segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Momento Presente, Passado e Futuro

Pergunta: As pessoas que trabalham, estudam ou têm atividades normais, precisam pensar sobre o passado de forma que possam fazer certas coisas que são boas para o presente, mas você sempre fala que temos que nos liberar do passado. Elas também precisam olhar para o futuro, apenas para conhecer seus sonhos, como também para ser bem sucedido na sua carreira, mas você também fala sobre não pensar no futuro. Portanto, essas pessoas devem praticar meditação?
 
Thay: Podemos aprender muito do passado. Temos que reexaminar o passado e aprender com ele. Mas isso não significa que somos aprisionados pelo passado. Essas duas coisas não têm nada a ver uma com a outra.
 
Enquanto estivermos investigando o passado, podemos ainda estabelecer nosso corpo e mente estavelmente no momento presente. É porque estabelecemos nosso corpo no momento presente que temos a capacidade de aprender com o passado. De outra forma apenas sonhamos com o passado ou somos assombrados por ele. Com o futuro é a mesma coisa. Se sentarmos e nos preocuparmos sobre o futuro, apenas o estragaremos. Temos o direito de criar projetos, planejar o futuro. Mas isso não significa que você fica assustado ou preocupado com ele.  Estas são duas coisas completamente diferentes.
 
O futuro é feito de uma única substância, e esta é o presente. Se você sabe como tomar conta do presente com todo seu coração, estará fazendo tudo que pode pelo futuro. Pensar e sonhar sobre o futuro não leva muito tempo. Você não precisa de vinte e quatro horas para sonhar com ele! Você precisa de apenas um ou dois minutos e isto é ótimo.
 
O que é meditação? Meditação não é algo que você possa imaginar. Meditação inicialmente significa que você tem que estar aqui no momento presente. Mais cedo eu trouxe a imagem que o corpo está aqui, mas a mente está vagando em outro lugar. Neste momento você não está presente. Não está presente para você mesmo. Você não está presente para seu marido, sua esposa, seus filhos, seus irmãos e irmãs, sua nação, seu povo. Isto é o oposto de meditação.
 
No momento presente há necessidades; por exemplo, você tem certas dores e dificuldades. Seu amado tem certas dores e dificuldades. Se você não pode estar presente no momento presente, como pode ajudar a si mesmo e à outra pessoa? É por isso que meditação, primeiramente, é estar presente no momento presente. Isso significa que você não está aprisionado pelo passado e sua alma não é sugada pelo futuro. Meditação não é pensar, não é algo abstrato.
 
Meditação sentada, primeiramente, é estar presente, sentar parado. Uma vez que você tenha essa habilidade, será capaz de ver a verdade. Podemos então ter projetos e tomar ações que são verdadeiramente apropriadas, de forma a tomar conta da situação. É por isso que habitar pacificamente, de forma feliz no momento presente, é tão importante. Você pode voltar ao momento presente para ser nutrido, ser curado e também para gerenciar os problemas e questões do presente. Se pudermos tomar conta das questões no presente, então teremos um futuro.
 
Sonhar sobre o futuro e planejar o futuro são duas coisas diferentes. Uma é um modo científico e o outro é fuga. Por exemplo, talvez haja tristeza no presente e queremos fugir. Sonhar sobre o futuro é um tipo de remédio calmante, como barbitúricos, que podem te ajudar temporariamente a esquecer sobre o presente.
 
Temos que praticar. Dar passos em liberdade, com calma, é algo que você tem que praticar. Uma vez que você tenha alegria e felicidade no momento presente, sabe que esses momentos de felicidade são a fundação do futuro.
 
Por favor, lembre disso por mim: Se você não tem felicidade no momento presente, não há modo de ter felicidade no futuro.
 
Para os amigos que praticam a tradição da Terra Pura eu digo que a Terra Pura é uma terra de paz, de felicidade. Há aqueles entre nós que pensam que a Terra Pura fica no oeste e no futuro. Sobre oeste não estamos querendo dizer a Europa ou a América do Norte, a direção ocidental. Aqueles que praticam a Terra Pura, especialmente iniciantes, acreditam que a Terra Pura fica no futuro. Eles pensam que somente quando morrem vão para lá e então vamos para o oeste, a direção da felicidade extrema.
 
Pessoas que praticam a Terra Pura por muito tempo vão mais profundamente. A Terra Pura não está no oeste nem no leste, mas está bem na sua mente. Quando praticamos meditação, e praticamos apropriadamente, praticamos na Terra Pura. Cada respiração, cada passo, cada sorriso, cada olhar pode nos trazer felicidade no momento presente.
 
O Buda, onde quer que vá, nunca deixa a Terra Pura. Se agora pudermos viver na Terra Pura com cada passo, cada respiração, cada sorriso, tudo pode fazer surgir a Terra Pura. Com certeza a Terra Pura é algo à nossa mão. Mas se sofremos dia e noite e pensamos que quando morrermos iremos para a Terra Pura, isto não é algo que seja tão certo.
 
É por isso que eu quero lembrá-los uma vez mais: Se você não tem capacidade de viver de forma feliz no momento presente, não há modo que possa ter felicidade no futuro.
 
(Thich Nhat Hanh – Dharma Talk realizado em 10 de Abril de 2007 no Vietnã)
(Interpretado por Irmã Dang Nghien; transcrito por Greg Sever)

quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Experimentando a Mente

Agora chegamos ao nono exercício da respiração consciente: "Experimentando a mente, eu respiro". Mente significa formações mentais. Estamos presentes para as formações mentais. Estamos presentes para as formações mentais que negligenciamos no passado. Isso é equivalente ao primeiro grupo de quatro exercícios de experimentar o corpo e o segundo grupo de experimentar sentimentos. A prática é a mesma - vamos para casa e cuidamos de nós mesmos. Primeiro nosso corpo, depois nossos sentimentos e agora nossas formações mentais.

Primeiro, simplesmente reconhecemos a presença de uma formação mental. Não tentamos compreendê-la, possuí-la ou nos apegar a ela. Também não tentamos afastá-la. Isso é chamado de simples reconhecimento de uma formação mental. Reconheça, chame-a pelo seu nome verdadeiro e diga: “Estou aqui para cuidar de você porque você é eu mesmo.“

Já sabemos que muitos de nós não querem ir para casa sozinhos. Nós estamos com medo. Há muitos sofrimentos e conflitos internos que queremos evitar. Reclamamos que não temos tempo para viver, mas tentamos matar nosso tempo livre, não voltando para nós mesmos. Nós escapamos ligando a televisão ou pegando um romance ou revista; nós saímos para dar uma volta. Fugimos de nós mesmos e não atendemos ao nosso corpo, sentimentos ou formações mentais.

Temos que ir para casa. Se estamos em guerra com nossos pais, amigos, sociedade ou igreja, pode ser porque há uma guerra em nosso interior. Uma guerra interna facilita outras guerras. Os cinco elementos - formas, sentimentos, percepções, formações mentais e consciência - compreendem um grande território. Cada um de nós é o rei ou rainha de seu território dos Cinco Skandhas, mas não somos monarcas responsáveis. Não queremos examinar nosso território ou governá-lo. Nós apenas queremos abandoná-lo. Há muitas guerras sendo travadas nele. Isso se tornou uma bagunça, porque nós apenas queremos escapar e temos medo de voltar ao nosso próprio reino. O Buda nos aconselhou a ir para casa e arrumá-la, restaurando nossa paz e harmonia.

Como mencionei antes, temos medo de voltar para casa porque nos faltam as ferramentas ou os meios de autoproteção. Equipados com atenção plena, podemos ir para casa com segurança e não seremos dominados por nossa dor, tristeza e depressão. Voltando para casa conscientemente, podemos conversar com nossa criança interior ferida usando o seguinte mantra: “Querido, eu voltei para casa. Eu estou aqui por você. Eu tomo você em meus braços. Lamento ter deixado você sozinho por um longo tempo.“ Com algum treinamento, com uma caminhada consciente e uma respiração consciente, seremos capazes de voltar para casa e abraçar nossa dor e tristeza.

A prática da meditação não significa que você se transforma em um campo de batalha, com lados bons e maus lutando entre si. Isso não é verdade para a tradição budista. Não há batalhas a serem travadas. Nossos elementos positivos e negativos são todas partes orgânicas de nós. Se tivermos habilidade na arte de abraçar e transformar, podemos transformar os elementos negativos em positivos. Também não jogamos nada fora; transformamos nosso lixo em adubo.

A atenção plena é orgânica e pode ser alimentada por outras energias. Quando a energia da atenção plena abraça qualquer outra formação mental, produz transformação. As muitas funções da atenção plena incluem reconhecer, acalmar, nutrir, transformar e cuidar das formações mentais que se manifestam. As formações mentais reprimidas sempre tentam emergir, ser reconhecidas e abraçadas por nós. Primeiro, reconhecemos a parte visível - como um iceberg com apenas a ponta aparecendo acima da água. Depois de identificá-la, tocamos a grande parte subaquática. Toda vez que há uma manifestação, produzimos atenção plena para reconhecê-la e abraçá-la.

Todos sabemos que preferimos não reconhecer nossa criança interior ferida. Em vez disso, queremos enviá-la para um lugar muito profundo, onde nunca precisamos ir. Mas nossa criança ferida sempre tenta aparecer e dizer: "Estou aqui. Estou aqui. Você não pode me evitar. Você não pode fugir de mim. ”Nossa prática é ir para casa e reconhecer os diferentes aspectos de nossa criança ferida. Abraçamos cada aspecto até que finalmente possamos abraçar a criança inteira. Nossa Sangha pode nos apoiar nessa prática.

Se as formações mentais se manifestarem durante a meditação sentada e te impedem de meditar, você pode precisar reconhecê-las uma a uma. Isso também é meditação. Quando um pensamento, sentimento, percepção, dor ou tristeza se manifesta, pratique a inspiração e a expiração e reconheça-a pelo que é. Diga: “Eu conheço você. Eu sei que você está presente. Estou aqui por você ”, e aceite-a. O objeto de nossa prática no nono exercício é qualquer tipo de formação mental - ciúme, medo, ódio, desespero, inquietação - positiva ou negativa.

Quando você está meditando sobre um assunto interessante, seu poder de concentração é suficiente para acalmar suas formações mentais. Isso é chamado de meditação guiada ou dirigida. Você escolhe um assunto especial para meditação e olha profundamente para descobrir algo. Quanto mais interessante o assunto, mais forte é a sua concentração. Se não for interessante, mesmo que se esforce, você ainda se sentirá sonolento e outras coisas continuarão surgindo. Uma meditação guiada é identificar e escrever os nomes de todas as nossas vacas. Outra é escrever o que podemos fazer por nós mesmos todos os dias para nos trazer alegria. No começo, você pode pensar que não há muitas coisas, mas quando se senta e olha profundamente, descobre dezenas.

Outra maneira de trabalhar com sua mente é permitir que as coisas apareçam e lidar com elas com atenção plena. Você nutre sua respiração consciente e reconhece cada formação mental que se manifesta. Toda vez que você abraça uma formação mental saudável, sua alegria e felicidade aumentam e a formação mental saudável cresce. Você percebe sua compaixão e fé no Dharma e usa a felicidade que recebe para se alimentar. Toda vez que formações mentais negativas, prejudiciais e dolorosas se manifestam, você as reconhece e as abraça para acalmá-las e olha profundamente para elas.

(Do livro “The Path of Emancipation”– Thich Nhat Hanh)
(Traduzido por Leonardo Dobbin)

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

O Medo Original

Muitos de nós encontramo-nos frequentemente pensando em coisas que atiçam sentimentos de medo e tristeza. Todos nós experimentamos algum sofrimento no nosso passado, e muitas vezes nos lembramos dele. Nós revisitamos o passado, revendo-o e assistindo os filmes do passado. Mas se nós revisitarmos estas memórias sem atenção plena consciência, cada vez que virmos essas imagens sofreremos novamente.

Suponha que você foi abusado quando criança. Você sofreu muito. Você era frágil e vulnerável. Provavelmente tinha medo o tempo todo. Você não sabia como se proteger. Talvez na sua mente você continue a ser abusado de novo e de novo, mesmo se você for um adulto agora. Você já não é aquela criança que era frágil e vulnerável, sem meios de defesa. Mesmo assim continua a experimentar o sofrimento da criança, porque você sempre revisita essas memórias, mesmo que sejam dolorosas. Há um filme, uma imagem armazenada em sua consciência. Toda vez que sua mente se volta para o passado e olha para aquela imagem ou assiste a esse filme, vai sofrer novamente. Plena atenção lembra-nos que é possível estar no aqui e agora. Lembra-nos que o momento presente está sempre disponível para nós. Não precisamos viver eventos que aconteceram há muito tempo.

Suponha que alguém bateu no seu rosto há vinte anos. Isto foi gravado como uma imagem no seu subconsciente. Seu subconsciente armazena muitos filmes e imagens do passado que sempre estão sendo projetados lá em baixo. E se você tem uma tendência a voltar e assisti-los de novo, então continuará a sofrer. Cada vez que você vir essa foto, é esbofeteado novamente e novamente e novamente.

Mas isso é apenas o passado. Você já não está no passado. Está no momento presente. Aquilo aconteceu, sim — no passado. Mas o passado já se foi. Agora as únicas coisas que ficaram são memórias e fotos. Se você continuar voltando ao passado para rever essas imagens, isso é plena consciência errônea. Mas se nos fixarmos no momento presente, podemos olhar para o passado de uma forma diferente e transformar o seu sofrimento.

Talvez quando você era uma criança, as pessoas às vezes levassem seu brinquedo para longe de você. Você aprendeu a chorar para tentar manipular a situação ou sorrir, a fim de agradar a pessoa que tomava conta de você, para fazê-la devolver o brinquedo. Quando era uma criança, você aprendeu a produzir um sorriso diplomático. Isso é uma forma de lidar com o problema da sobrevivência. Você aprende sem saber que está aprendendo. A sensação de que é frágil, vulnerável, incapaz de defender-se, a sensação de que sempre precisa de alguém para ficar com você, está sempre presente. Esse medo original — e sua outra face, desejo original — está sempre presente. A criança, com seu medo e seu desejo, está sempre viva em nós.

Alguns de nós têm depressão e continuam a sofrer mesmo que na situação atual, tudo pareça bem. Isto acontece porque temos uma tendência a viver no passado. Nos sentimos mais confortáveis, fazendo nossa casa no passado, mesmo que tenha muito sofrimento lá. Essa casa é no fundo de nosso subconsciente, onde os filmes do passado são sempre projetados. Toda noite voltamos, assistimos a esses filmes e sofremos. E o futuro que constantemente você se preocupa não é nada mais do que uma projeção do medo e do desejo do passado.

Como é tão fácil ser pego no passado, é útil ter um lembrete para que você fique no presente. Em Plum Village, usamos um sino. Quando ouvimos o sino, praticamos a respiração consciente. Inspirando e expirando, nós dizemos, "Eu ouvi o sino. Este som maravilhoso me remete à minha verdadeira casa." Minha verdadeira casa está no aqui e agora. O passado não é a minha verdadeira casa.

Você pode dizer à criança dentro de você, que o passado não é o nosso lar; nossa casa é aqui, onde podemos realmente viver nossa vida. Temos todo o alimento e cura que precisamos aqui no momento presente. Grande parte do medo, ansiedade e angústia que experimentamos está presente porque a criança interior não foi libertada. Está criança está com medo de sair para o momento presente e então sua plena atenção, sua respiração, podem ajudar esta criança a perceber que ela é segura e pode ser livre.

Suponha que você vá ao cinema. Do seu lugar na platéia você olha para a tela. Há uma história. Há pessoas na tela, interagindo amas com as outras. E lá embaixo na platéia, você chora. Você experimenta o acontecimento do que está na tela como real, e é por isso que você derrama lágrimas reais e emoções reais. O sofrimento é real; as lágrimas são reais. Mas quando você vai até a tela e a toca, não vê qualquer pessoa real. Não é nada, apenas uma luz piscante. Você não pode falar com as pessoas na tela. Você não pode convidá-las para tomar chá. Você não pode pará-las ou fazer-lhes uma pergunta, mas assim mesmo isto pode criar um sofrimento real, em seu corpo, bem como na sua mente. As nossas memórias nos causam muito sofrimento, tanto emocionalmente como fisicamente, mesmo que elas não estejam acontecendo no momento

Quando reconhecermos que temos um hábito de repetição de eventos antigos e de reagir a novos eventos, como se fossem os antigos, poderemos começar a notar quando surge essa energia de hábito. Podemos então suavemente lembrarmo-nos que temos outra escolha. Podemos olhar ao momento como ele é, um momento novo e deixar o passado para um momento quando pudermos olhar para ele com compaixão.

Nós podemos escolher uma hora e lugar, não em um momento agitado, mas em um momento tranquilo, para contar para a criança ferida e sofrida dentro de nós que ela não precisa mais sofrer. Podemos pegar a mão dela e a convidar para vir para o momento presente e testemunhar as maravilhas da vida que estão disponíveis aqui e agora: "Venha comigo, minha querida. Nós crescemos. Já não precisamos ter medo. Não estamos mais vulneráveis. Não estamos mais frágeis. Não precisamos ter medo de nada."

Você tem que ensinar à criança em você. Você tem que convidá-la para acompanhá-lo e viver a vida com você no momento presente. Claro, podemos conscientemente refletir e aprender do passado, mas quando fizermos isso ficamos firmes no momento presente. Se estivermos bem fundados no momento presente, poderemos olhar hábilmente para o passado e aprender sem ser sugado ou ser oprimido por ele.

Podemos também nos preparar para o futuro sem sermos consumidos por nossos planos. Muitas vezes nós também não planejamos nada, ou somos apanhados no planejamento obsessivo, porque temos medo do futuro e da incerteza. O momento presente é onde temos que operar. Quando você realmente está ancorado no momento presente, pode planejar o futuro de uma forma muito melhor.

Viver conscientemente no presente não exclui fazer planos. Significa apenas que você sabe que não vale a pena perder-se em preocupações e medos sobre o futuro. Se você está bem firme no momento presente, pode trazer o futuro para o presente para ter um olhar profundo sem perder-se na ansiedade e na incerteza. Se você está verdadeiramente presente e sabe como cuidar do momento presente da melhor maneira possível, está fazendo o seu melhor para o futuro já.

O mesmo é verdade sobre o passado. O ensino e a prática da atenção plena não proíbem olhar profundamente para o passado. Mas se nós nos permitirmos afogar em arrependimentos e tristezas sobre o passado, isso não é plena atenção correta. Se nós estamos bem estabelecidos no momento presente, podemos trazer o passado de volta para o momento presente e ter um olhar profundo. Você pode examinar muito bem o passado e o futuro enquanto você está estabelecido no momento presente. Na verdade, você pode aprender do passado e ter planos para o futuro da melhor maneira se estiver estabelecido no momento presente.

Se você tem um amigo que sofre, você tem que ajudá-lo. "Meu caro amigo, você está em terreno seguro. Agora está tudo bem. Por que continua a sofrer? Não volte ao passado. É apenas um fantasma; é irreal". E sempre que nós reconhecemos que estes são apenas filmes e fotos, não são a realidade, estamos livres. Esta é a prática da atenção plena.

(Do livro “Fear” – Thich Nhat Hanh – traduzido por Leonardo Dobbin)

quarta-feira, 24 de julho de 2019

O Passado e o Futuro Ambos Residem no Presente

Quando pensamos sobre o passado, sentimentos de lamentos ou vergonha podem surgir. Quando pensamos sobre o futuro, sentimentos de desejo ou medo podem vir a tona. Mas todos os sentimentos surgem no momento presente e todos eles afetam o momento presente. A maioria do tempo, seu efeito não contribui para nossa felicidade ou alegria. Temos que aprender como encarar estes sentimentos. A principal coisa que precisamos lembrar é que o passado e o futuro estão ambos no presente e se tomarmos conta do momento presente então também transformaremos o passado e o futuro.

Como podemos transformar o passado? No passado podemos ter dito ou feito algo destrutivo ou que possa ter ferido alguém e agora lamentamos. De acordo com a psicologia budista, lamento é uma “emoção indeterminada”. Isto significa que pode ser construtiva ou destrutiva. Quando sabemos que algo que dissemos ou fizemos causou dano, podemos fazer surgir uma mente de arrependimento, prometendo que no futuro não repetiremos o mesmo erro. Neste caso, nosso sentimento de lamento é saudável. Se, por outro lado, o sentimento de lamento continua a nos perturbar, tornando impossível que nos concentremos ou qualquer outra coisa, nos tirando toda paz e alegria de nossas vidas, então este sentimento de lamento tem um efeito não saudável.

Quando o lamento se torna não saudável, deveríamos inicialmente distinguir se a causa estava baseada em algo que fizemos ou dissemos ou em algo que deixamos de dizer ou fazer. Se no passado, dissemos ou fizemos algo destrutivo, podemos chamar isso de um “erro de ação”. Dissemos ou fizemos algo com falta de plena atenção, e isso causou dano.

Às vezes cometemos um “erro de omissão”. Causamos dano por não dizer ou fazer o que precisava ser feito ou dito, e isto nos trouxe lamento e tristeza. Nossa falta de plena atenção estava presente e seus resultados ainda estão presentes. Nossa dor, vergonha e lamento são uma parte importante desse resultado. Se observarmos o presente profundamente e tomarmos conta dele, podemos transformá-lo. Fazemos isso por meio da plena consciência, determinação, ações corretas e fala correta. Tudo isso acontece no momento presente. Quando transformamos o presente desta maneira, também transformamos o passado e ao mesmo tempo, construímos o futuro.

Se dissermos que tudo está perdido, tudo está destruído ou que o sofrimento já aconteceu, nos não estamos vendo que o passado se tornou o presente. É claro que o sofrimento já foi causado e as feridas desse sofrimento podem tocar exatamente na nossa alma, mas ao invés de lamentarmos ou sofrermos pelo que fizemos no passado, deveríamos tomar conta do presente e transformá-lo. Os traços de uma seca ruim só podem ser apagados por uma generosa chuva e ela só pode cair no momento presente.

No budismo o arrependimento é baseado no entendimento que a ação errada se origina na mente. Há um gatha do arrependimento:

Todas as ações errôneas surgem por causa da mente.
Se a mente é transformada, podem as ações errôneas continuarem?
Depois do arrependimento, meu coração está leve
Como a nuvem flutuando livre no céu.

Devido à nossa falta de plena consciência, como nossa mente estava obscurecida pelo desejo, raiva e ciúme, agirmos de forma errada. Isto é o que significa “Todas as ações errôneas surgem por causa da mente“. Mas se as ações errôneas surgem da nossa mente, podem também serem transformadas pela nossa mente. Se nossa mente é transformada, então os objetos percebidos pela nossa mente também serão transformados.

Tais transformações estão disponíveis se soubermos como retornar ao momento presente. Uma vez que tivermos transformado nossa mente, nosso coração ficará tão leve como uma nuvem flutuante e nos tornaremos fonte de paz e alegria para nós mesmos e para os outros. Ontem talvez por causa de alguma bobagem ou raiva dissemos algo que fez nossa mãe triste. Mas hoje nossa mente está transformada e nosso coração leve, e podemos ver nossa mão sorrindo para nós, mesmo se ela não está mais viva. Se pudermos sorrir dentro de nós mesmos, nossa mãe também poderá sorrir conosco.

Se pudermos transformar nosso passado, poderemos também transformar o futuro. Nossas ansiedades e temores do futuro fazem o presente escuro. Não há dúvidas que o futuro será escuro também, porque o futuro é feito do presente. Tomar conta do presente é a melhor forma de tomar conta do futuro. Às vezes, como ficamos tão preocupados com o que acontecerá no dia seguinte, nos reviramos a noite toda incapazes de dormir. Preocupamo-nos que se não dormirmos durante a noite ficaremos cansados no próximo dia e incapazes de atuar com o melhor de nossa habilidade.

Quanto mais nos preocupamos, mais difícil é para dormirmos. Nossas preocupações e medos do futuro destroem o presente. Mas se pararmos de pensar sobre o amanhã e apenas ficarmos na nossa cama e seguirmos nossa respiração, realmente desfrutando da oportunidade que temos de descansar, não apenas iremos saborear os momentos de paz e alegria sob os cobertores quentes, mas também iremos cair no sono facilmente e naturalmente. Este tipo de sono é uma grande ajuda para fazer do dia seguinte um grande sucesso.

Quando ouvimos que as florestas do planeta estão doentes e morrendo rapidamente, podemos nos sentir ansiosos. Estamos preocupados com o futuro porque estamos conscientes do que está acontecendo no presente momento. Nossa consciência pode nos motivar a fazer algo para parar a destruição de nosso ambiente. Obviamente, nossa preocupação pelo futuro é diferente dos temores e ansiedade que apenas nos drenam forças. Temos que saber como desfrutar a presença das árvores bonitas e saudáveis de forma a sermos capazes de fazer alguma coisa para protegê-las e preservá-las.

Quando jogamos uma casca de banana no lixo, se formos plenamente atentos, saberemos que a casca se tornará composto e renascerá como um tomate ou uma salada de alface em apenas poucos meses. Mas se jogarmos uma sacola de plástico no lixo, graças a nossa consciência, saberemos que a sacola não se tornará um tomate ou uma salada de alfaces muito rapidamente. Alguns tipos de lixo precisam de 400 ou 500 anos para se decompor. O lixo nuclear precisa de 250.000 anos antes de deixar de ser perigoso e retornar ao solo. Se vivermos no momento presente de forma desperta, tomando conta do momento presente com todo nosso coração, não faremos coisas que nos destruirão no futuro. Esta é a forma mais concreta de fazer o que é construtivo no futuro.

Na nossa vida diária, podemos também produzir venenos para nossas mentes e estes venenos destruirão não apenas a nós mas também àqueles que vivem conosco, no presente e no futuro também. Budismo fala sobre três venenos: desejo, aversão e ignorância. Adicionalmente há outros venenos cuja capacidade de ferir é grande: ciúme, preconceito, orgulho, suspeita e teimosia.

Na nossa relação diária conosco mesmos e nosso ambiente qualquer um destes venenos pode se manifestar, queimar e destruir nossa paz e alegria, assim como a paz e alegria daqueles ao nosso redor. Estes venenos podem persistir e poluir nossas mentes, causando amargas conseqüências no futuro.

Portanto viver no momento presente é também aceitar e encarar estes venenos assim que surgirem, manifestarem e retornarem ao inconsciente e praticar a meditação de observação para transformá-los. Esta é uma prática budista. Viver no momento presente é também ver as coisas saudáveis e maravilhosas de forma a nutri-las e protegê-las. Felicidade é o resultado direto de encarar as coisas e ficar em contato. Esta felicidade é o material do qual um lindo futuro é manufaturado.

(Do livro “Our appointment with life”– Thich Nhat Hanh)
(Traduzido por Leonardo Dobbin)

segunda-feira, 8 de julho de 2019

A Arte da Autocura

Cerca de quinze anos atrás, conheci um jovem em Montreal. Ele me disse que ia morrer. Ele tinha câncer. Os médicos disseram que ele tinha cerca de três semanas de vida, talvez menos, talvez mais. Eu estava sentada ao lado dele na mesa do café da manhã. Comi meu café da manhã conscientemente, sem pensar em como ajudá-lo. Eu apenas comi meu café da manhã conscientemente. Quando terminei, me virei para ele e conversei sobre como viver profundamente no momento presente. Mesmo que você tenha apenas uma ou duas semanas de vida, ainda pode praticar a vida em cada momento.

Eu disse a ele que algumas pessoas vivem por sessenta, setenta ou oitenta anos, mas não sabem como viver profundamente cada momento de suas vidas diárias. Elas não tiveram a chance de fazer isso. Setenta ou oitenta anos podem não significar muito. Se você sabe viver profundamente cada momento da sua vida diária, três semanas é muito. Ele estava interessado no que eu disse e lhe dei instruções sobre como respirar e caminhar. Mesmo com o diagnóstico, ele continuou a viver por outros onze anos. Ele recebeu os Cinco Treinamentos da Consciência e eu dei a ele o nome do Dharma de “Vida Verdadeira”.

O Buda disse que, se você tem uma ferida em seu corpo ou em sua mente, pode aprender a cuidar dela. Há muitas maneiras. Você permite que a ferida em seu corpo e alma se cure. Você não fica no caminho de sua cura. Mas muitas vezes fazemos exatamente isso. Proibimos que nosso corpo se cure; nós não permitimos que nossa mente, nossa consciência, se cure por causa de nossa ignorância. Sabemos que nosso corpo tem a capacidade de se curar. Quando cortamos nosso dedo, não precisamos fazer muito. Nós apenas limpamos e permitimos a cura - talvez por um ou dois dias. Se mexermos na ferida, se nos preocuparmos demais ou fizermos muitas coisas, ela pode não se curar. Especialmente quando nos preocupamos muito com isso.

O Buda deu o exemplo de alguém que é atingido por uma flecha. A pessoa sofre. Se logo depois uma segunda flecha o atinge exatamente no mesmo ponto, a dor não é apenas o dobro, é dez vezes mais intensa. Se você tem uma ferida em seu corpo e amplifica-a com sua preocupação e seu pânico, ela se tornará mais séria. Seria útil praticar a inspiração e expiração e compreender a natureza da ferida. Inspirando, pensamos: “Estou ciente de que isso é apenas uma ferida física. Ela pode ser curada se eu permitir que isso aconteça.

Se precisar, peça a um amigo ou médico que confirme que sua ferida é pequena e que você não deve se preocupar. Você não deve entrar em pânico, porque o pânico nasce da ignorância. Preocupação e pânico são formações mentais. Elas pioram a situação. Você deve confiar no seu conhecimento de seu próprio corpo. Você é inteligente. Não imagine que você vai morrer por causa de uma ferida menor em seu corpo ou alma. Saiba que quando um animal é ferido, ele procura um lugar calmo para descansar. A sabedoria está presente no corpo do animal. Ele sabe que o descanso é a melhor maneira para se curar. Ele não faz nada, nem mesmo come ou caça; apenas se deita. Alguns dias depois, pode levantar-se. Está curado. Os seres humanos perderam a confiança em seu corpo.

Nós entramos em pânico e tentamos fazer muitas coisas. Nós nos preocupamos muito com o nosso corpo. Nós não permitimos que ele se cure. Nós não sabemos como descansar. A respiração consciente nos ajuda a reaprender a arte de descansar. A respiração consciente é como uma mãe amorosa segurando seu bebê doente em seus braços dizendo: "Não se preocupe, eu vou cuidar bem de você, apenas descanse."

Temos que reaprender a arte de descansar. Muitos de nós sabem como aproveitar nossas férias. Muitas vezes estamos mais cansamos depois de umas férias do que antes. Espero que possamos reunir nossas ideias sobre como descansar em nossas discussões do Dharma.

Temos que acreditar na capacidade do nosso corpo de se curar. O poder de autocura é uma realidade, mas muitos de nós não acreditamos nisso. Em vez disso, tomamos muitas vitaminas e remédios que às vezes podem ser mais prejudiciais ao nosso corpo. Um animal sabe que quatro ou cinco dias sem comida não o prejudicarão. Isso ajudará. Mas temos medo de jejuar. Pensamos que, se não comermos, ficaremos enfraquecidos e a cura não ocorrerá. Isso não é verdade. Nos tempos antigos, as pessoas muitas vezes jejuavam por várias semanas. É uma maneira maravilhosa de começar a cura em nosso corpo e em nossa consciência. Em Plum Village, temos retiros em jejum. Nós não comemos por duas ou três semanas. Isso é algo que todos nós podemos fazer.

Durante o nosso jejum, seguimos nosso cronograma normal. Continuo dando palestras sobre o Dharma e pratico meditação andando ao ar livre com a Sangha. Eu continuo a praticar sentado e faço meus trabalhos diários. Se você está com medo, pode não conseguir fazer isso. Você precisa de confiança. Seu corpo pode ficar sem comida por várias semanas. Você começa pulando o jantar e usando esse tempo para relaxamento total ou meditação andando lenta. Quando você tiver experimentado a alegria do jejum, você terá fé na prática. A capacidade de autocura é uma realidade em seu corpo e sua consciência.

(Do livro “The Path of Emancipation”– Thich Nhat Hanh)
(Traduzido por Leonardo Dobbin)

quarta-feira, 26 de junho de 2019

Plena Atenção e Concentração

Alguns de nós sentem que nossas vidas não fazem sentido nem têm qualquer significado. Quando não vemos um caminho significativo em nossas vidas sofremos muito. Somos infelizes porque não sabemos para onde ir. Nossa confusão nos faz sofrer, não importa quão ricos e poderosos somos. Se virmos uma direção em nossas vidas, encontrarmos sentido e vivermos com compaixão, saberemos como ajudar a nós mesmos e aos outros ao nosso redor a sofrer menos. Conhecemos o Dharma, temos praticado e sabemos que em momentos difíceis o Dharma pode resgatar a nós e às pessoas que amamos. Fomos libertados pelo Dharma. Apenas tocando o Dharma dentro de nós e tocando nossa confiança nele, alegria e felicidade nascem em nós, nos tornando verdadeiramente felizes.

Você pode pensar que felicidade significa ter muito dinheiro, estar fisicamente em forma, ser famoso ou ter tanto sexo o quanto quiser e quando quiser. Muitos de nós já percorremos esses caminhos e reconhecemos que, quanto mais somos apanhados em desejos obsessivos e anseios sensuais, mais sofremos. Nós costumávamos pensar nessas coisas como elementos de nossa felicidade, mas agora aprendemos que a verdadeira felicidade está em deixar ir, soltar e restaurar nossa liberdade. É por isso que o Buda nos aconselhou a nos alimentar cultivando alegria e felicidade através da prática de olhar profundamente.

"Experimentando a alegria, eu respiro." Isso não é um pensamento positivo. Isso significa que você olha profundamente e toca os elementos que trazem alegria e felicidade verdadeiras. A alegria pode nascer da concentração. Nós já aprendemos sobre os benefícios da concentração. A quantidade de felicidade que obtemos ao comer uma laranja depende da nossa atenção e concentração. Quanto mais concentrados estivermos na laranja, maior será nosso prazer e felicidade. As condições para a felicidade estão em toda parte - dentro e ao redor de nós - mas, como não nos concentramos, não as reconhecemos.

Uma das minhas alunas mora em Paris e pratica caminhadas conscientes. Às vezes ela está tão ocupada que precisa correr. Um dia ela estava em um elevador com uma mulher mais velha. Olhando para a senhora, ela disse: “Isso não é vida, sempre correndo”. A senhora olhou para ela e disse: “Sim, mas você pode correr. Eu não posso. Eu sou muito velha. Se eu correr, vou cair”. Ter pernas e pés fortes, ser capaz de correr, é felicidade - não uma razão para reclamar - porque algumas pessoas gostariam de correr e não podem. Você sabe que é jovem e tem bons pés. Sua consciência e atenção plena produzem uma percepção que lhe traz felicidade. "Inspirando, eu sei que meus pés são sólidos. Eu posso correr. Expirando, eu sorrio." A atenção plena e a concentração são motivos para a felicidade.

A velhice também tem suas vantagens. Se as pessoas idosas estiverem conscientes, podem ficar muito felizes, porque percebem a rapidez com que a vida passa. Elas são maduras e capazes de saborear cada momento de suas vidas, apreciando sabiamente os elementos positivos dentro deles.

Eles não correm, mas sentem-se quietos e vivem cada momento de suas vidas mais profundamente. Quando você é jovem, você é como uma corrente de água que vai do topo da montanha até a base. Conforme você envelhece, se torna mais como um rio que flui pacificamente e reflete o céu azul e a terra. O fluxo jovem de água que corre do topo da montanha não pode fazer isso. Se as pessoas mais velhas são capazes de reconhecer os elementos positivos em suas vidas, também podem ser felizes. Precisamos de atenção plena para reconhecer o que está presente e concentração para estar profundamente com esse elemento. A concentração ajuda nossa felicidade a nascer; é a base da felicidade.

Se soubermos administrar todas as vinte e quatro horas do dia, perceberemos que um dia é muito tempo. O que faz com que seja longo é a nossa concentração. Os mais velhos vivem de maneira mais concentrada que os jovens, estabelecendo-se mais no momento presente. Com mindfulness (plena atenção) e concentração, os idosos podem apreciar cada momento que lhes é oferecido. Cada momento da vida cotidiana pode se tornar uma história para seus filhos e netos. Isso é possível. O Buda fez isso. Ele não deixou para trás um conjunto de dogmas e teorias; ele deixou para trás sua vida. Cada passo que ele dava era pacífico e sólido. Sua compaixão penetrou não apenas nos seres vivos de seu tempo, mas também de nosso tempo.

Na Ásia, as pessoas libertam animais em seus aniversários. Isso é graças à compaixão e aos ensinamentos do Buda. Propus a nossos amigos cristãos que praticassem a soltura de pássaros em vez de matá-los no dia de Natal. Além disso, tenho certeza de que Jesus ficará feliz se, em vez de cortar uma árvore, você plantar uma. Como cristãos, você precisa perceber sua capacidade de viver profundamente e falar sobre isso. No dia de Wesak, o aniversário do Buda, no Sri Lanka, Tailândia e outros países budistas, ninguém passa fome porque a comida é cozida e oferecida em todos os quintais. Espero que possamos celebrar Wesak todos os dias para que ninguém nunca vá passar fome no mundo.

Essa tradição também brota da compaixão do Buda. Cada passo, cada respiração, cada palavra do Buda transmite e transporta a energia da atenção plena, compreensão e compaixão. Dessa fonte, seus alunos continuam a herdar compaixão e conhecimento. Se eles praticarem bem, eles podem transmitir essa fonte de compaixão, cura e felicidade para as futuras gerações.

A prática é viver cada momento de sua vida cotidiana profundamente. Quando você bebe um copo de água, enquanto segura um bebê nos braços ou se senta na frente de sua amada, se você se concentra e está atento, a vida é real, e felicidade e alegria nascem. É por isso que o Buda falou sobre o nascimento da alegria e felicidade a partir da concentração.

(Do livro “The Path of Emancipation”– Thich Nhat Hanh)
(Traduzido por Leonardo Dobbin)

terça-feira, 11 de junho de 2019

Aprendendo a Falar a Verdade

Nas últimas duas semanas, aprendemos que podemos descrever nossa consciência como um círculo com duas partes. A parte mais baixa é chamada consciência armazenadora, e a parte superior é a consciência mental. Em nossa consciência armazenadora há muitas sementes -sementes de alegria, sementes de felicidade e sementes de tolerância. Mas também há sementes de raiva, de frustração e de ciúme. Nossa prática é regar as sementes positivas assim elas se manifestarão e tentaremos ao máximo não convidar as sementes negativas a entrar em nossa consciência mental. 

Quando eu cheguei a Plum Village tinha muitas idéias sobre a prática. Eu tinha idéias sobre o Buda de livros que tinha lido. Eu tinha idéias sobre como um professor deveria ser e idéias sobre como monges e monjas deveriam ser. No princípio, a Sangha era muito pequena, só havia quatro monges e muito trabalho. Minha percepção era que a vida em Plum Village não era bem organizada, assim eu me ofereci para ser o coordenador de trabalho, e trabalhei muito duro, enquanto tentava ao máximo organizar Plum Village.  

Eu tinha a idéia que meu professor deveria estar disponível para mim, me dando afeto quando eu precisasse e passaria muito tempo falando comigo. Uma vez em 1993, quando eu já era um monge há cerca de um ano e meio, fui para a América para conduzir um retiro. Eu senti muita falta do Thay e esperava que quando o visse novamente, ele me perguntaria "Como você está? Está indo bem? “

Depois do meu retorno, Thay visitou Upper Hamlet e caminhava pelo escritório do templo onde eu estava parado, enquanto o esperava pacientemente. Eu uni minhas palmas e me curvei sinceramente a Thay com respeito, mas ele continuou a sua prática de meditação caminhando. Ele nem mesmo olhou para mim! Me senti muito triste. Eu disse a mim mesmo, "Bem, parece que Thay não tem sensibilidade sobre a ‘relação de estudante-professor’”. [Risada.] "Ele não parece me olhar absolutamente; apenas continua a andar e não tem cuidados com o seu estudante". Naquele momento a maioria de nós era nova na prática, assim nossa compreensão ainda era muito fraca.

Eu tinha muitas idéias de como os monges deveriam ser. Quando um irmão mais velho fazia algo diferente de minha expectativa, me sentia triste e queria deixar Plum Village. A semente de querer fugir é muito forte dentro de mim. Thay me chamava Fantasma Faminto, porque eu tenho uma semente muito grande de fantasma faminto dentro de minha consciência. Crescendo na América, fui treinado para julgar e ser crítico.   

Freqüentemente nós não temos muita oportunidade de tocar a bondade e beleza que estão ao nosso redor. Quando nossa prática é fraca, nós continuamos permitindo que as sementes de frustração, raiva, e julgamento entrem da nossa consciência armazenadora na consciência mental. E se nossa plena consciência for fraca, nós nos permitimos ser levados por essas energias.  

No verão de 1994, eu cometi um grande erro enquanto preparava a grande cerimônia de ordenação. Eu era o coordenador do trabalho, e era um trabalho difícil porque a Sangha era pequena e tínhamos que fazer toda a comida, e também ser os criados para muitos monges mais velhos e monjas que estavam vindo para as cerimônias.  

Havia um irmão mais velho que tinha sido um monge por muitos anos. Ele tinha estudado na Índia e então ido para a Holanda; gradualmente ele deixou o caminho como um monge. Mas naquela primavera ele veio para Plum Village e seria ordenado novamente como um monge. Eu o respeitava muito, mas eu também tinha muitas idéias sobre ele.  

Durante nossa reunião de planejamento ele se ofereceu para organizar o Festival da Lua Cheia. Eu estava muito contente, porque é difícil achar alguém para fazer isto durante o retiro de verão. Mas no dia seguinte enquanto eu estava lavando meu prato, ele subiu e disse, "Bem, eu não vou organizar o Festival de Lua Cheia porque o monge que organizou no ano passado recusou-se a me ajudar passando a sua experiência”.  
Eu disse", O quê?! Você prometeu que organizaria o Festival de Lua Cheia e agora você não fará isto? Como você pode fazer isso comigo? Todo mundo já tem trabalhos, assim quem vai organizar o festival? Ninguém pode fazer isto. Você, por favor, faça isto? "  Mas ele se recusou novamente.  

Alguns dias depois, tivemos uma reunião da Sangha para regar as sementes positivas dentro de nós mesmos antes do retiro. Thay fez uma boa palestra, enquanto regava as flores de todo o mundo na Sangha. Então ele perguntou, "Há alguma pergunta? “

Eu elevei minha mão e disse, "Sim, eu tenho uma pergunta." Eu me levantei e perguntei, "Como nós podemos organizar um retiro de verão quando alguém aqui se recusa a assumir a responsabilidade de fazer o seu trabalho?” [Risada.] Bem em frente da Sangha, eu continuei explicando e reclamando.  

Nesta reunião, o Thay tinha tentado ao máximo trazer as sementes boas de nossa consciência armazenadora até nossa consciência mental, e então eu inverti e convidei todas as sementes negativas para cima. A Sangha inteira ficou muito tensa. Thay não estava muito contente. Ele disse, "Sente-se e cale-se! " [Risada.]  

Eu estava muito chateado porque pensei que estava falando só a verdade e tinha pedido ajuda. Eu não percebi que tinha regado as sementes negativas na consciência de todo mundo. Quando a reunião terminou, eu fui ao Thây, me curvei e disse, "Thay, por favor me perdoe. Eu cometi um erro, mas não entendo o que eu fiz, porque estava falando só a verdade."  

Thay disse, "O que você falou não era a verdade. Verdade é algo que tem a capacidade de reconciliar, dar às pessoas esperança, dar felicidade às pessoas. Isso é a verdade! Quando você fala e causa dano, embora possa estar correto, não é nenhuma verdade.”

Eu sou da América onde nós somos ensinados que devemos ser honestos e diretos. Assim se não gosto de algo, eu quero dizer isto diretamente. Mas às vezes você precisa usar modos habilidosos para falar, e essa habilidade para mim é a verdade. Verdade tem a capacidade para reconciliar, tem a capacidade de trazer harmonia e paz.  

Lentamente eu comecei a aprender que algumas de minhas percepções não estavam de acordo com a prática. Eu precisei aprender modos novos de perceber. Eu precisei aprender a olhar positivamente para coisas.  

Muitas pessoas vêm ao Thay e falam sobre assuntos que surgiram na comunidade, e estão procurando respostas do Thay. Mas sendo um mestre Zen, normalmente Thay não responde diretamente. Ao invés, ele ajuda aquela pessoa a retornar para a sua prática e tocar o que é belo naquele momento. E isso é o segredo da prática de Plum Village.  

Se nós não tivermos felicidade dentro de nós mesmos, se nós não tivermos paz dentro de nós mesmos, tudo o que nós fizermos será só uma reação. Ação está baseada em alegria e felicidade; reação está baseada em sofrimento e dor. Lentamente eu aprendi agir, e não reagir.  

Muitas vezes eu disse, "Bem, Thay só fala sobre inspirar e expirar, ano após ano, sobre regar as sementes boas. Ele não tem nada novo para falar conosco!” Mas depois de cinco anos escutando o Dharma de Thay, eu entendi o que ele quer dizer quando diz que vida é um milagre e é possível tocar alegria e felicidade no aqui e agora. É possível ver a beleza do céu azul, e ser capaz de ter alegria profunda no momento presente.  

Em cada retiro Thay nos fala que quando caminharmos, não deveríamos falar. E quando falarmos, nós deveríamos parar e deveríamos estar verdadeiramente presente um com o outro. Mas assim que nós deixamos a sala de Dharma, continuamos a andar e falar ao mesmo tempo. Assim nós só escutamos com nossos ouvidos, não com nosso coração. E assim nós não podemos realmente praticar.  

Quando eu tenho um problema, quando tenho tristeza, me aproximo do Thay. Ele me escuta, então pega minha mão e nós andamos no jardim. Ele mostra a beleza: "Ouça o som do riacho, veja o bambu, o céu azul, a flor". Ir além da rede de nosso pensamento e tocar a Dimensão Última são os ensinamentos essenciais da prática Zen. Tocar a vida profundamente no aqui e agora.  

Quando Thay nos ensina sobre as Quatro Nobres Verdades, ele nos ensina primeiro a regar nossas sementes positivas, entrar em contato com o elemento positivo ao redor de nós. Ele nos ensina que é possível estar contente no aqui e agora, independente de quanto sofrimento tenhamos. E então, uma vez que formos suficientemente fortes, aquele pedaço minúsculo de felicidade e alegria será a base sobre a qual nós estaremos de pé quando começarmos a olhar o grande bloco de sofrimento que está em nossa consciência armazenadora.

Sem esta base de felicidade e alegria, é muito difícil tocar nosso sofrimento. Sem isto, nós seríamos levados por nosso sofrimento, e não teríamos nenhuma chance para reconhecê-lo, entendê-lo, e transformá-lo. Assim a fundação, a primeira pedra que nós colocamos sob nossos pés, é o nosso pedaço minúsculo de alegria, nosso pedaço minúsculo de felicidade, antes que possamos ir mais longe.  

Não se apresse para pular para dentro do seu sofrimento e para o bloco de sofrimento no mundo ao seu redor. Nós precisamos tocar a alegria e paz dentro de nós mesmos, nos fazer fortes antes de mergulharmos profundamente em nosso sofrimento. A prática de Plum Village é tocar a Dimensão Última, tocar a paz e a alegria, não importando o quanto minúscula seja. Isso é a base a partir da qual você transformará o grande bloco de sofrimento que há dentro de você.  

 (De uma Palestra  de Dharma por Thay Phap An, em 13 de junho de 2004 em Plum Village
Thay Phap An é monge sênior da trad. Thich Nhat Hanh e professor de Dharma)
(Traduzido por Leonardo Dobbin)

segunda-feira, 3 de junho de 2019

Chegando

Outro dia eu sentei e calculei que agora já sou monge há dezoito anos. Durante esse tempo, me fizeram muitas perguntas. Eu não tenho problema com isso, considerando que o budismo é um caminho espiritual que se baseia em fazer perguntas — perguntas de nossos professores, perguntas uns aos outros e, talvez o mais importante, perguntas de nós mesmos. A grande maioria dos sutras do cânone budista surgiu graças a alguém fazendo uma pergunta ao Buda. Nós monásticos também recebemos muitas perguntas, e há uma pergunta que aparece mais frequentemente. Gostaria de saber se você consegue adivinhar qual pode ser?

Pelo menos uma ou duas vezes por semana, um amigo virá até mim perguntar, "Irmão Phap Hai, eu gostaria de te fazer uma pergunta. Por que se tornou um monge?"

A pergunta é boa e, recentemente, descobri que é menos importante relatar por me tornei um monge dezoito anos atrás e mais importantes responder como eu experimento minha vida espiritual hoje e por que continuo a ser um monge. Minha relação com a minha vida de prática é como qualquer relacionamento — cresce, muda e se aprofunda ao longo do tempo. Perguntas são importantes. Algumas das mais importantes questões que devemos perguntar a nós mesmos (e aos outros) são:

Porque eu sou um praticante de meditação?
O que me trouxe para a prática?
O que é que eu estou buscando?
Por que eu ainda estou praticando?
O que minha prática se parece neste momento?

Refletir sobre estas questões, individualmente e coletivamente, nos ajuda a identificar a nossa motivação e fornece uma direção para a nossa prática. Vamos nos fazer a terceira pergunta listada acima: "O que é que eu estou buscando?" Escreva a primeira resposta te que vier a cabeça. Não há nenhuma resposta errada — a menos, claro que seja algo como, "Eu sou de Sagitário procurando um geminiano equilibrado para uma busca mútua."

Quando nos fazemos sinceramente esta pergunta, muitas respostas podem surgir, por exemplo, "paz", "felicidade", "Iluminação" e assim por diante. Olhe para a palavra que você anotou um momento atrás, talvez "paz". Agora, vamos um pouco mais fundo. O que significa "paz" para você? O que é a experiência de "paz" para você? Quais foram alguns dos momentos da sua vida em que você experimentou "paz"? O que sentiu em seu corpo?

Acho interessante que, muitas vezes, quando estamos analisando uma parte profundamente pessoal e íntima das nossas vidas, como a nossa espiritualidade, usamos palavras muito gerais para elucidar grandes conceitos tais como "paz", "felicidade", "libertação" e assim por diante, sem dar o próximo passo e explorar o que tais palavras ou conceitos significam para nós — ou se querem dizer a mesma coisa para os outros. Embora existam algumas semelhanças, o que é felicidade para uma pessoa não é felicidade necessariamente para outra pessoa.

Lembrei-me disto em 2010 quando meu jovem irmão Benjamin e sua esposa vieram me visitar no mosteiro de Deer Park. Nossos pais faleceram quando ambos éramos muito jovens, e não tivemos muitas oportunidades para nos conhecer como adultos. Quando Benjamin chegou a Deer Park, perguntei-lhe o que mais gostaria que fizéssemos juntos. Ele me disse que queria ir à Universal Studios comigo e se divertir na montanha-russa. Levei seu pedido para os outros monges, esperando secretamente que dissessem que não. Os irmãos todos disseram, "Irmão Phap Hai, você deve definitivamente ir." Então lá fomos nós para a Universal Studios. Havia talvez quinze anos desde a última vez que eu tinha ido a um parque de diversões. Tanta coisa mudou nesse tempo. Não sabia, por exemplo, que no final de cada montanha russa eles tiram fotos para lembranças. Consequentemente, em cada foto tirada de nós nos brinquedos, podia se ver a mão de todo mundo no ar e grandes sorrisos em seus rostos e então havia eu — com meus olhos ferrados e rosto pálido como um fantasma.

O que é pacífico ou libertador para uma pessoa pode ser opressivo para outra. Como todos nós temos diferentes sofrimentos, pontos fortes, fraquezas e tendências para trabalhar, a prática de uma pessoa não se parecerá com a prática de outra pessoa. Ao se permitir mergulhar em um nível mais profundo com as grandes palavras— os grandes conceitos — e tocar o macio e tenro núcleo do seu ser, você vai descobrir a sua motivação, ou o que é chamado na psicologia budista de "volição" — a energia que te move para a frente. O que é que você está procurando?

Em 2012, Thay deu a todos os monges e monjas um pequeno cartão branco que tinha "100%" escrito nele. Foi uma linda lembrança dele que a essência, o núcleo da prática de Plum Village é estar presente, ser inteiro, cem por cento do tempo. Que desafio isto é para nós na nossa sociedade moderna, onde colocamos muito valor na multitarefa e em não "desperdiçar" um único segundo. Escolher conscientemente fazer uma coisa de cada vez tornou-se o último ato de contracultura e revolução. As crianças sabem como ser mono-tarefa, como a absorver-se completamente em tudo o que eles estão envolvidos no momento. Podemos ter perdido a maior parte desta maravilha e nos tornamos cansados.

Em certo sentido, desenvolver a concentração meditativa está relacionado a reaprender como ser mono-tarefa. Se nós caminhamos, sentamos, estamos em pé ou se estamos juntos com os outros, estamos totalmente presentes, corpo e mente. Já chegamos.

Nos centros de Plum Village em todo o mundo, a palavra que ouvimos mais frequentemente é "chegar". Em 2000, fui convidado a viajar para a Austrália para ajudar a oferecer retiros e dias de plena consciência em várias cidades. Nossa delegação voou de Bordeaux a Paris e depois de Paris para Dubai. De Dubai, voamos para a cidade de Ho Chi Minh e depois para Sydney. Quando pousamos em Sydney, tínhamos viajado por mais de quarenta horas. Nunca esquecerei a subida das escadas para o meu quarto: as malas pareciam tão pesadas. Pisando no meu quarto, coloquei-as no chão e um grande "aaahhh" levantou-se do âmago do meu ser: um momento de relaxamento, um momento de felicidade. Até aquele momento, eu não tinha percebido quão apertado e tenso meu corpo tinha se tornado durante a longa jornada. Meu corpo todo relaxou. Senti minha respiração fluindo para dentro e para fora. Eu me senti ótimo. Eu tinha chegado ao meu destino.

A prática de chegar é permitir que esse "aaahhh" se manifeste em cada momento, cada respiração, cada passo. Estar totalmente aqui. Esta prática sozinha vale uma vida de prática. Eu chamo de "Cheg- aaaahhh - ndo."

Prática sugerida: Cheg – aaaahhhh – ndo:

O que são as "bolsas" que você pode estar carregando dentro de você agora? Talvez você tenha uma lista de tarefas que é grande como seu braço, preocupações, ansiedades, desconforto em seu corpo... Enquanto respira, conecte-se com seu corpo, com sua respiração, com este momento; e na sua expiração permita que um "aaahhh" flua através de seu corpo e mente soltando toda tensão. Você pode achar útil vocalizar o "aaahhh". Não tenha medo de se divertir com isso. Para esta semana, se você notar que está ficando tenso ou desconectado durante seu dia, retorne a esta prática de "aaahhh". No final da semana, eu sugiro que você separe algum tempo para avaliar o impacto desta prática.
  
(Do livro “Nothing To It: Ten Ways to Be at Home with Yourself”)
Phap Hai é professor de Dharma e o monge sênior da tradição de Plum Village)
(Traduzido por Leonardo Dobbin)

sexta-feira, 24 de maio de 2019

Oração

Pergunta: Alguns cristãos – aqueles que pensam em Deus como alguém externo, poderoso e transcendente – ficariam surpresos em saber que os budistas oram. O que você diria para eles?

Thay: Talvez cristãos e budistas entendam diferentemente o que é oração. Eu diria que quando falamos de oração, pensamos naquele que ora, naquele para quem enviamos nossa oração e naquele por quem oramos. E aquele por quem oramos pode ser nós mesmos; oramos por nosso bem estar, mas podemos sempre distinguir essas três pessoas: aquele que ora, para quem enviamos a oração e aquele por quem oramos.

Dizer que os budistas não encaminham sua oração para uma pessoa externa ou força pessoal, não parece ser correto. Orar é também pedir ajuda, e na tradição budista, pedimos ajuda a Sangha, pedimos ajuda ao Buda. Aquele que pede, aquele que está rezando é o ponto inicial. A pessoa tem que ver as coisas com clareza suficiente, tem que ter bastante calma e serenidade para pedir ajuda.

Primeiramente deveria estar verdadeiramente presente, concentrada, com um desejo, uma intenção. Esta é a condição básica para efetividade da oração. Aquele que ora deve estar verdadeiramente lá, estabelecido no aqui e agora, tendo uma intenção muito clara, um desejo muito claro, para quem irá orar e por quem irá orar. Se aquele que ora pode colocar-se naquela situação, muito já foi feito. Esta pessoa já começou a gerar a energia da oração, porque está verdadeiramente presente no aqui e agora e nesse momento com concentração, com plena atenção e intenção. Se isto não acontecer, bem, nada irá acontecer.

Então, aquele para quem se ora, deve ser conhecido e não apenas a idéia de uma pessoa. Se você ora para o Buda, deveria saber quem o Buda é, e não apenas ter um número de idéias sobre o Buda. Se você sabe quem o Buda é, a oração será efetiva. Se você sente que o Buda está plenamente presente no aqui e agora, que você tem a capacidade de tocá-lo, então a oração será efetiva. Você sabe que ele está também dentro de você, na forma de plena consciência, compaixão, concentração. Portanto o Buda não é mais uma idéia, mas uma realidade.

Suponha que você ore para seu pai para pedir a ele ajuda. Seu pai - você sabe que ele é. Seu pai viveu muito, vamos dizer 90 anos e as células do corpo dele ainda estão em você. Portanto quando você se dirige a seu pai – “Papai, me ajude” - você toca seu pai na forma mais concreta; não toca apenas uma idéia. Pai não é uma idéia. Você é a continuação de seu pai. Suponha que alguém te fale que há suspeita que você tenha câncer. Você pode chamar seu pai para ajudar: ”Papai, sei que você é sólido, suas células são maravilhosas, elas estão em mim. Por favor, venha e me ajude.” E então você sente a resposta de seu pai imediatamente no seu corpo. Seu pai diz: “Eu estou aqui. Não se preocupe, meu filho. Temos células sólidas. Elas sabem como se replicar. Não se preocupe.” 

Quando você ora assim, entra em contato com seu pai e pode ver o efeito da oração imediatamente. Se você tem uma avó ou um avô que eram sólidos, sabe que aquele para quem você reza está sempre em você e ao seu redor. Portanto nesta maneira de praticar, você vê que seu pai, sua mãe, seu avô, estão ainda aqui nas suas novas manifestações. Não estamos encaminhando nossa oração para alguém ou alguma coisa que não seja real, que não existe, mas para uma realidade.

O mesmo é verdadeiro com o Buda ou Jesus. De acordo com nosso insight, o Buda continua, Jesus também continua em suas novas formas. E se você é um praticante budista, você continua o Buda, portanto o Buda como objeto de sua oração é uma realidade e não apenas uma idéia. Esta prática confia no insight básico de que nada é jamais perdido. Seu pai ainda está aqui, sua avó ainda está aqui, o Buda ainda está aqui em suas novas manifestações.

Portanto a segunda pessoa na oração, aquele para quem rezamos, é concreta, está realmente presente, e podemos realmente entrar em contato com ele ou ela. É por isso que é muito importante ter insight. Jesus, o Buda e avó não são algo que apenas existiram no passado. Eles estão presentes no aqui e agora. Eles estão dentro de você, ao seu redor, e você pode entrar em contato com eles. É como a Sangha. A Sangha está lá, e se você tiver alguma dificuldade, apenas diga: “Querido irmão, querida irmã, Sangha, por favor, me ajude.” A Sangha não é uma noção, a Sangha é realidade.

Sabemos que a Sangha está lá, a comunidade de irmãos e irmãs, a comunidade de praticantes está lá. Podemos sempre confiar na Sangha, e a Sangha sempre carrega o Dharma vivo e o Buda vivo. Portanto tocando a Sangha, tocando o Buda, tocando o Dharma, você toca realidades. E o ato de rezar é muito concreto. Deveria trazer transformação e cura. Quando dizemos: “Querida Sangha, por favor, envie energia para o irmão que está em dificuldade”, confiamos no poder da Sangha. Sabemos que a energia coletiva da Sangha é real. Como a Sangha contém o Buda e o Dharma, também temos a energia do Buda, temos a energia do Buda vivo e do Dharma vivo em nós.

Se praticarmos bem, a energia da oração será muito poderosa e imediatamente pode efetuar uma mudança. A energia está dentro daquele que ora e está com a Sangha que apóia a oração por trazer a energia coletiva. Como a Sangha tem o Buda vivo, o Dharma vivo, a energia pode ser muito poderosa. Esta energia é produzida de dentro e é produzida da Sangha. Sabemos que a energia pode ser apenas gerada quando a plena consciência, concentração e insight estão presentes. Você, aquele que pede à Sangha para enviar energia, tem que estar totalmente presente. Tem que estar plenamente atento, concentrado, e deveria ter o insight que você é uno com aquele para quem você encaminha sua oração, e também é uno com aquele por quem você reza. É por isso que insight é importante na oração, e se plena consciência, concentração e insight estão presentes, haverá transformação e cura.

Se você se aprofundar, verá que se os cristãos orarem dessa maneira, com plena consciência, concentração e especialmente insight, não haverá muita diferença entre budistas e cristãos. Você sabe que é uma parte muito importante da oração. A efetividade da oração depende muito de você, porque se você não estiver presente, se não for sólido, se não tiver o insight, então não pode entrar em contato com a energia poderosa da Sangha, do Buda.

No budismo não falamos de Deus, não falamos de criação, não falamos de revelação, não falamos de redenção ou punição. No budismo, o que é equivalente a Deus é a Mente, especialmente a mente coletiva. Mente é a base de tudo e quando sua mente entra em contato com a mente coletiva, tudo é possível. Se nossos amigos no cristianismo vêem que Deus é o Espírito – a mente coletiva da qual tudo manifesta – então a distância separando budismo e cristianismo não será muita. Depende da maneira que entendemos Deus. Se entendemos Deus como a base dos seres de quem tudo manifesta, então o entendimento não é diferente da visão budista de mente, porque no ensinamento do budismo, a mente é o artista que desenha tudo, especialmente a mente coletiva.

(Entrevista de Thich Nhat Hanh à revista Publishers Weekly Magazine)