sexta-feira, 30 de novembro de 2018

O Faisão

No sutra das cem parábolas, o Buda conta uma história sobre palavras e conceitos. Um homem tolo ficou doente e quando o médico veio vê-lo, ele disse que apenas faisão poderia curar sua doença. Depois que o médico saiu, o paciente repetiu a palavra “faisão” por horas e horas e dia após dia. Meses se passaram, mas ele ainda não tinha ficado curado. Um dia, um amigo veio visitá-lo e ouvindo o homem repetir a palavra “faisão” repetidas vezes, perguntou a ele o porquê.

O homem doente disse ao amigo o que o médico tinha dito e, com pena dele, seu amigo pegou um lápis e desenhou um faisão. Ele mostrou ao homem tolo e lhe disse, “É com isto que um faisão se parece. Você tem que comer isto se quiser curar sua doença. Apenas repetir a palavra ‘faisão’ não é suficiente”.

Assim que o amigo saiu, o homem tolo colocou o desenho do faisão na sua boca, mastigou e engoliu. Por não conseguir um bom resultado com isso, ele contratou um artista que desenhou centenas de outros faisões e ele mastigou e engoliu todos eles. Mas sua doença apenas piorava e finalmente ele entrou em contato com o médico novamente.

Quando o médico viu o que havia acontecido, ficou com muita pena. Ele pegou a mão do homem tolo e foi com ele no mercado. Lá compraram dois faisões, ele acompanhou o homem até a sua casa, o ajudou a preparar a refeição e pediu ao homem para comer na sua frente. Depois disso o homem tolo ficou curado.

Quando ouvimos esta história podemos pensar como o homem era incrivelmente estúpido. Mas quando olhamos com maior profundidade, podemos ver que nós mesmos não somos muito melhores. Como nos falta inteligência e habilidade, estudamos o Dharma e o discutimos por diversão ou simplesmente para nos exibirmos. Não estamos determinados o suficiente para nos libertarmos dos nossos sofrimentos mais profundos. Permanecemos apegados a palavras e idéias, tanto nos nossos estudos quanto na nossa prática. Pode também faltar inteligência e habilidade na maneira como contamos nossas respirações, praticamos a meditação da bondade amorosa ou recitamos mantras. Podemos ficar presos na forma. Não é fácil fazer surgir entendimento desperto.

Os ensinamentos do Buda não nos são oferecidos como visões ou noções para nos agarrarmos, mas como instrumentos de prática. Se ficarmos presos em visões e noções perderemos os verdadeiros ensinamentos. O Sutra “Conhecendo a melhor maneira de segurar uma cobra” (*) é um tipo de sino de plena consciência. Ele nos lembra de sermos cuidadosos, atentos e abertos ao recebermos os ensinamentos do Buda, entendendo-os de forma que possamos fazer uso deles de forma a nos transformar e nos ajudar a ter mais paz, iluminação e liberdade.

Praticamos para ter alegria e felicidade. Praticamos para trazer alívio para uma situação difícil. E quando a plena consciência é poderosa o suficiente, nossa concentração será significativa e poderá nos ajudar a ter insight, entendimento e sabedoria que podem nos libertar da dor, lamento e medo. O propósito último da prática budista é ganhar insight de forma a ter libertação das nossas aflições – nosso medo, raiva, desejo e desespero. Trazer alívio é bom, sofremos menos, mas o problema ainda permanece.

Apenas quando temos insight poderemos verdadeiramente ser libertados. No budismo falamos de emancipação ou salvação através do insight, não por graça, apesar de o insight ser uma espécie de graça. Na aparência parece ser algo contraditório, mas se olharmos em profundidade, veremos que o insight é um tipo de graça – o maior tipo de graça, porque nos ajuda a nos libertar. O Buda disse que se não formos atentos, se não trouxermos todo o nosso coração e mente, todo o nosso ser para o estudo dos sutras e escuta do Dharma, poderemos entendê-los de uma maneira errada. A libertação só é possível quando somos capazes de corrigir nossas impressões.
Ensinamentos, idéias são como um fósforo. O fósforo gera a chama, que é o insight. Um ensinamento, uma noção, não é insight. Mas se praticarmos, podemos produzir o insight vivo, a sabedoria viva. Muitos de nós, incluindo muitos estudiosos budistas ficam presos a palavras e conceitos. Apegamos-nos a palavras, doutrinas, ensinamentos e não somos livres, nos tornamos dogmáticos. Mas uma vez que temos insight, ele queima nossas idéias e noções, assim como a chama queima o fósforo que lhe deu vida.

Nunca deveríamos considerar qualquer ensinamento ou ideologia como a verdade absoluta, são apenas meios de ganhar insight. Não deveríamos matar ou ser mortos por causa de uma idéia. Se nos tornamos dogmáticos, poderemos nos tornar ditadores, querendo que todos aceitem o que dizemos, acreditamos que temos a verdade e quem não concorda conosco é nosso inimigo.

Isto cria mais guerra, conflito e discriminação. A maioria das guerras nasceu do fanatismo a religiões ou ideologias. Este ensinamento do Buda - desapego a visões - é uma prática profunda de paz. Nós estamos prontos para soltar nossa visão de forma a ganhar insight. Este também é o espírito da ciência. Se um cientista fica preso a uma descoberta e pensa que é a verdade absoluta, não tem esperança de achar algo mais profundo, algo superior. Temos que queimar todas as noções para que o insight fique presente. Um verdadeiro praticante nunca é dogmático, nunca se apega a idéias e noções, mas faz uso delas para produzir insights, a visão correta.

O sutra “Conhecendo a melhor maneira de segurar uma cobra” nos lembra que práticas como os Três Selos do Dharma – impermanência, não-eu e nirvana – são úteis, com a condição que você saiba como aprendê-las. Caso contrário, estas noções se tornam muito perigosas e uma vez que você é capturado por elas, é muito difícil sair. Há muitos budistas que estão presos a idéias, palavras e conceitos. Eles perderam o budismo, apesar de se dizerem verdadeiros budistas. Este sutra é um grande sino de plena consciência para todos nós, nos lembrando para termos cuidado, sermos abertos e não sermos dogmáticos e com a mente estreita de forma de termos uma chance de entender e receber o verdadeiro ensinamento do Buda.

Os ensinamentos da impermanência, não-eu e nirvana são comuns a todas as escolas de budismo. Estes ensinamentos são suficientemente profundos. Se praticarmos inteligentemente, poderemos usar estas noções para ganhar o insight que precisamos. Penso que este é o grande presente do Buda. Ser capaz de receber ou não depende de cada um de nós.

Budismo não é uma filosofia ou uma descrição da realidade. Budismo é apenas um conjunto de dispositivos, meios hábeis que nos ajudam a praticar e ganhar o insight que precisamos para nossa libertação e para nos soltar de nossas aflições. Se pudermos ajeitar nossa vida para ficaremos menos ocupados, teremos uma chance maior de aprofundarmos nosso entendimento do Dharma e o colocar em prática.

No budismo dizemos: a libertação é possível através do insight. Impermanência, não-eu e nirvana são como ferramentas nos dadas para limparmos o terreno e plantar a vegetação. A ferramenta não é para ser colocada no altar para adoração, tem que ser usada. O sutra “Conhecendo a melhor maneira de segurar uma cobra” é um lembrete gentil, mas efetivo que os ensinamentos do Buda são ferramentas maravilhosas para nos ajudar a nos trazer mais fundo no coração da realidade.

(Do livro “Thundering Silence”– Thich Nhat Hanh)
(Traduzido por Leonardo Dobbin)

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Nossa Mente Distorcida

Buda contou uma estória interessante sobre um mercador que vivia com o filhinho dele. E a mãe do garotinho já não era viva. Portanto o garotinho era muito precioso para o pai. Ele estimava o garotinho, e sentia que não poderia permanecer vivo sem ele – e nós compreendemos isso. Um dia o pai se ausentou numa viagem de negócios. Os bandidos vieram, incendiaram a vila e seqüestraram as crianças, e seqüestraram o garotinho. Então quando o pai chegou a sua casa, ficou desesperado. Ele procurava seu filhinho, mas não conseguia achá-lo em lugar algum. Naquele estado de preocupação e desespero extremados, ele viu o cadáver de uma criança queimada, e tomou como se fosse seu filhinho. Ele acreditou que o seu filho estava morto. Em desespero ele se atirava no chão, batia no peito, puxava os cabelos e se condenava por ter deixado o garotinho sozinho em casa.

Depois de ter chorado por um dia e uma noite, ele se levantou, reuniu o cadáver da criança e organizou uma cerimônia de cremação. Depois, ele pegou as cinzas e as colocou num lindo saquinho de veludo, que ele carregava consigo o tempo todo, porque ele amava tanto o garotinho. Quando você ama muito algo ou alguém, você quer que aquela coisa ou pessoa esteja com você o tempo todo, vinte e quatro horas por dia; e isso nós compreendemos. Agora, porque ele acreditava que o garotinho estava morto e àquelas eram as próprias cinzas dele, ele queria carregar os restos mortais do seu amado com ele. Seja dormindo, comendo ou trabalhando ele sempre mantinha aquele saquinho com ele.

Uma noite, por volta das duas horas da manhã, o filho, que tinha conseguido escapar, conseguiu ir para casa. Ele bateu na porta do seu pai. Você pode imaginar o pobre pai deitado na cama, sem conseguir dormir, ainda chorando com o saco de cinzas.
“Quem está batendo na minha porta?” gritou o pai.
“Sou eu, paizinho, é o seu filho.”
O jovem pai acreditava que isso era alguém tentando enganá-lo, porque ele tinha certeza que seu filho já estava morto. Ele disse, “Vá-se embora, criança perversa. Não perturbe as pessoas a esta hora da noite. Vá pra casa. O meu filho está morto.” E o garoto insistia, mas ele continuava a se recusar a reconhecer que àquele era o seu próprio filho que estava batendo na porta. Finalmente, o garoto teve que ir embora, e o pai lhe perdeu para sempre.

É claro que nós sabemos que o jovem pai não foi muito sensato. Ele deveria ter sido capaz de reconhecer a voz do seu filho. Mas como ele estava aprisionado numa crença, e a mente dele estava coberta de dor, desespero e convicção, ele não foi capaz de reconhecer que era o seu próprio filho batendo à sua porta. Por isso ele se recusou a abri-la, e perdeu o seu filho para sempre.

Às vezes nós tomamos algo como verdadeiro, como a verdade absoluta. Apegamos-nos àquilo; não conseguimos mais liberá-lo. E por isso ficamos emperrados. Mesmo quando a verdade chega pessoalmente batendo a nossa porta, nós recusamos abri-la. Nosso apego às nossas visões é um dos maiores obstáculos a nossa própria felicidade.

Suponha que você está subindo uma escada. Se você chegar ao quarto degrau e acreditar que este é o mais alto, não terá chance alguma de subir até o quinto, que é, de fato, mais alto. A única maneira de você subir mais alto é deixando o quarto para trás.

Um dia, Buda voltou da floresta para casa com uma mão cheia de folhas. Ele olhou para os monges, sorriu e disse, “Queridos amigos, vocês acham que as folhas na minha mão são tão numerosas quanto às folhas na floresta?” E é claro que os monges disseram, “Querido professor, você está segurando somente dez ou doze folhas, e na floresta existem milhões e milhões delas.” E Buda disse, “É verdade, meus amigos, eu tenho muitas idéias, mas eu não lhes digo. Porque o que vocês precisam é trabalhar para a sua própria transformação e cura. Se eu lhes der muitas e muitas idéias, vocês ficam aprisionados nelas, e assim não têm chance alguma de receptar os seus próprios insights.

Então como perceber o mundo sem idéias preconcebidas? Como olhar para o mundo com verdadeira consciência? Existem três naturezas que descrevem como nós percebemos o mundo em graus de consciência variados: parikalpita, paratantra e parinishpana. A primeira natureza é parikalpita, a nossa construção mental coletiva. Nossa tendência é acreditar em um mundo sólido, objetivo. Nós vemos coisas existindo fora uma das outras. Você está do lado de fora de mim, e eu estou do lado de fora de você. O brilho do sol está do lado de fora da folha e a folha não é a nuvem. As coisas estão foras umas das outras. Esta é a maneira como a maioria de nós vê as coisas. Mas o que tocamos, vemos e ouvimos é apenas uma construção mental coletiva. O que a maioria de nós considera a natureza do mundo é apenas a natureza de parikalpita. A pessoa do seu lado diz que vê e ouve a mesma coisa que você. Isso não se dá porque tais coisas são as únicas e objetivas formas de ver o mundo, mas sim porque aquela pessoa está muitíssimo constituída como você e percebe quase a mesma coisa.

Nós sabemos que não vemos apenas com os nossos olhos. Os nossos olhos apenas recebem a imagem que será traduzida na linguagem dos sinais elétricos. Os sons que ouvimos também são recebidos e traduzidos em sinais elétricos. Som, imagem, toque e cheiro, são todos traduzidos em sinais elétricos que a mente consegue receber e processar.

No Sutra do Diamante, Buda disse, “Todos os darmas (seres) se assemelham a um sonho, a objetos mágicos, a bolhas de água, a meras imagens, uma gota de orvalho, um relâmpago...” Aquilo que concebemos como sendo personalidades, pessoas, o que concebemos como sendo entidades, darmas, são apenas construções mentais, evoluindo de várias maneiras, mas todas elas são manifestações vindas da consciência. ** Cientes de que o mundo em que vivemos é parikalpita, nós olhamos profundamente para dentro do mundo da consciência mental e tocamos o segundo tipo de percepção: paratantra.

Paratantra significa “recostando-se um no outro, dependendo um do outro para se manifestar.” Você sozinho não consegue ser você mesmo, você tem que inter-existir com tudo o mais. Olhando para dentro de uma folha, você pode ver a nuvem e o raio do sol; a unidade contém a totalidade. Se retirarmos estes elementos da folha, não restará folha alguma.

Uma flor jamais conseguiria ser ela mesma sozinha. Uma flor conta com muitos elementos que não são flor para poder se manifestar. Se olharmos para a flor e virmos uma entidade separada, nós ainda estamos no reino de parikalpita. Quando olhamos para uma pessoa, como o nosso pai, nossa mãe, nossa irmã, nosso companheiro, se os virmos como um “eu” separado, atma, então ainda estamos no mundo de parikalpita.

Para descobrir a natureza vazia das pessoas e das coisas, você precisa da energia da consciência e da concentração. Você passa o seu dia em estado de plena consciência. Qualquer coisa que você entra em contato com, você olha para aquilo profundamente, e não é mais enganado pela aparência daquilo. Olhando para o sol, você vê o pai, a mãe e os ancestrais, e você vê que o filho não é uma entidade separada. Você se vê como uma continuação – isto é, você ver tudo à luz da interdependência e da interexistência. Tudo está baseado em tudo o mais para se manifestar. Se continuar praticando, a noção de “um” e “muitos” desaparecerá.

O cientista nuclear David Bohm disse que um elétron não é uma entidade em si mesma, mas está constituído de todos os outros elétrons. Esta é uma manifestação da natureza de paratantra, a natureza da interexistência. Não existem entidades separadas, existem somente manifestações que se apóiam umas nas outras para serem possíveis. É como a direita e a esquerda. A direita não é uma entidade separada que pode existir sozinha apenas. Sem a esquerda, a direita não consegue existir. Tudo é assim.

Um dia o Buda disse ao seu querido discípulo Ananda, “Qualquer pessoa que vê a interexistência, vê Buda”. Se tocarmos a natureza da interdependência, tocamos  Buda. Este é um processo de treinamento. Durante o dia, enquanto estiver andando, sentando, comendo, asseando, você pode se treinar a ver as coisas como elas são. Finalmente quando o treino estiver concluído, a natureza de parinishpana, realidade, se revelará inteiramente e o que você toca não mais é um mundo de ilusão, mas o mundo da própria coisa.
                                                                                
Primeiro, nos tornamos cientes de que o mundo dentro do qual vivemos está sendo construído por nós, pela nossa mente, coletivamente. Em segundo lugar, estamos cientes de que se olharmos profundamente, se nós soubermos usar a consciência plena e a concentração, poderemos começar a tocar a natureza da interexistência. E, finalmente, quando a prática da mente atenta tiver se aprofundado, a realidade absoluta da verdadeira natureza, desnuda de noções, conceitos e idéias, até mesmo as idéias da “interexistência” e “inexistência do eu”, pode ser revelada.

Os praticantes espirituais não usam instrumentos de pesquisa sofisticados. Eles usam a sabedoria interior deles, a luminosidade deles. Uma vez que estejamos livres do agarramento, de noções e conceitos, uma vez que estejamos livres do nosso medo e da nossa raiva, então teremos um instrumento muito brilhante com o qual podemos experimentar a realidade como ela é: livre de todas as noções, noções de nascimento e morte, existência e inexistência, vir e ir, igual e diferente. A prática da consciência plena, concentração e sabedoria podem purificar a nossa mente e torná-la um instrumento poderoso com o qual podemos olhar profundamente dentro da natureza da realidade.

No budismo, falamos em pares de opostos, como nascimento e morte, vir e ir, existir e inexistir, igualdade e diversidade. Suponha que você tem uma vela acesa, e sopra até apagar a chama. Ai você acende a vela novamente e faz esta pergunta à chama: “Minha querida chamazinha, você é a mesma chama que se manifestou antes ou você é uma chama totalmente diferente?” E ela dirá: “Eu nem sou a mesma chama, nem sou uma chama diferente.” Nos ensinamentos de Buda, isto é chamado de madhyamaka, o caminho do meio ou caminho intermediário. O caminho do meio é extremamente importante, porque o caminho do meio elimina os extremos, como existir e inexistir, nascimento e morte, vir e ir, igual e diferente. E as descobertas da ciência já comprovam este tipo de visão.

Quando você abre o álbum de família e vê um retrato da criança de cinco anos que você era, você vê que está bem diferente daquele garoto ou garota no álbum. Se a chama fosse lhe perguntar: “Querido amigo, você é o mesmo garotinho do álbum?” você responderia tal como ela lhe respondeu, “Querida chama, eu não sou o mesmo garotinho, mas eu também não sou uma pessoa totalmente diferente.”

(Do livro Buddha Mind, Buddha Body: Walking toward Enlightenment, de Thich Nhat Hanh)
(Tradução para o português: Tâm Vân Lang)

terça-feira, 13 de novembro de 2018

Budismo e Ciência

Um dia um grupo de jovens de Kalama veio visitar o Buda enquanto ele estava naquela área. Eles perguntaram, “Querido professor, muitos professores vieram aqui e cada um deles defende que seu ensinamento é a verdade, é o absoluto. Cada um diz que deveríamos segui-los e não seguir a outro professor. Qual é a sua idéia?” O Buda disse: “Não se apresse em acreditar em nada, mesmo se estiver escrito nas escrituras sagradas. Não se apresse em acreditar em nada só porque um professor famoso disse. Não acredite em nada apenas porque a maioria concordou que é a verdade. Você deveria testar qualquer coisa que as pessoas dizem através de sua própria experiência antes de aceitar ou rejeitar algo.”

O que o Buda disse é verdadeiramente científico. O budismo não pode ser descrito como ciência, mas tem o espírito científico.

Como cientista, depois de algum tempo pesquisando e fazendo vários experimentos, você descobre algo. Feita a descoberta, você tem que publicar o que descobriu, porque acredita que descobriu a verdade, uma verdade científica. Depois de ter publicado seu achado em uma revista científica, outras pessoas irão olhar para ele e haverá um número muito pequeno de especialistas no seu campo de pesquisa que irão determinar se seu achado é verdade ou não. Para fazer isso, eles irão testar por eles mesmos. Eles não podem apenas dizer que o que você disse é verdade porque eles são especialistas naquele campo. Eles têm que provar com sua própria experiência. A grande maioria das pessoas que não é especialista no campo, apenas acredita, porque não temos meios de testar a descoberta de forma a verificar a verdade. Temos que acreditar em um número muito pequeno de cientistas daquele campo de atuação.

No domínio da ciência há muitas crenças. Acreditamos no que os especialistas dizem sem testarmos por nós mesmos. Mesmo assim, tendo sido provado que era a verdade, dez ou vinte anos depois uma nova verdade é considerada superior, mais profunda, mais verdadeira que a verdade anterior. E novamente haverá um punhado de especialistas que tentarão confirmar e nós, a maioria, vamos seguir. Neste caminho nos comportamos como pessoas religiosas, mesmo no domínio da ciência.

E sobre a prática do budismo? No budismo, o objeto de nossos estudos é a mente e como ela se relaciona com o sofrimento e a felicidade. Não estamos tão preocupados com a mesa ou a nuvem, com o átomo ou as estrelas. Mas estamos preocupados com o sofrimento e felicidade. Não somos filósofos. Não especulamos sobre felicidade e sofrimento. Queremos realmente observar nosso sofrimento, observar nossa felicidade. Queremos achar uma solução. Queremos nos liberar do sofrimento. Queremos trazer felicidade verdadeira. E esse é o trabalho real que não pode ser feito apenas falando.

Quando você senta em meditação, segue sua respiração e gera a energia da plena consciência e concentração, tem os instrumentos para trabalhar. Pode reconhecer e abraçar seu sofrimento. Pode cultivar o tipo de sabedoria que pode ajudar a desintegrar o sofrimento. Você pode fazer isso no espírito empírico – você realmente entra nele, e não apenas fala sobre ele. Seu sofrimento é a realidade e você o reconhece. Você entra nele, analisa e usa sua plena consciência, concentração e insight de forma a transformá-lo. É como um cientista usando seus instrumentos de forma a olhar profundamente na natureza do que está lá. E depois de usar o método de transformação e cura, você pode querer compartilhar isso com seus alunos ou amigos.

Há bons praticantes de meditação que tem mais ou menos o mesmo tipo de experiências. Eles tentam verificar e experimentar o mesmo tipo de coisa. Se eles forem bem sucedidos, podem dizer: “O que você nos disse é verdade. Eu tive a mesma experiência.” Mas muitas pessoas em volta apenas acreditam, sem ter a experiência. Portanto não há grande diferença entre ciência e budismo. Muitos budistas apenas acreditam. Há apenas um punhado de nós que podem testemunhar a verdade que foi descoberta.

Budismo às vezes descreve a mente e às vezes o mundo, mas essa descrição não é pelo prazer da descrição. A descrição objetiva a prática. Se você aprender sobre a mente é porque quer praticar bem. Não é porque quer uma bela doutrina sobre a mente. Se você falar sobre impermanência e não-eu não é pelo prazer de descrever a realidade como sendo impermanente e livre de um eu separado. Essa descrição é um instrumento que o ajuda a se liberar,porque a verdade da impermanência e não-eu podem te ajudar a superar seu desespero, seu medo e assim por diante. Portanto há uma diferença.

Quando um cientista estuda uma partícula, tem que usar instrumentos, aceleradores de partícula e outros, mas ele tem que usar a mente também. A maioria dos cientistas fica fora da partícula como um observador, e a partícula se torna o objeto da observação. Mas na experimentação dos praticantes budistas, você não fica fora como um observador. Não pode se estabelecer como observador. Tem que se tornar participante, porque o bloco de sofrimento que você experimenta não é o objeto de sua observação. É você. Você é o bloco de sofrimento. É por isso que o Buda disse para se praticar a contemplação do corpo no corpo, contemplação dos sentimentos nos sentimentos. Não é possível ficar de fora, em pé, observando. Você tem que se tornar uno com o objeto que observa. Esta é a diferença entre ciência e budismo, e os cientistas modernos começaram a ver isso.

O físico britânico David Bohm disse que de forma a realmente entender o átomo você teria que parar de ser apenas um observador. Deveria começar a ser um participante. Isto é muito próximo da disciplina da meditação.

A esquerda política acredita na ciência, no liberalismo, na razão. Eles lutam com todas as forças contra o fundamentalismo e o dogmatismo, mas ainda sofrem muito. Eles não têm força suficiente. Politicamente falando eles perderam a eleição. Como eles apóiam a ciência e a liberdade de pensamento, são anti-dogmáticos, sim, mas isto ainda não é suficiente. Eles não estão aptos a trazer a dimensão espiritual para dentro das suas vida. É possível ter dimensão espiritual na nossa vida diária, na nossa política, na nossa vida econômica, sem sermos capturados pelo fundamentalismo?

O Buda provou que era liberal, mas ele era profundamente espiritual. É por isso que ao falar em evolução biológica você tem que falar em evolução cultural, evolução espiritual, que tem o poder de nos liberar do dogmatismo e do fundamentalismo. A questão é como a ciência e a meditação podem dar as mãos de forma a ir em frente ao futuro, para nossa liberação. Esta é uma questão de nosso tempo.

Em agosto de 2006, teremos um retiro sobre a Mente e a Neurociência, e teremos uma chance de tocar nesse problema. Budismo às vezes parece uma religião, mas não é verdadeiramente uma religião. Às vezes parece ciência, mas não é ciência, por que estamos preocupados com a realidade última. Nós gostamos de fazer perguntas, mas também queremos nos transformar, nos curar. Há dentro do budismo uma tremenda fonte de sabedoria e experiência passada pelo Buda através de muitas gerações de praticantes. Podemos aprender muito de suas experiências de forma que possamos por nossa vez nos transformar e ajudar a curar e transformar o mundo.

 (Transcrito de um Dharma Talk de Thich Nhat Hanh em um retiro para cientistas em 17 de novembro de 2005 em Plum Village)

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Sem Lama, Sem Lótus

A plena consciência tem duas funções. A primeira é entrar em contato com todas as coisas maravilhosas e bonitas que estão ao nosso redor. A segunda é entrar em contato com as emoções difíceis, como raiva, medo, dor e tristeza dentro de nós e a nossa volta. Plena consciência pode nos ajudar a reconhecer estas dificuldades e transformá-las. Não é apenas o paraíso que está disponível no aqui e agora, o inferno também está disponível no aqui e agora. A prática da plena consciência nos ajuda a ter contato com ambas, as maravilhas para nos nutrirmos e o sofrimento para nos curarmos e nos transformarmos.

As pessoas tendem a achar que seu verdadeiro lar é um lugar onde não há sofrimento, apenas felicidade. Mas este pensamento vai contra a sabedoria do interser. Não podemos fazer crescer uma flor de lótus sem lama. Para cultivar vegetais, precisamos composto. Qualquer jardineiro orgânico sabe por que guardamos os restos da nossa comida e o lixo do jardim. Este lixo é orgânico e com ele podemos fazer composto para nutrir flores e vegetais. Sofrimento e felicidade são também orgânicos. Podemos transformá-los em bem-estar. Este é o ensinamento do Buda sobre não-dualidade.

A flor de lótus não é possível sem a lama. Entendimento e compaixão não são possíveis sem sofrimento. Eu nunca gostaria de estar em um lugar onde não houvesse sofrimento, porque em tal lugar eu não teria a chance de aprender como entender e ser compassivo. É tocando o sofrimento que temos a chance de entender as pessoas e seu sofrimento. É entendendo nosso próprio sofrimento e o sofrimento dos outros, que começamos a saber o que é ser compassivo. É apenas contra o pano de fundo do sofrimento que podemos reconhecer nossa felicidade.

Eu lembro que durante a Guerra do Vietnã queríamos desesperadamente apenas ter um cessar-fogo por 24 horas – 24 horas sem bombas caindo, sem ninguém sendo morto. Mas se não tivéssemos vivido em uma guerra, não saberíamos como apreciar 24 horas de paz, 24 horas sem os horrores da guerra. Portanto, precisamos de sofrimento para reconhecer as condições que temos para sermos felizes. Nenhuma flor pode existir sem lama. Minha definição de lar não é um lugar onde não há sofrimento, mas um lugar onde eu posso cultivar a compaixão.

Mesmo quando vemos muita violência, discriminação, ódio, ciúme e ganância, se estamos equipados com entendimento e compaixão, não sofremos. Sabemos como fazer uso do lixo de forma a nutrir as flores e vegetais. Estamos tornando a vida mais bonita e com mais significado através do poder do entendimento e compaixão em nós.

Entendimento e compaixão também nos protegem. Mesmo se outros estão com raiva, são violentos e nos discriminam, não temos que sofrer, porque entendemos e o entendimento traz a tona a compaixão. Onde quer que haja violência, discriminação, ódio e ganância, se estamos equipados com a Visão Correta, a sabedoria do interser e da não-discriminação, não temos que sofrer. A dor é inevitável, mas o sofrimento é opcional.

Quando estamos protegidos pelo entendimento e compaixão, não somos mais vítimas. Os outros podem ainda ser vítimas de sua própria ignorância e discriminação. Estas pessoas são o objeto da sua prática. Temos que viver de forma que possamos remover e transformar a ignorância, discriminação, ganância e ódio deles.

Durante a Guerra do Vietnã, muitos de nós tentaram expressar nossas preocupações. Não queríamos esta guerra onde irmãos e irmãs se matavam com armas e ideologias estrangeiras. Ambas as forças, comunistas e não comunistas, nos davam armas e ideologias e nos impeliam a lutar e nos matar. Alguns de nós que éramos estudantes de Budismo começamos um movimento chamado “Não mate seu irmão”, e nossas vozes eram silenciadas por ambos os lados que lutavam. Tentamos falar alto, tentamos dizer ao mundo que não queríamos a guerra, não queríamos nos matar, mas estávamos sendo forçados a fazê-lo.

Muitos de nós que praticavam a plena consciência, entendimento e compaixão queríamos a reconciliação, mas nossas vozes eram silenciadas. Alguns tiveram que se imolar com fogo de forma a transmitir nossa mensagem. Thich Quang Duc se imolou um dia. Eu estava em Nova York quando eu vi a foto na primeira página do New York Times. Ele era um amigo meu.

Nhat Chi Mai, uma de minha alunas, se imolou clamando por reconciliação. Ela foi ao Templo Tu Nghiem muito cedo, cerca de 2 ou 3 horas da manhã. Ela colocou uma estátua da Virgem Maria e a estátua de Quan Yin, o bodosatva da compaixão, em frente dela e deixou para trás um conjunto de cartas para o presidente do Vietnã do Norte, para o presidente do Vietnão do Sul e para todos, para que se juntassem e parassem de se matar. Então ela jogou gasolina no corpo e acendeu o fogo. Eu estava em Paris. Ela deixou uma carta para mim que dizia, “Thay, não se preocupe, a paz virá. Não sofra muito.” Ela estava na iminência de morrer, mas tentava confortar a mim, seu professor.

Embora a maioria das pessoas não quisesse a guerra, ela continuava. Meu livro de poesia de paz – eu gosto de chamar poesia de paz e não poesia anti-guerra – foi condenada pelo Norte e confiscada pelo Sul. Portanto quando a Universidade de Cornell me convidou para ir aos Estados Unidos para uma série de palestras eu aproveitei a oportunidade e fui para poder clamar pela paz.

Quando estamos verdadeiramente no momento presente, podemos encontrar partes da vida que são refrescantes e curadoras. Mas podemos encontrar também guerra, sofrimento, violência, ódio, medo e discriminação. Quando isto acontece, podemos sentir a raiva subir. Mas aqueles que criam a discriminação e o ódio são vítimas do medo. É o medo que é o obstáculo. No Vietnã, naquela época e ainda hoje, quero ajudar as pessoas a se libertarem do medo. Aqueles que lutaram no Vietnã, aqueles que lutam agora no Iraque e no Afeganistão não são meus inimigos. Eles são aqueles que quero ajudar. Eles são objetos da minha prática de compaixão e entendimento.

Eu não tenho inimigos.

(Do livro “Together we are one”– Thich Nhat Hanh)
(Traduzido por Leonardo Dobbin)