçar todas as pessoas e todas as espécies sem discriminação e todos podem ser objeto de nosso amor. Quando formos capazes de fazer isso, teremos um lar. Nosso verdadeiro lar não é uma idéia abstrata. É uma realidade sólida que podemos tocar com nossos pés, com nossas mãos e com nossa mente a cada momento e que podemos viver a cada momento. Se soubermos isto, então ninguém poderá tirar de nós nosso verdadeiro lar. Mesmo se pessoas ocuparem seu país, ou nos puserem na prisão, ainda teremos nosso verdadeiro lar, e eles nunca poderão nos tirar isso.

Eu falo estas palavras para os jovens e para aqueles de vocês que sentem que nunca tiveram um lar. Eu falo estas palavras para os pais que sentem que o antigo país não é mais sua casa e que o novo país não é ainda seu lar, que vêem seus filhos sofrendo, procurando seu verdadeiro lar, enquanto nem mesmo vocês encontraram o seu. Esta prática é tal que você pode encontrar seu verdadeiro lar e ajudar seus filhos a acharem o deles. Isto é o que eu desejo para você.


(Do livro “Together we are one”– Thich Nhat Hanh)
(Traduzido por Leonardo Dobbin)

terça-feira, 4 de setembro de 2018

Destemor

A maioria de nós experimenta uma vida cheia de momentos maravilhosos e momentos difíceis. Mas para muitos de nós, mesmo quando estamos mais alegres, há medo por trás de nossa alegria. Tememos que este momento termine, que não conseguiremos o que precisamos, que perderemos o que amamos, ou que não estaremos seguros. Muitas vezes, nosso maior medo é saber que um dia os nossos corpos pararão de funcionar. Então, mesmo quando estamos rodeados de todas as condições para a felicidade, nossa alegria não está completa.

Pensamos que, para sermos mais felizes, devemos afastar ou ignorar o nosso medo. Não nos sentimos à vontade quando pensamos nas coisas que nos assustam, então negamos nosso medo. "Oh, não, não quero pensar nisso." Tentamos ignorar o nosso medo, mas ele ainda está presente.

A única maneira de aliviar o nosso medo e ser feliz é reconhecer nosso medo e olhar profundamente para sua fonte. Em vez de tentar fugir do nosso medo, podemos convidá-lo até nossa consciência e olhar claramente e profundamente.

Estamos com medo de coisas fora de nós mesmos que não podemos controlar. Nos preocupamos em ficarmos doentes, com o envelhecimento e em perder as coisas que valorizamos mais. Tentamos segurar fortemente as coisas que nos interessam — as nossas posições, nossas propriedades, nossos entes queridos. Mas segurar firmemente não alivia nosso medo. Eventualmente, um dia, teremos que nós esquecer de todos eles. Nós não podemos levá-los conosco.

Podemos pensar que se ignorarmos nossos medos, eles vão embora. Mas se nós enterramos preocupações e ansiedades em nossa consciência, elas continuam a nos afetar e a nos trazer mais tristeza. Temos muito medo de ficar sem poder. Mas nós temos o poder de olhar profundamente para os nossos medos, e então o medo não poderá nos controlar. Podemos transformar o nosso medo. A prática de viver plenamente o momento presente — o que chamamos de mindfulness — pode nos dar a coragem para enfrentar nossos medos e não sermos empurrados e puxados por eles. Ser consciente significa olhar profundamente, para tocar a nossa verdadeira natureza de interser e reconhecer que nada está perdido.

Um dia, durante a guerra do Vietnã, eu estava sentado em um aeródromo vazio no planalto do Vietnã. Estava à espera de um avião para ir para o norte para estudar uma situação de inundação e ajudar a trazer alívio para as vítimas das enchentes. A situação era urgente, então eu tive que ir em um avião militar que era geralmente usado para transportar coisas como roupas e cobertores. Eu estava sentado sozinho no aeroporto esperando o avião quando um oficial americano veio até mim. Ele também estava esperando o avião dele. Foi durante a guerra, e havia apenas nós dois  no campo de pouso.

Eu olhei para ele e vi que ele era jovem. Imediatamente, eu tive muita compaixão por ele. Porque ele teve que vir aqui para matar ou ser morto? Então, por compaixão, eu disse, "você deve ter muito medo dos vietcongs." Os vietcongs eram guerrilha comunista vietnamita. Infelizmente, eu não fui muito habilidoso, e o que eu disse regou a semente do medo nele. Ele tocou imediatamente sua arma e me perguntou, "Você é um Vietcong?"

Antes de ir para o Vietnã, oficiais do exército dos EUA tinham aprendido que todos no Vietnã poderiam ser um vietcong, e o medo habitava cada soldado americano. Cada criança, cada monge, poderia ser um agente da guerrilha. Os soldados tinham sido educados assim, e eles viam inimigos em toda parte. Tentei expressar a minha solidariedade para com o soldado, mas assim que  tinha ouvido a palavra Vietcong ele tinha sido esmagado por seu medo e puxou da arma.

Eu sabia que tinha que ficar muito calmo. Eu pratiquei inspiração e expiração profunda e então disse, "Não, eu estou esperando meu avião para ir para Danang para estudar as inundações e ver como posso ajudar." Tive muita simpatia por ele, e isso ficou claro através de minha voz. Enquanto conversávamos, eu fui capaz de comunicar que eu acreditava que a guerra tinha criado uma série de vítimas, não só vietnamitas, mas também americanas. O soldado se acalmou também, e fomos capazes de falar. Eu estava a salvo, porque eu tive suficiente lucidez e calma.

Se eu tivesse agido por medo, ele teria atirado em mim devido ao seu medo. Então não acho que perigos vêm só de fora. Eles vêm de dentro. Se não reconhecermos e olharmos profundamente para nossos próprios medos, podemos criar perigos e acidentes para nós.

Todos nós experimentamos o medo, mas se pudermos olhar profundamente para ele, seremos capazes de nos libertar de suas garras e tocar a alegria. O medo nos mantém focado no passado ou preocupados com o futuro. Se pudermos reconhecer nosso medo, poderemos perceber que exatamente agora estamos bem. Agora, hoje, ainda estamos vivos, e nossos corpos estão trabalhando maravilhosamente. Nossos olhos podem ainda ver o lindo céu. Nossos ouvidos ainda podem ouvir as vozes de nossos entes queridos...

A primeira parte de olhar para o nosso medo é apenas convidá-lo para nossa consciência sem julgamento. Só reconhecemos gentilmente que ele está presente. Isto já traz muito alívio. Em seguida, uma vez que o nosso medo se acalme, podemos abraçá-lo com ternura e olhar profundamente para suas raízes, suas fontes. Compreender as origens de nossas ansiedades e medos nos ajudará a nos soltar deles. Nosso medo vem de algo que está acontecendo agora ou é um velho medo, um medo de quando éramos pequenos, que nos mantivemos dentro de nós?

Quando praticamos convidar todos os nossos medos para virem à tona, tornamo-nos conscientes de que ainda estamos vivos, que ainda temos muitas coisas para valorizar e desfrutar. Se não estamos ocupados empurrando para baixo e gerenciando nosso medo, nós podemos desfrutar do sol, do nevoeiro, do ar e da água. Se você pode olhar profundamente para seu medo e ter uma visão clara dele, em seguida, você realmente pode viver uma vida que vale a pena.

Nosso maior medo é que quando morrermos nos tornaremos nada. Para estar livre do medo, devemos olhar profundamente para a dimensão última e ver a nossa verdadeira natureza de não-nascimento e não morte. Precisamos nos libertar dessas idéias que nós somos apenas nossos corpos, que morrem. Quando entendemos que nós somos mais que nossos corpos físicos, que não viemos do nada e não desaparecemos no nada, nos libertaremos do medo.

O Buda era um ser humano, e ele também conhecia o medo. Mas como ele passou cada dia praticando mindfulness e olhando atentamente seu medo, quando confrontado com o desconhecido, ele era capaz de enfrentá-lo com calma e em paz.

Há uma história sobre um vez que o Buda estava andando e Angulimala, um notório assassino em série, veio em direção a ele. Angulimala gritou para o Buda parar, mas o Buda continuou andando devagar e com calma. Angulimala o alcançou e exigiu saber por que ele não tinha parado. O Buda respondeu: "Angulimala, parei há muito tempo. É você quem não parou." Ele passou a explicar, "Eu parei de cometer atos que causam sofrimento a outros seres vivos. Todos os seres vivos querem viver. Todos temem a morte. Devemos cultivar um coração de compaixão e proteger as vidas de todos os seres." Assustado, Angulimala pediu para saber mais. No final da conversa, Angulimala, jurou nunca mais cometer atos violentos e decidiu se tornar um monge.

Como poderia o Buda permanecer tão calmo e relaxado quando confrontado com um assassino? Este é um exemplo extremo, mas cada um de nós enfrenta nossos medos de uma maneira ou de outra, todos os dias. Uma prática diária de mindfulness pode ser de grande ajuda. Começando com nossa respiração, começando com consciência, somos capazes de conhecer o que vem no nosso caminho.

Coragem não é apenas possível, é a derradeira alegria. Quando você toca o destemor, você está livre. Se eu estou em um avião e o piloto anuncia que o avião está prestes a falhar, vou praticar respiração consciente. Se você receber más notícias, espero que você vá fazer o mesmo. Mas não espere por um momento crítico chegar para você começar a praticar a transformar o seu medo e viver conscientemente. Ninguém pode lhe dar coragem. Mesmo se o Buda estivesse sentado bem aqui ao seu lado, ele não poderia dar isso a você. Você tem que praticar e realizar você mesmo. Se você fez da prática de mindfulness um hábito, quando surgirem dificuldades, você saberá o que fazer.

(Do livro de Thich Nhat Hanh - "Fear” - Tradução Leonardo Dobbin)