segunda-feira, 29 de abril de 2019

Um Coração Pacífico

Imediatamente depois de ordenar o ataque terrestre ao Iraque, em fevereiro de 1991, o presidente Bush falou para sua nação, “Parem o que quer que estejam fazendo neste momento e rezem pelos soldados no Golfo. Deus abençoe os EUA.” Eu suspeito que no mesmo momento muitos muçulmanos estavam também rezando para o seu Deus para proteger o Iraque e seus soldados. Como Deus sabe que nação apoiar?

Muitos oram a Deus porque querem que ele satisfaça algumas de suas necessidades. Se eles querem ter um piquenique, pedem a Deus por um dia claro, de sol. Ao mesmo tempo, fazendeiros que precisam de mais chuva rezam pelo oposto. Se o tempo ficar claro, os que fazem piquenique podem dizer, “Deus está no nosso lado, ele respondeu as nossas preces.” Mas se chove, os fazendeiros dirão que Deus ouviu as preces deles. Esta é a maneira que usualmente rezamos.

No Sermão da Montanha, Jesus ensinou, “Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus!” Aqueles que trabalham pela paz deveriam ter um coração pacífico. Quando você tem um coração pacífico, é um filho de Deus. Mas muitos que trabalham pela paz não estão em paz. Eles ainda têm raiva e frustração e seu trabalho não é realmente pacífico. Não podemos dizer que eles pertencem ao Reino de Deus.

Para preservar a paz, nossos corações devem estar em paz com o mundo, com nossos irmãos e irmãs. Quando tentamos vencer o mal com o mal, não estamos trabalhando pela paz. Se você diz, “Saddam Hussein é mau. Temos que evitar que ele continue a ser mau,” e você então usa os mesmos meios que ele tem usado, você é exatamente igual a ele. Tentar sobrepujar o mal com o mal não é o caminho para fazer paz.

Jesus também disse, “Não matarás; e quem matar estará sujeito a julgamento. Eu, porém, vos digo que todo aquele que sem motivo se irar contra seu irmão estará sujeito a julgamento; e quem proferir um insulto a seu irmão estará sujeito a julgamento do tribunal; e quem lhe chamar: ‘Tolo’, estará sujeito ao inferno de fogo.”

Jesus não disse que se você ficar com raiva de seu irmão será colocado em um lugar chamado inferno. Ele disse que se você ficar com raiva de seu irmão, você já estará no inferno. Raiva é inferno. Ele também disse que você não precisa matar com seu corpo para ser colocado na cadeia. Precisa apenas matar com sua mente e já estará lá.

No Golfo Pérsico, muitos praticaram a matança com suas mentes – iraquianos, americanos, franceses, ingleses e outros soldados. Eles sabiam que se não matassem, os soldados inimigos os matariam, portanto usavam sacos de areia que representavam seus inimigos,  e segurando suas baionetas firmemente, corriam e gritavam e as enfiavam nos sacos. Eles praticaram a matança dia e noite em seus corações e mentes.

O estrago causado por este tipo de prática é enorme. Eu vi alguns segundos deste tipo de prática na TV. Mesmo se o presidente Bush não tivesse dado a ordem de uma ofensiva terrestre, muito estrago já estava sendo feito nas mentes e corações de um milhão de pessoas no Golfo. Este tipo de ferida dura muito tempo e é transmitido às futuras gerações. Se você se treina cada dia para matar e então sonha em matar durante a noite, o estrago é profundo. Se você sobreviver, suportará este tipo de cicatriz por muitos anos. Esta é uma tragédia real.

Usualmente contamos corpos para medir o estrago de uma guerra, mas não contamos este tipo de ferida nos corações e mentes de muitos soldados. Temos que ver o estrago real de longo prazo que a guerra causa. Soldados vivem no inferno dia e noite, mesmo antes de ir ao campo de batalha e também depois de voltar da guerra.

Podemos pensar paz como ausência da guerra, e que se as grandes potências reduzissem seu arsenal teríamos paz. Mas se olharmos profundamente para as armas veremos nossas mentes – nossos preconceitos, medos e ignorância. Mesmo se transportássemos todas as bombas para a Lua, as raízes da guerra ainda estariam aqui – nos nossos corações e mentes – e, mais cedo ou mais tarde, faríamos novas bombas. Trabalhar pela paz é arrancar a raiz da guerra de dentro de nós mesmos e dos homens e mulheres. Começar uma guerra e dar a oportunidade de um milhão de homens e mulheres praticarem matança dia e noite nos seus corações é plantar muitas sementes de guerra – raiva, frustração e medo de ser morto. Eu me senti muito triste quando soube que oitenta porcento dos americanos apoiavam a guerra.

“Ouvistes o que foi dito: ‘Olho por olho e dente por dente!’ Eu, porém, vos digo: Não enfrenteis quem é malvado! Pelo contrário, se alguém te dá um tapa na face direita, oferece-lhe também a esquerda! Se alguém quiser abrir um processo para tomar a tua túnica, dá-lhe também o manto!”

Este é o ensinamento de Jesus sobre vingança. Quando alguém te pedir algo, dê. Quando ele quer algo emprestado, empreste. Quantos cristãos realmente praticam isto? Há uma história sobre um soldado americano que levava um prisioneiro japonês durante a Segunda Guerra. Enquanto andavam, o americano descobriu que o soldado japonês falava inglês e que tinha sido cristão mas tinha abandonado sua fé. Portanto ele perguntou: “Porque abandonou o cristianismo? É uma excelente religião.” E o japonês disse, “Eu não podia me tornar um soldado e continuar a ser cristão. Eu não acho que um bom cristão possa se tornar soldado e matar outra pessoa.” Ele entendeu esta passagem de Mateus.

Deve haver meios de resolver nossos conflitos sem ter que apelar para a matança. Precisamos focar nossa atenção nisto. Temos que achar maneiras de ajudar as pessoas a saírem de suas situações difíceis, situações de conflito, sem ter que matar.

“Vós ouvistes o que foi dito: ‘Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo!’ Eu, porém, vos digo: Amai os vossos inimigos e rezai por aqueles que vos perseguem! Assim, vos tornareis filhos do vosso Pai que está nos céus, porque ele faz nascer o sol sobre maus e bons, e faz cair a chuva sobre os justos e injustos.”

Isto é não-discriminação. Quando você reza apenas para o seu piquenique e não pelos fazendeiros que precisam da chuva, está fazendo o oposto que Jesus ensinou. Ele disse, “ame seus inimigos e rezem por aqueles que te perseguem...” Quando olhamos profundamente para a nossa raiva, vemos que a pessoa que chamamos de inimigo está também sofrendo. Assim que vemos isso, temos a capacidade de aceitar e ter compaixão por ele. Jesus chamou isto de “amar seu inimigo”.

Quando somos capazes de amar nosso inimigo, ele não é mais nosso inimigo. A idéia de “inimigo” desaparece e é substituída pela noção de alguém sofrendo muito e que precisa de nossa compaixão. Fazer isso às vezes é mais fácil que pensamos, mas precisamos praticar. Se lermos a Bíblia, mas não praticamos não ajudará muito.

“Perdoe as nossas ofensas assim como nos perdoamos a quem nos tenha ofendido.” Todos cometem erros. Se formos plenamente atentos veremos que algumas de nossas ações no passado causaram o sofrimento de outros e algumas ações de outras pessoas nos causaram sofrimento. Queremos perdoar. Queremos começar de novo, “Você, meu irmão, me enganou no passado. Eu agora entendo que era porque você estava sofrendo e não via claramente. Não sinto mais raiva de você.” Este tipo de perdão é o fruto da consciência. Quando você está plenamente atento pode ver todas as causas que levam a outra pessoa a te fazer sofrer. Quando você vê isso, perdão e liberação surgem naturalmente. Você não pode se obrigar a perdoar. Apenas quando você entende o que aconteceu pode ter compaixão pela outra pessoa e perdoá-la.

Se o presidente Bush tivesse mais entendimento da mente do presidente Hussein, a paz poderia ser obtida. O presidente Gorbachev fez uma série de propostas que poderiam ser aceitáveis para os aliados e muitas vidas poderiam ser poupadas. Mas como a raiva estava presente, o Sr. Bush rejeitou as propostas do Sr. Gorbachev e o Sr. Hussein deu ordem para queimar os poços do Kuwait. Se o presidente Bush tivesse visto claramente o sofrimento do povo iraquiano, não teria permitido que sua raiva se expressasse ao começar a guerra. Ele pediu ao povo americano que rezasse pelos soldados aliados. Pedia a Deus que abençoasse os Estados Unidos. Ele não disse para que as pessoas rezassem pelos civis iraquianos ou mesmo do Kuwait. Ele quer Deus do lado dos Estados Unidos. (...)

Quem é o presidente Bush? Presidente Bush somos nós. Nós somos responsáveis pela maneira como ele sente, por tudo que ele faz. Oitenta porcento dos americanos o apoiaram nesta guerra. Porque acusá-lo? Nossa capacidade de amor e entendimento estava tão limitada. Não fomos pacíficos o suficiente nos nossos corações e não fomos capazes de levar amor ao coração das outras pessoas. Quando eu vejo como nos preparamos para a guerra e praticamos matança dia e noite nos nossos corações me sinto destruído. (...)

Por favor, sente, respire e olhe profundamente e verá as perdas reais, as casualidades reais que os Estados Unidos sofreram e continuam a sofrer com a Guerra do Golfo. Visualize 500.000 soldados aliados estacionados na Arábia Saudita, esperando a ordem de invadir o Iraque, pulando e gritando enquanto enfiam baionetas que representam os soldados iraquianos. Você não pode enfiar uma baioneta numa pessoa sem antes se transformar numa besta. No outro lado, um milhão de soldados iraquianos praticando a mesma coisa. Um milhão e meio de soldados praticando violência, ódio e medo e o público americano os apoiando. Eles pensaram que esta guerra era algo limpo, rápido e moral. Eles viram apenas pontes e prédios sendo destruídos, mas as casualidades reais foram as almas dos homens e mulheres que voltaram para casa depois de tantos meses praticando violência.

Como eles poderiam ter feito o que fizeram e permanecido os mesmos? Quando voltaram, os soldados choraram de alegria, eles estavam vivos! Seus pais, esposas, maridos, filhos e amigos também choraram de alegria. Mas depois de uma ou duas semanas, a guerra surgiu do seu interior, de sua consciência mais profunda e suas famílias e toda a sociedade terão que suportar sua dor por um longo tempo.

Se você é psicólogo, dramaturgo, romancista, compositor, diretor de cinema, advogado, legislador, ativista pela paz, ambientalista, por favor, olhe profundamente nas almas dos soldados que voltaram da guerra de forma que você possa ver o sofrimento real que a guerra causa, não apenas nos soldados, mas em todos. Então projete esta imagem em uma tela enorme para que toda a nação veja e aprenda. Se formos capazes de compartilhar a verdade relativa à Guerra do Golfo, seremos capazes de evitar começar outra guerra como esta no futuro. Precisamos ver o quão profundo as feridas da guerra estão. Como alguém pode chamar de vitória a Guerra do Golfo? Uma vitória de quem?

(Do livro “Love in action”– Thich Nhat Hanh)
(Traduzido por Leonardo Dobbin)

segunda-feira, 15 de abril de 2019

Aplicando a Prática em Nossas Vidas Diárias

Cada um dos ensinamentos que estamos explorando juntos é uma ferramenta concreta para aplicarmos em nossas vidas diárias, uma lente através da qual podemos contemplar e compreender a nossa própria situação particular com mais profundidade. Não são apenas conceitos para pensarmos.

Quando inicialmente nos deparamos com um dos ensinamentos, podemos recebê-lo principalmente no nível intelectual e isso é ótimo. Isso é um começo muito bom. Na verdade, nós deveríamos respirar algumas vezes para comemorar o fato de termos a oportunidade de encontrar ensinamentos que podem nos transformar e também para compreendê-los e aplicá-los em qualquer nível que formos capazes. O Buda, quando lhe pediram para descrever como é raro encontrar ensinamentos e práticas de libertação, disse isso:

"Imagine que exista num vasto oceano uma prancha de madeira flutuando na superfície. Há um pequeno buraco na tábua de madeira. No fundo do oceano há uma antiga tartaruga cega que vem para superfície uma vez a cada cem anos ou mais para respirar. É mais provável que a cabeça da tartaruga cega, ao vir para superfície, surja através do orifício na prancha de madeira flutuando aleatoriamente na superfície do oceano do que alguém encontrar ensinamentos que a transformem e que essa pessoa tenha capacidade suficiente para entendê-los e colocá-los em prática." Plantamos sementes muito boas mesmo!

Existem muitos ensinamentos profundos, maravilhosos e, de fato, místicos do Buda. Sempre que nos deparamos com um ensinamento, precisamos sempre nos perguntar: como posso aplicar este ensinamento na minha situação? Este é um ensinamento útil para mim neste momento? Cada um dos ensinamentos e práticas que exploramos juntos são diferentes quadros através dos quais podemos ver a nossa situação, e alguns vão ser apropriados para nós neste momento, alguns talvez mais tarde e alguns talvez nunca.

Eu gostaria agora de tirar algo importante do nosso caminho: nem todo ensinamento e prática será útil e adequado para você. Cada um de nós tem diferentes capacidades, diferentes tendências e todos nós encontramos os ensinamentos diferentemente dependendo de fatores, como experiência de vida, o ambiente da infância entre outros fatores. Muitas vezes lembro-me disso quando estou em um retiro. Normalmente depois de ouvir uma palestra de Dharma, sentamo-nos juntos para um Compartilhamento de Dharma sobre os tópicos que foram levantados. Se há 30 pessoas no grupo de discussão, cada pessoa pode ter sido tocada por um aspecto completamente diferente da palestra. É quase como se nós tivéssemos ouvido trinta conversas diferentes! Eu acho que cada vez que ouço uma palestra de Thay, ouço algo que não ouvi antes.

Quando um indivíduo decide entrar para a vida monástica, entra em um período de preparação para a ordenação completa e toma os votos de noviço, chamados preceitos. Na recitação dos preceitos para iniciantes, há uma linha que nos lembra para não "desperdiçar nosso tempo e nossa juventude." Nos últimos anos como tenho viajado e praticado com tantos amigos de muitas origens diferentes, comecei a ver esse ensinamento sob uma nova luz. Comecei a acreditar que o maior desperdício do nosso tempo é comparar nossa prática com a dos outros. Nossa vida espiritual autêntica começa quando nos dermos permissão para abraçar as viagens particulares que precisamos fazer. Cada um de nós tem as nossas próprias e exclusivas lutas e pontos fortes.

Nós recebemos os ensinamentos que estamos prontos para receber. Esta para mim é uma das coisas mais maravilhosas e emocionantes sobre o Dharma. Sempre que sinto que eu entendi uma pessoa, uma prática, uma situação ou um ensinamento, uma nova camada revela plenamente em si. Estamos sempre crescendo e mudando de momento a momento. Da mesma forma, precisamos cultivar uma atitude de permitir que a nossa prática cresça, mude e evolua ao longo do tempo; caso contrário nossa prática torna-se simplesmente um conjunto de técnicas, em vez de um caminho de entendimento. Nós podemos ficar presos na forma, na técnica, ao invés da experiência transformacional que técnica proporciona.

Alguns anos atrás, Thay compartilhou com a Comunidade que se estivermos fazendo a mesma coisa daqui a 20 anos, então teríamos falhado. Quando ouvi isso, eu me lembrei do tempo após a morte de meu pai, quando minha mãe precisava de algum dinheiro extra e alugou um quarto para um jovem. Toda manhã ele acordava e comia no café da manhã duas tigelas de cereal matinal, uma fatia de torrada e um copo de suco de laranja. Todo dia ele comeu a mesma coisa no ano e meio que ficou conosco. Naquele tempo eu brinquei com a minha mãe que não sairia da cama pela manhã se soubesse exatamente o que eu teria no café da manhã todos os dias.

A vida tem um jeito engraçado de nos manter honestos, não é? Agora vivo em um monastério. O mundo diz que há duas coisas que não podemos escapar não importa o quanto tentemos — morte e os impostos. Na vida monástica, também existem duas coisas que não podemos escapar não importa o quanto tentemos, e sim, eu tentei — meditação matinal e aveia no café da manhã! Evidentemente Thay não estava se referindo a cafés da manhã no monastério quando nos encorajou a não continuar a fazer a mesma coisa por vinte anos.

Nossa programação monástica é muito regular durante todo o ano. Quando eu estava visitando minha família no ano passado, me perguntaram como aguentava fazer a mesma coisa dia após dia, semana após semana, ano após ano. Pensei por um momento e respondi que se me permitisse estar totalmente presente, então cada dia, cada momento nunca seria o mesmo. A mesmice da nossa rotina diária na verdade nos libera para nos transformarmos cada dia.

Apesar de praticar respiração consciente e caminhada consciente todos os dias, cada vez que pratico, experimento meu passo e minha respiração de uma maneira nova. Chamamos esta novidade e frescor de "mente de principiante". Se você se perceber achando sua prática seca ou chata, considere se você pode estar pensando que já aprendeu tudo.

Cada vez que leio sobre a história do budismo, lembro-me como somos incrivelmente sortudos: gerações anteriores não tinham o acesso aos ensinamentos que temos hoje. Talvez eles só tivessem a chance de encontrar um sutra ou um livro sobre o budismo ou ouvir uma palestra de um professor uma vez, e só isso. Talvez eles viajassem muitos dias ou semanas para fazer uma pergunta "o que é a essência dos ensinamentos do Buda?" E o professor respondia, "Olhe para o cipreste na sua frente!" — como o Mestre Zen Zhaozhou no século 19 respondeu a um monge que o perguntava sobre os ensinamentos — e, em seguida, os mandou embora.

Hoje em dia há uma riqueza de materiais de Dharma disponíveis no clique de um botão. Somos realmente afortunados. Ao mesmo tempo, este período é muitas vezes chamado a "idade do Dharma-final". Por que, no meio de tal um fluxo de material de Dharma, chamaríamos esse tempo de “a idade do Dharma-final”? Parece contra intuitivo, não é? Enquanto eu estava contemplando isto, senti que o grande desafio, a grande distração de nosso tempo, é o acúmulo de pilhas e pilhas de informações e, simultaneamente, nossa falta de capacidade ou a motivação de colocar muito disso em prática sincera. Esta é uma grande pena, e ainda é a situação que nos encontramos hoje.

No início de novembro de 1998, viajei com Thay a países da Europa para oferecer retiros e palestras. Eu adorei aquele tempo com Thay. Uma tarde em Zurique, estávamos sentados, tomando chá juntos. Thay apontava pela janela um grande carvalho cujos ramos estavam quase desfolhados pelo vento frio, com exceção de um ramo que ainda tinha algumas folhas restantes do outono. Thay comentou: "Se a árvore quiser crescer mais na primavera, ele precisará deixar ir." Se queremos abrir espaço para crescimento, precisamos estar dispostos a nos soltar de práticas que já não nos servem — práticas que, ao invés de nos libertar, se tornaram técnicas ou ideias secas, obsoletas, atrás das quais nos escondemos.

(Do livro “Nothing To It: Ten Ways to Be at Home with Yourself”)
Phap Hai é professor de Dharma e o monge sênior da tradição de Plum Village)

quinta-feira, 11 de abril de 2019

Retiros em Plum Village

A Sangha Despertar vem compartilhar sua imensa alegria pelo convite feito à nossa professora de Dharma Chân Vô Uy Luc - Cristina Cesa, para trabalhar auxiliando na realização dos Retiros "International Business" e "Neuroscience", que acontecerão no Monastério de Plum Village / França, nos períodos de 01-08 e 14-21 de junho de 2019, respectivamente.



segunda-feira, 8 de abril de 2019

Cuidando da Própria Raiva

No momento em que você sente raiva, você tem a tendência de acreditar que seu sentimento foi criado por outra pessoa. Você culpa esta pessoa por todo o seu sofrimento. Mas, ao fazer um exame profundo, você talvez perceba que a semente da raiva que existe em você é a principal causa do seu sofrimento. Muitas outras pessoas, quando confrontadas com a mesma situação, não ficariam com a raiva com que você fica. Elas ouvem as mesmas palavras, presenciam a mesma situação, mas são capazes de permanecer mais calmas, sem se deixarem afetar tanto pelas circunstâncias. Por que você se enraivece com tanta facilidade? Talvez isso aconteça porque a semente da raiva é muito forte, e como você não praticou os métodos destinados a cuidar bem da raiva, a semente dela pode ter sido rega da no passado com excessiva freqüência.

Todos temos uma semente da raiva nas profundezas da nossa consciência. No entanto, em alguns de nós, esta semente é maior do que nossas outras sementes como a do amor e a da compaixão. A semente da raiva pode ser maior por não ter sido cuidada através da nossa prática no passado. Por isso, como já disse, quando começamos a cultivar a energia da plena consciência, a primeira coisa que percebemos com clareza é que a principal causa do nosso sofrimento, da nossa aflição, não é a outra pessoa, e sim a semente da raiva que existe em nós. Nesse momento, paramos de considerar a outra pessoa culpada do nosso sofrimento. Compreendemos que ela é apenas uma causa secundária. Você sente um enorme alívio ao descobrir isso e começa a se sentir muito melhor. Mas a outra pessoa pode ainda estar sofrendo porque não aprendeu a cuidar da própria raiva. Quando isso acontece, está na hora de ajudar o outro.

Quando não sabemos lidar com o nosso sofrimento, deixamos que ele se derrame sobre as pessoas que estão em volta. Quando você sofre, faz com que as pessoas ao seu redor também sofram. Isso é bastante natural. É por esse motivo que temos que aprender a lidar com o nosso sofrimento, para não o espalharmos em torno de nós. Quando você é o chefe da família, por exemplo, você sabe que o bem-estar dos seus familiares é extremamente importante. Como você tem compaixão, não permite que seu sofrimento afete os que estão à sua volta. Você pratica e aprende a lidar com seu sofrimento porque sabe que nem ele nem sua felicidade são uma questão individual.

Quando você está com raiva e não quer lidar com ela, fica sem defesa, sofre, e também faz as pessoas à sua volta sofrerem. Sua primeira reação é achar que a pessoa que causou a raiva merece ser punida. Tem vontade de castigá-la porque ela fez você sofrer. Mas, depois de praticar durante dez ou quinze minutos a respiração, a meditação andando e o olhar consciente, você compreende que ela precisa de ajuda e não de punição. Esta é uma percepção justa. Essa pessoa pode ser alguém muito próximo a você sua esposa, seu marido, algum dos filhos. Se você não ajudá-la, quem o fará?

Depois então de acolher e abraçar a raiva, sentindo-se muito melhor, você nota que a outra pessoa continua a sofrer. Esta percepção gera em você um movimento em direção a ela, num grande desejo de ajudá-la. Trata-se de uma forma completamente diferente de pensar e de sentir, pois o desejo de punir simplesmente desapareceu. A raiva se transformou em compaixão.

A prática da plena consciência nos torna mais atentos e perspicazes. Esta capacidade de discernimento é fruto da prática que pode nos ajudar a perdoar e a amar. Num período de quinze minutos, ou de meia hora no máximo, a prática da plena consciência, da concentração e do discernimento é capaz de libertar você da raiva, enchendo seu ser de amor.

Quando você entende o sofrimento da outra pessoa, você é capaz de transformar seu desejo de punir, passando apenas a querer ajudá-la. Quando isso acontece, você sabe que sua prática teve êxito. Você é um bom jardineiro.

Dentro de cada um de nós existe um jardim, e cada praticante precisa voltar para dentro de si mesmo e cuidar dele. Talvez no passado você tenha se dado conta disso. Agora, então, precisa saber o que está acontecendo no seu jardim e procurar colocar tudo em ordem. Restaure a beleza e restabeleça a harmonia do seu jardim. Muitas pessoas se encantarão com seu jardim se ele for bem cuidado.

Quando éramos crianças, aprendemos a respirar, a andar, sentar, comer e falar. Fizemos tudo isso instintivamente sem pensar. O que eu proponho agora é que tomemos consciência dos nossos atos para renascermos espiritualmente. Para isso, temos que aprender a respirar de novo, de um modo consciente. Aprender a andar de novo, conscientemente. Aprender a ouvir de novo, com consciência e compaixão. Aprender a falar de novo, com a linguagem do amor, para honrar nosso compromisso original. Dizer a nossa verdade, com respeito e suavidade, e acolher a do outro: "Meu amor, estou sofrendo. Estou com raiva. Quero que você saiba disso".

Esta frase expressa a fidelidade ao nosso compromisso. Meu amor, estou fazendo o melhor que posso. Estou cuidando da minha raiva. Para o meu bem e para o seu. Não quero explodir, destruir a mim e a você. Estou fazendo o melhor que posso." Esta lealdade provocará respeito e confiança na outra pessoa. E finalmente diremos: "Meu amor, preciso da sua ajuda." Esta é uma declaração muito poderosa, porque, quando estamos com raiva, geralmente temos a tendência de dizer: "Não preciso de você, não quero te ver pela frente." Se você puder dizer as três frases anteriores com sinceridade, do fundo do coração, o outro passará por uma transformação. Não duvide dos efeitos dessa prática.

Com o seu comportamento, você consegue influenciar a outra pessoa e incentivá-la a começar a praticar. Ela pensará e sentirá: "Meu parceiro está sendo fiel falando a verdade. Ele está de fato tentando fazer o melhor possível. Preciso fazer a mesma coisa." Isso significa que, quando cuidamos bem de nós mesmos, estamos cuidando bem da pessoa que amamos. O amor por nós mesmos é a base da nossa capacidade de amar o outro. Se não cuidamos bem de nós mesmos, se não estamos felizes e tranquilos, não podemos fazer a felicidade de mais ninguém. Não podemos ajudar nossos seres queridos, não podemos amá-los. Nossa capacidade de amar uma outra pessoa depende totalmente da nossa capacidade de amar e cuidar bem de nós mesmos.

Nossos ferimentos podem ter sido causados pelo nosso pai ou nossa mãe. Eles repassaram o que sofreram quando crianças. Como não sabiam a forma de curar as feridas da infância, eles as transmitiram para nós. Se não soubermos como transformar e curar nossos próprios ferimentos, vamos transmiti-los para nossos filhos e netos. É por isso que temos que voltar à criança ferida que existe dentro de nós para ajudá-la a ficar curada.

Às vezes, essa criança precisa de toda a nossa atenção. Ela pode emergir das profundezas da nossa consciência pedindo atenção. Se você estiver consciente, ouvirá a voz dela pedindo ajuda. Quando isso acontece, é hora de desligar-se de tudo em torno e voltar-se para dentro, acolhendo e abraçando carinhosamente a criança ferida dentro de você. Respire conscientemente dizendo: "Ao inspirar o ar, volto-me para minha criança ferida; ao soltar o ar, cuido amorosamente da minha criança ferida." Você precisa praticar e se voltar para a sua criança ferida todos os dias, abraçando-a com carinho, falando com ela. E você também pode escrever uma carta para ela dizendo que reconhece sua presença e fará tudo que estiver ao seu alcance para curar seus ferimentos.

(Do livro “Aprendendo a lidar com a raiva” de Thich Nhat Hanh)

segunda-feira, 1 de abril de 2019

Agora é a Hora de Apenas Ouvir

Nós nos comunicamos para sermos compreendidos e entender os outros. Se estamos conversando e ninguém está nos ouvindo (talvez nem mesmo nós mesmos), não estamos nos comunicando de forma eficaz. Existem duas chaves para uma comunicação efetiva e verdadeira. A primeira é a escuta profunda. A segunda é a fala amorosa. Escuta profunda e fala amorosa são os melhores instrumentos que conheço para estabelecer e restaurar a comunicação com os outros e aliviar o sofrimento.

Todos nós queremos ser entendidos. Quando interagimos com outra pessoa, especialmente se não praticamos a consciência do nosso próprio sofrimento e ouvimos bem a nós mesmos, estamos ansiosos para que os outros nos entendam imediatamente. Queremos começar nos expressando. Mas falar primeiro assim normalmente não funciona. Ouvir profundamente precisa vir primeiro. Praticar a atenção plena do sofrimento - reconhecendo e abraçando o sofrimento em si mesmo e na outra pessoa - dará origem ao entendimento necessário para uma boa comunicação. Quando ouvimos alguém com a intenção de ajudar essa pessoa a sofrer menos, isso é uma escuta profunda.

Quando ouvimos com compaixão, não somos pegos em julgamento. Um julgamento pode se formar, mas nós não nos apegamos a isso. A audição profunda tem o poder de nos ajudar a criar um momento de alegria, um momento de felicidade e para nos ajudar a lidar com uma emoção dolorosa.

Ouvir profundamente é uma prática maravilhosa. Se você pode ouvir por trinta minutos com compaixão, você pode ajudar a outra pessoa a sofrer muito menos. Se você não praticar plena atenção da compaixão, não poderá ouvir muito. A atenção plena da compaixão significa que você ouve com apenas uma intenção - ajudar a outra pessoa a sofrer menos. Sua intenção pode ser sincera, mas se você não praticou primeiramente ouvindo a si mesmo e não praticou a atenção plena da compaixão, pode perder rapidamente sua capacidade de ouvir.

A outra pessoa pode dizer coisas cheias de percepções erradas, amarguras, acusações e culpas. Se não praticarmos a atenção plena, suas palavras provocarão irritação, julgamento e raiva em nós, e perderemos nossa capacidade de ouvir com compaixão. Quando irritação ou raiva surgem, perdemos nossa capacidade de ouvir. É por isso que temos que praticar, para que durante todo o tempo de ouvir, a compaixão possa permanecer em nossos corações. Se pudermos manter nossa compaixão viva, as sementes de raiva e julgamento em nossos corações não serão regadas e não brotarão. Temos que nos treinar primeiro para podermos ouvir a outra pessoa.

Tudo bem se você não estiver pronto para ouvir em determinado momento. Se a qualidade da sua audição não for boa o suficiente, é melhor pausar e continuar outro dia. não se esforce muito. Pratique a respiração consciente e a caminhada consciente até que esteja pronto para realmente ouvir a outra pessoa. Você pode dizer: "Quero ouvi-lo quando estiver no meu melhor. Tudo bem se continuarmos amanhã?

Então, quando estivermos prontos para ouvir profundamente, podemos ouvir sem interromper. Se tentarmos interromper ou corrigir a outra pessoa, transformaremos a sessão em um debate e isso arruinará tudo. Depois de ouvirmos profundamente e permitirmos que a outra pessoa expresse tudo em seu coração, teremos a chance de, mais tarde, lhe fornecer um pouco da informação de que ele precisa para corrigir sua percepção - mas não agora. Agora apenas ouvimos, mesmo que a pessoa diga coisas erradas. É a prática da atenção plena da compaixão que nos mantém ouvindo profundamente.

Você tem que ter tempo para olhar e ver o sofrimento na outra pessoa. Você deve estar preparado. A escuta profunda tem apenas um propósito: ajudar os outros a sofrer menos. Mesmo que a pessoa diga coisas erradas, expresse amargura ou culpa, continue a ouvir com compaixão enquanto puder. Você pode dizer isso para si mesmo como um lembrete:

Estou ouvindo essa pessoa com um único propósito: dar a essa pessoa a chance de sofrer menos.

Mantenha o propósito único de ouvir profundamente em seu coração e em sua mente. Enquanto a energia da compaixão estiver te habitando, você estará seguro. Mesmo que o que a outra pessoa diga tenha muitas percepções errôneas, amargura, raiva, culpa e acusação, você está realmente seguro.

Lembre-se de que o discurso da outra pessoa pode se basear em preconceitos e mal-entendidos. Você terá uma chance depois de oferecer algumas informações para que ele ou ela possa corrigir sua percepção, mas não agora. Agora é a hora de ouvir. Se você puder manter viva sua consciência de compaixão por até trinta minutos, estará habitado pela energia da compaixão e estará a salvo. Enquanto a compaixão estiver presente, você poderá ouvir com equanimidade.

Você sabe que a outra pessoa está sofrendo. Quando não sabemos como lidar com o sofrimento dentro de nós, continuamos sofrendo e fazemos com que as pessoas ao nosso redor sofram. Quando outras pessoas não sabem como lidar com o sofrimento, elas se tornam vítimas. Se você absorve seu julgamento, medo e raiva, você se torna sua segunda vítima. Mas se você puder ouvir profundamente, entendendo que o que eles estão dizendo vem do sofrimento, então você está protegido por sua compaixão.

Você só quer ajudá-los a sofrer menos. Você não os culpa nem os julga mais.

(Do livro “The Art of Communicating” – Thich Nhat Hanh)