sexta-feira, 24 de maio de 2019

Oração

Pergunta: Alguns cristãos – aqueles que pensam em Deus como alguém externo, poderoso e transcendente – ficariam surpresos em saber que os budistas oram. O que você diria para eles?

Thay: Talvez cristãos e budistas entendam diferentemente o que é oração. Eu diria que quando falamos de oração, pensamos naquele que ora, naquele para quem enviamos nossa oração e naquele por quem oramos. E aquele por quem oramos pode ser nós mesmos; oramos por nosso bem estar, mas podemos sempre distinguir essas três pessoas: aquele que ora, para quem enviamos a oração e aquele por quem oramos.

Dizer que os budistas não encaminham sua oração para uma pessoa externa ou força pessoal, não parece ser correto. Orar é também pedir ajuda, e na tradição budista, pedimos ajuda a Sangha, pedimos ajuda ao Buda. Aquele que pede, aquele que está rezando é o ponto inicial. A pessoa tem que ver as coisas com clareza suficiente, tem que ter bastante calma e serenidade para pedir ajuda.

Primeiramente deveria estar verdadeiramente presente, concentrada, com um desejo, uma intenção. Esta é a condição básica para efetividade da oração. Aquele que ora deve estar verdadeiramente lá, estabelecido no aqui e agora, tendo uma intenção muito clara, um desejo muito claro, para quem irá orar e por quem irá orar. Se aquele que ora pode colocar-se naquela situação, muito já foi feito. Esta pessoa já começou a gerar a energia da oração, porque está verdadeiramente presente no aqui e agora e nesse momento com concentração, com plena atenção e intenção. Se isto não acontecer, bem, nada irá acontecer.

Então, aquele para quem se ora, deve ser conhecido e não apenas a idéia de uma pessoa. Se você ora para o Buda, deveria saber quem o Buda é, e não apenas ter um número de idéias sobre o Buda. Se você sabe quem o Buda é, a oração será efetiva. Se você sente que o Buda está plenamente presente no aqui e agora, que você tem a capacidade de tocá-lo, então a oração será efetiva. Você sabe que ele está também dentro de você, na forma de plena consciência, compaixão, concentração. Portanto o Buda não é mais uma idéia, mas uma realidade.

Suponha que você ore para seu pai para pedir a ele ajuda. Seu pai - você sabe que ele é. Seu pai viveu muito, vamos dizer 90 anos e as células do corpo dele ainda estão em você. Portanto quando você se dirige a seu pai – “Papai, me ajude” - você toca seu pai na forma mais concreta; não toca apenas uma idéia. Pai não é uma idéia. Você é a continuação de seu pai. Suponha que alguém te fale que há suspeita que você tenha câncer. Você pode chamar seu pai para ajudar: ”Papai, sei que você é sólido, suas células são maravilhosas, elas estão em mim. Por favor, venha e me ajude.” E então você sente a resposta de seu pai imediatamente no seu corpo. Seu pai diz: “Eu estou aqui. Não se preocupe, meu filho. Temos células sólidas. Elas sabem como se replicar. Não se preocupe.” 

Quando você ora assim, entra em contato com seu pai e pode ver o efeito da oração imediatamente. Se você tem uma avó ou um avô que eram sólidos, sabe que aquele para quem você reza está sempre em você e ao seu redor. Portanto nesta maneira de praticar, você vê que seu pai, sua mãe, seu avô, estão ainda aqui nas suas novas manifestações. Não estamos encaminhando nossa oração para alguém ou alguma coisa que não seja real, que não existe, mas para uma realidade.

O mesmo é verdadeiro com o Buda ou Jesus. De acordo com nosso insight, o Buda continua, Jesus também continua em suas novas formas. E se você é um praticante budista, você continua o Buda, portanto o Buda como objeto de sua oração é uma realidade e não apenas uma idéia. Esta prática confia no insight básico de que nada é jamais perdido. Seu pai ainda está aqui, sua avó ainda está aqui, o Buda ainda está aqui em suas novas manifestações.

Portanto a segunda pessoa na oração, aquele para quem rezamos, é concreta, está realmente presente, e podemos realmente entrar em contato com ele ou ela. É por isso que é muito importante ter insight. Jesus, o Buda e avó não são algo que apenas existiram no passado. Eles estão presentes no aqui e agora. Eles estão dentro de você, ao seu redor, e você pode entrar em contato com eles. É como a Sangha. A Sangha está lá, e se você tiver alguma dificuldade, apenas diga: “Querido irmão, querida irmã, Sangha, por favor, me ajude.” A Sangha não é uma noção, a Sangha é realidade.

Sabemos que a Sangha está lá, a comunidade de irmãos e irmãs, a comunidade de praticantes está lá. Podemos sempre confiar na Sangha, e a Sangha sempre carrega o Dharma vivo e o Buda vivo. Portanto tocando a Sangha, tocando o Buda, tocando o Dharma, você toca realidades. E o ato de rezar é muito concreto. Deveria trazer transformação e cura. Quando dizemos: “Querida Sangha, por favor, envie energia para o irmão que está em dificuldade”, confiamos no poder da Sangha. Sabemos que a energia coletiva da Sangha é real. Como a Sangha contém o Buda e o Dharma, também temos a energia do Buda, temos a energia do Buda vivo e do Dharma vivo em nós.

Se praticarmos bem, a energia da oração será muito poderosa e imediatamente pode efetuar uma mudança. A energia está dentro daquele que ora e está com a Sangha que apóia a oração por trazer a energia coletiva. Como a Sangha tem o Buda vivo, o Dharma vivo, a energia pode ser muito poderosa. Esta energia é produzida de dentro e é produzida da Sangha. Sabemos que a energia pode ser apenas gerada quando a plena consciência, concentração e insight estão presentes. Você, aquele que pede à Sangha para enviar energia, tem que estar totalmente presente. Tem que estar plenamente atento, concentrado, e deveria ter o insight que você é uno com aquele para quem você encaminha sua oração, e também é uno com aquele por quem você reza. É por isso que insight é importante na oração, e se plena consciência, concentração e insight estão presentes, haverá transformação e cura.

Se você se aprofundar, verá que se os cristãos orarem dessa maneira, com plena consciência, concentração e especialmente insight, não haverá muita diferença entre budistas e cristãos. Você sabe que é uma parte muito importante da oração. A efetividade da oração depende muito de você, porque se você não estiver presente, se não for sólido, se não tiver o insight, então não pode entrar em contato com a energia poderosa da Sangha, do Buda.

No budismo não falamos de Deus, não falamos de criação, não falamos de revelação, não falamos de redenção ou punição. No budismo, o que é equivalente a Deus é a Mente, especialmente a mente coletiva. Mente é a base de tudo e quando sua mente entra em contato com a mente coletiva, tudo é possível. Se nossos amigos no cristianismo vêem que Deus é o Espírito – a mente coletiva da qual tudo manifesta – então a distância separando budismo e cristianismo não será muita. Depende da maneira que entendemos Deus. Se entendemos Deus como a base dos seres de quem tudo manifesta, então o entendimento não é diferente da visão budista de mente, porque no ensinamento do budismo, a mente é o artista que desenha tudo, especialmente a mente coletiva.

(Entrevista de Thich Nhat Hanh à revista Publishers Weekly Magazine)

segunda-feira, 13 de maio de 2019

Como Salvar a Sua Casa

Quando alguém diz ou faz alguma coisa que nos deixa com raiva, nós sofremos. Temos a tendência de dizer ou fazer de volta alguma coisa que também provoque sofrimento na outra pessoa, na esperança de assim sofrermos menos. Pensamos: Quero punir você, quero fazer você sofrer porque você me fez sofrer. E quando eu perceber que você está sofrendo bastante, eu me sentirei melhor.”

São muitos os que acreditam nessa prática infantil. O que acontece é que, quando você faz o outro também sofrer, ele tentará sentir alívio fazendo você sofrer mais ainda. Cria-se assim um processo progressivo do sofrimento de ambas as partes. Na verdade, as duas pessoas necessitam de compaixão e ajuda. Nenhuma das duas precisa ser punida.

Quando você sentir raiva, volte-se para dentro de si mesmo e cuide dela o melhor que puder. E quando alguém fizer você sofrer, cuide do seu sofrimento e da sua raiva. Não diga nem faça nada. Qualquer coisa que você diga quando está com raiva pode causar ainda mais dano ao relacionamento. No entanto, a maioria de nós não faz isso. Em vez de nos voltarmos para dentro de nós e cuidarmos da raiva, queremos ir atrás da outra pessoa para puni-la.

Se sua casa estiver pegando fogo, a coisa mais urgente que você tem a fazer é tentar apagar o incêndio e não correr atrás da pessoa que o provocou. Esta não seria uma atitude sábia. Da mesma maneira, quando você sente raiva, se continuar a discutir com a outra pessoa, se tentar puni-la, você estará agindo exatamente como aquele que corre atrás do criminoso enquanto as chamas estão devorando a casa dele.

O Buda nos deu instrumentos extremamente eficazes para apagar o fogo que arde dentro de nós: o método da respiração consciente, o método do andar consciente, o método de abraçar nossa raiva, o método de examinar profundamente a natureza das nossas percepções e o método de observar profundamente a outra pessoa para compreender que ela também sofre muito e precisa de ajuda. Esses métodos são muito práticos e procedem diretamente do Buda.

Inspirar conscientemente é saber que o ar está entrando no corpo e expirar conscientemente é saber que o corpo está permutando ar. Assim, você fica em contato com o ar e com o seu corpo, e como sua mente está atenta a tudo isso, você fica em contato com ela também. Basta apenas uma única respiração consciente para voltar a ter contato com você e com tudo em torno, e três respirações conscientes para manter esse contato.

Quando estiver andando de um lado para outro da sala, ou de um prédio para outro, permaneça consciente do contato dos seus pés com o solo e do contato do ar à medida que ele entra e sai do seu corpo. Procure descobrir o número de passos que você pode dar com conforto enquanto inspira e quantos você pode dar enquanto solta o ar dos pulmões. Enquanto inspirar, você pode dizer mentalmente "entrando", e quando expirar, "soltando". Desta forma você estará praticando a meditação sempre que andar e, com isso, poderá transformar a vida do dia-a-dia.

Não basta ler livros a respeito de diferentes tradições espirituais ou realizar seus rituais. O importante é praticar os ensinamentos dessas tradições, porque são eles que podem nos transformar, não importa a religião ou tradição espiritual a que pertencemos. Se você procurar praticar aquilo que estou lhe ensinando, deixará de ser um mar de fogo e se tornará um lago refrescante. Seu sofrimento vai diminuir e você se tornará uma fonte de alegria e felicidade para muitas pessoas à sua volta.

Sempre que surgir a raiva, pegue um espelho e olhe para seu reflexo. Quando você sente raiva, centenas de músculos do seu rosto ficam muito tensos e você deixa de ser uma pessoa bonita. Sua face parece uma bomba prestes a explodir. Olhe para alguém que está com raiva. Quando nota a tensão nessa pessoa, você leva um susto. A bomba dentro dela pode explodir a qualquer minuto. Por isso, é muito útil olhar para nós mesmos nos momentos em que estamos com raiva. Este é o sino destinado a alertar a mente, pois, quando você se vê dessa maneira, sente vontade de fazer alguma coisa para se modificar. Você sabe o que precisa fazer para melhorar sua aparência. Não são necessários cosméticos, basta respirar profunda e tranqüilamente, relaxar e sorrir conscientemente. Se você conseguir fazer isso uma ou duas vezes, sua aparência ficará mais bonita. Olhe-se simplesmente no espelho, inspire com calma, solte o ar sorrindo e você sentirá um grande bem-estar.

Como já disse, a raiva é um fenômeno psicológico, mas está estreitamente ligada a elementos biológicos e bioquímicos. Ela faz os músculos ficarem tensos, mas quando você sorri abertamente começa a relaxar e a raiva diminui. O sorriso permite que a energia da plena consciência nasça em você, deixando-o abraçar a raiva.

Antigamente, os servos dos reis e das rainhas sempre tinham consigo um espelho para verificarem sua aparência quando o monarca recebia um visitante. Experimente fazer isso. Carregue com você um espelho e mire-se nele para ver qual o seu estado. Depois de inspirar e expirar algumas vezes, sorrindo para si mesmo, a tensão será substituída pelo alívio.

A raiva é como um bebê que grita, sofre e chora. Ele precisa que a mãe o abrace. Você é a mãe do seu bebê - a sua raiva. No momento em que começa a praticar a respiração consciente, você possui a energia de uma mãe para embalar e abraçar o bebê. Abraçar a raiva, inspirar e soltar o ar já é suficiente. O bebê sentirá um alívio imediato.

Todas as plantas são nutridas pela luz do sol, e todas são sensíveis a ela. Qualquer vegetação que é abraçada pela luz do sol passa por uma transformação. De manhã, as flores ainda não se abriram, mas, quando o sol aparece, sua luz abraça as flores e tenta penetrá-las. A luz do sol é formada por minúsculas partículas chamadas fótons. Estes penetram gradualmente na flor, um por um, até que muitos conseguem chegar do lado de dentro. A flor então deixa de resistir e se abre para a luz do sol.

Do mesmo modo, todas a formações mentais e fisiológicas existentes em nós são sensíveis à plena consciência. Se esta estiver presente, abraçando seu corpo, ele se transformará. Se a plena consciência estiver presente, abraçando sua raiva ou seu desespero, estes também serão transformados. De acordo com o Buda e segundo a nossa experiência, qualquer coisa que receba o abraço da plena consciência passará por uma transformação.

A raiva é como uma flor. No início, você pode não compreender a natureza da sua raiva ou por que ela se manifestou. Mas, se você souber como abraçá-la com a energia da plena consciência, ela começará a se abrir. Para gerar a energia da plena consciência e abraçar a raiva, você pode ficar na posição sentada, acompanhando mentalmente sua respiração, ou praticar a meditação andando e concentrando-se em cada passo. Depois de dez ou vinte minutos, a raiva terá se aberto para você e, de repente, você verá sua verdadeira natureza. Ela pode ter surgido apenas por causa de uma percepção errada ou da falta de habilidade de alguém que não tinha a intenção de lhe causar sofrimento.

Para que a flor da raiva se abra, você precisa manter a plena consciência durante um certo período de tempo. É como quando se cozinha batatas: você coloca as batatas na panela, tampa a panela e a põe no fogo. Mesmo que a chama esteja muito alta, se você desligar o fogo passados cinco minutos, as batatas não estarão cozidas. Você precisa manter o fogo aceso pelo menos durante quinze ou vinte minutos para as batatas cozinharem. Depois disso, você destampa a panela e sente o delicioso aroma das batatas cozidas. A raiva é assim. Ela precisa ser cozida. No início, ela está crua. Você não pode comer batatas cruas. É muito difícil gostar da raiva, mas, se você souber cuidar dela, souber cozinhá-la, a energia negativa da raiva se transformará na energia positiva do entendimento e da compaixão.

Você é capaz de fazer isso. Não é algo que somente um Grande Ser possa fazer. Você também pode. Você é capaz de transformar o lixo da raiva na flor da compaixão. Muitos conseguem fazer isso em apenas quinze minutos. O segredo é continuar a prática da respiração consciente, a prática do andar consciente, gerando a energia da plena consciência a fim de abraçar a raiva.

Abrace a raiva com bastante ternura. Ela não é sua inimiga, ela é seu bebê. Ela é como seu estômago ou seu pulmão. Quando tem algum problema no pulmão ou no estômago, você não pensa em jogar o órgão fora. O mesmo acontece com relação à raiva. Você a aceita porque sabe que pode cuidar dela. Você é capaz de transformá-la numa energia positiva. O jardineiro orgânico não pensa em jogar fora o lixo. Ele sabe que precisa do lixo, pois é capaz de transformá-lo em adubo composto, para que este possa novamente se transformar em alface, pepino, rabanete e flores. Ao praticar os ensinamentos, você é uma espécie de jardineiro, um jardineiro orgânico.

Tanto a raiva quanto o amor possuem uma natureza orgânica, o que significa que ambos podem mudar. O amor pode se transformar em ódio. Você sabe muito bem disso. Muitos de nós começamos os relacionamentos com um amor muito intenso. Tão intenso que acreditamos que não conseguiremos sobreviver sem nosso parceiro. No entanto, se não estivermos plenamente conscientes, um ou dois anos são suficientes para que o amor se transforme em ódio. Então, na presença do nosso parceiro, nós nos sentimos muito mal. Viver juntos se torna impossível, e a única saída passa a ser o divórcio. O amor se transformou em ódio, nossa flor virou lixo. Mas, com a energia da plena consciência, você pode olhar para o lixo e afirmar: "Não estou com medo. Sou capaz de transformar o lixo novamente em amor."

Se você enxergar em si mesmo os elementos do lixo, como o medo, o desespero e o ódio, não entre em pânico. Na qualidade de um bom jardineiro orgânico, de uma pessoa que pratica bem os ensinamentos, você tem condições de enfrentar essa situação: "Reconheço que existe lixo em mim. Vou transformar esse lixo num adubo composto capaz de fazer meu amor reaparecer."

Aqueles que têm confiança na prática da plena consciência não pensam em fugir de um relacionamento difícil. Quando você conhece e pratica as técnicas da respiração consciente, do andar consciente, do sentar consciente e do comer consciente, você consegue gerar a energia da plena consciência e abraçar sua raiva ou seu desespero. O simples fato de você acolhê-los e abraçá-los já lhe trará alívio. Depois, sem afrouxar o abraço, você pode se dedicar à prática de examinar profundamente a natureza da sua raiva. A prática, portanto, encerra duas fases. A primeira envolve o abraçar e o reconhecer: "Minha querida raiva, sei que você está presente, estou cuidando muito bem de você." A segunda fase consiste em contemplar profundamente a natureza da sua raiva para ver como ela surgiu.

Você precisa ser como a mãe que presta atenção ao choro do bebê. Se a mãe está trabalhando na cozinha e ouve o bebê chorar, ela pára qualquer coisa que esteja fazendo e corre para confortar seu filho. Ela pode estar preparando uma ótima sopa, mas nada é mais importante do que o sofrimento do bebê. O surgimento da mãe no quarto do bebê é como a luz do Sol, porque ela está repleta do calor do amor, do cuidado e da ternura. A primeira coisa que ela faz é pegar o bebê e abraçá-lo com carinho. Quando a mãe abraça o bebê, sua energia penetra nele e o acalma. É exatamente isso que você precisa aprender a fazer quando a raiva começar a se manifestar. Você tem que abandonar tudo que estiver fazendo, porque a tarefa mais importante que você tem diante de si é se voltar para dentro e tomar conta do seu bebê, a raiva. Nada é mais urgente do que cuidar bem do seu neném.

Você se lembra que, quando era criança e tinha febre, mesmo que lhe dessem aspirina ou algum outro remédio, você só se sentia melhor quando sua mãe punha a mão na sua testa escaldante? A sensação era tão boa! A mão dela parecia a mão de uma deusa. Quando ela o tocava, você sentia um grande frescor, amor e compaixão entrando no seu corpo. A mão da sua mãe é a sua própria mão. A mão dela ainda estará viva na sua se você souber como inspirar e expirar, se você ficar plenamente consciente. Depois, ao tocar sua testa com sua própria mão, você perceberá que a mão da sua mãe ainda está presente, tocando sua testa. Você receberá a mesma energia de amor e ternura.

A mãe segura de forma consciente o bebê, totalmente concentrada nele. O bebê sente um certo alívio porque está sendo abraçado com ternura pela mãe, como a flor que é envolvida pela luz do sol. Ela abraça o bebê não apenas porque o ama, mas também para descobrir o que há de errado com ele. Como ela é uma verdadeira mãe, extremamente talentosa, consegue descobrir rapidamente o problema do neném. Ela é especialista em bebês.

Na qualidade de praticantes dos ensinamentos, temos que ser especialistas em raiva. Temos que cuidar da nossa raiva e praticar até compreender a sua origem e o seu funcionamento. Ao abraçar conscientemente o bebê, a mãe descobre a causa do sofrimento dele e fica muito mais fácil para ela corrigir a situação. Se o bebê está com febre, ela lhe dará um remédio para baixar a febre. Se estiver com fome, ela o alimentará, e se a fralda estiver molhada, ela a trocará.

Como praticantes, é exatamente isso que fazemos. Abraçamos conscientemente nosso bebê - a raiva - para obtermos alívio. Continuamos a praticar a respiração consciente e o andar consciente, como uma canção de ninar para a nossa raiva. A energia da plena consciência penetra na energia da raiva, exatamente como a energia da mãe penetra na energia do bebê. Não existe nenhuma diferença. Se você souber sorrir, praticar a respiração consciente e a meditação, concentrando-se nos seus passos, é certo que sentirá alívio em cinco, dez ou quinze minutos.

No momento em que você sente raiva, você tem a tendência de acreditar que seu sentimento foi criado por outra pessoa. Você culpa esta pessoa por todo o seu sofrimento. Mas, ao fazer um exame profundo, você talvez perceba que a semente da raiva que existe em você é a principal causa do seu sofrimento. Muitas outras pessoas, quando confrontadas com a mesma situação, não ficariam com a raiva com que você fica. Elas ouvem as mesmas palavras, presenciam a mesma situação, mas são capazes de permanecer mais calmas, sem se deixarem afetar tanto pelas circunstâncias. Por que você se enraivece com tanta facilidade? Talvez isso aconteça porque a semente da raiva é muito forte, e como você não praticou os métodos destinados a cuidar bem da raiva, a semente dela pode ter sido regada no passado com excessiva freqüência.

(Do livro “Aprendendo a lidar com a raiva” - Thich Nhat Hanh)

terça-feira, 7 de maio de 2019

Como as Quatro Consciências Interagem

O budismo às vezes fala da consciência armazenadora como o oceano de consciência e as outras consciências são descritas como ondas que sobem da base do oceano. Há um vento e aquele vento provoca as outras consciências para que se manifestem. A consciência armazenadora é a fundação, a raiz. Desta base, a mente se manifesta e opera. Às vezes descansa e retorna para casa, para consciência armazenadora. Deste modo, a consciência armazenadora é o jardim e a consciência mental o jardineiro. Manas também pula da consciência armazenadora, entretanto se vira e abraça a consciência armazenadora como sua propriedade, como um objeto de seu amor. Faz isso dia e noite. É por isso que é chamada de a amante.

Quando você se apaixona por alguém, não se apaixona de verdade por ele ou ela. Você cria uma imagem que é bastante diferente de realidade. Depois de viver junto durante um ou dois anos, descobre que a imagem que tem é bastante distante da realidade. Embora manas nasça da consciência armazenadora, o modo dela olhar para a consciência armazenadora é cheio de ilusões e percepções erradas. Ela cria uma imagem da consciência armazenadora como o objeto do seu amor, e este objeto não é exatamente a realidade. Quando nós usarmos uma máquina fotográfica para tirar uma foto de alguém, a foto é só uma imagem, não é aquela pessoa. A amante pensa que ama a consciência armazenadora, mas de fato só ama a imagem que ela criou. Um objeto da consciência pode ser a coisa em si mesma, ou pode ser uma representação que você fabrica subjetivamente.

Portanto temos o jardineiro, mente, e nós temos a amante, manas. Mas a consciência mental pode ser interrompida. Por exemplo, quando nós dormimos sem sonhar, a consciência mental não está operacional. Quando estamos em um coma, a consciência mental deixa de trabalhar completamente. E há concentrações profundas quando a consciência mental pára completamente, não há nenhum pensamento, nenhum planejamento, nada - contudo a consciência armazenadora continua operando. Uma profunda meditação caminhando pode ser assim. Seu corpo está se movendo e sua consciência armazenadora continua a trabalhar, mas você não está consciente disto.

A consciência mental também pode operar independentemente das consciências dos sentidos ou pode operar em colaboração. Suponha que você seja convidado para uma exposição. Ficando em frente a uma pintura, a consciência dos olhos está funcionando. Em um primeiro momento, talvez, a consciência dos olhos esteja olhando para a arte sem qualquer pensamento, qualquer julgamento. Mas para ver o objeto dentro de si mesmo dura só um kshana, um momento breve. Logo as experiências surgem e a consciência mental propõe todos os tipos de avaliações e julgamentos e coisas assim. Isso é uma cooperação entre os dois tipos de consciência: consciência mental e consciência dos olhos. Quando a consciência mental está trabalhando com a consciência dos sentidos, é chamada consciência associativa. Se você for absorvido em reflexão profunda, você não vê, você não ouve, você não sente mais. Naquele lugar profundo de reflexão, a consciência mental está trabalhando só. Em meditação você usa normalmente a consciência mental independentemente. Nós fechamos nossos olhos, nós fechamos nossos ouvidos, nós não queremos ser perturbados pelo que nós vemos ou ouvimos. A concentração está sendo executada só pela consciência mental.

Também há vezes quando a consciência dos sentidos opera em colaboração com consciência armazenadora sem passar pela mente. É engraçado, mas acontece mesmo, muito freqüentemente. Quando você dirige seu carro, pode evitar muitos acidentes, mesmo se sua consciência mental estiver pensando em outras coisas. Você pode nem mesmo estar pensando na direção. E ainda, a maioria das vezes pelo menos, você não se acidenta. Quando você caminha, raramente tropeça (ou pelo menos só ocasionalmente!). Isto é porque as impressões e imagens providas pela consciência dos olhos são recebidas pela consciência armazenadora, e são tomadas decisões sem passar pela consciência mental.

Quando algo ou alguém se aproxima de repente de seu olho - por exemplo, se alguém está a ponto de bater em você, ou quando algo está a ponto de cair em você - você reage depressa. Aquela reação rápida, aquela decisão, não é feita pela consciência mental. Se você tiver que fazer uma manobra rápida, não é sua consciência mental que faz isto. Nós não pensamos "Oh, há uma pedra lá frente, eu tenho que desviar dela." Nós apenas agimos. Aquele instinto de autodefesa vem da consciência armazenadora.

Eu tive um sonho uma vez que ilustra este ponto. Na Ásia, antigamente, tínhamos que preparar nosso próprio arroz do campo. Nós tínhamos que remover a casca do núcleo do arroz antes que pudéssemos cozinhá-lo e comê-lo. No templo tínhamos um instrumento que removia a casca. A ação de remover a casca tinha um tipo de som muito particular, rítmico. Um dia eu estava tirando uma soneca e durante o tempo em que eu estava cochilando, ouvi o som de descascar. Mas na realidade era um estudante meu que raspava um bloco de tinta chinesa.

Para ter tinta para escrever você tem que pôr um pouco de água em um prato e raspar o bloco sólido de tinta na água. Aquele som de alguma maneira achou um modo de entrar através da minha consciência auditiva na consciência armazenadora e foi transmitido para a consciência mental. Por isso é que em meu sonho eu vi alguém descascando arroz. Mas na realidade não estava descascando, era só a preparação da tinta. Assim a impressão entra de dois modos: através da consciência mental ou através da consciência armazenadora. E tudo que passa pelas consciências dos cinco sentidos pode ser armazenado, pode ser analisado, pode ser processado pela consciência armazenadora. Não têm que sempre passar pela consciência mental. Podem ir diretamente das cinco primeiras consciências para a consciência armazenadora.

Em um quarto frio à noite, embora você não esteja sonhando, e a consciência mental não esteja funcionando, a sensação de frio penetra no corpo ao nível de consciência dos sentidos. Isto cria uma vibração no nível da consciência armazenadora, e seu corpo move o cobertor para cima até te cobrir.

Se nós estamos dirigindo, manipulando uma máquina, ou executando outras tarefas, muitos de nós permitimos que nossa consciência dos sentidos colabore com a consciência armazenadora que nos permite fazer muitas coisas sem a intervenção da consciência mental. Quando nós trazemos para nossa consciência mental este trabalho, então de repente podemos nos dar conta das formações mentais que estão surgindo.

A palavra "formação" (samskara em sânscrito) significa algo que manifesta quando muitas condições se juntam. Quando nós olharmos para uma flor, podemos reconhecer muitos dos elementos que se juntaram para a flor se manifestar naquela forma. Nós sabemos que sem a chuva não pode haver nenhuma água e a flor não pode se manifestar. Vemos que o sol também está lá. A terra, o adubo, o jardineiro, tempo, espaço, e muitos elementos se juntaram para ajudar a flor a se manifestar. A flor não tem uma existência separada; é uma formação. O sol, a lua, a montanha, e o rio são todos formações. Usando a palavra "formação" nos lembra que não há nenhum núcleo de existência separada neles. Há só uma junção de muitas, muitas condições para algo para manifestar.

Como praticantes budistas, podemos nos treinar para olhar para tudo como uma formação. Sabemos que todas as formações estão mudando todo o tempo. Impermanência é uma das marcas de realidade, porque tudo muda.

Formações que existem na consciência são chamadas formações mentais. Quando há contato entre um órgão do sentido (olhos, orelhas, nariz, boca, corpo) e o objeto, a consciência dos sentidos surge. E no momento que seus olhos primeiramente olham um objeto, ou você sente o vento em sua pele, a primeira formação mental de contato se manifesta. O contato causa uma vibração no nível da consciência armazenadora.

Se a impressão for fraca, então a vibração pára e a corrente da consciência armazenadora recupera sua tranqüilidade; você continua dormindo ou continua com suas atividades, porque aquela impressão criada através de toque não foi forte o bastante para chamar a atenção da consciência mental.

É como quando uma mosca pousa na superfície da água e faz a água ondular um pouco. Depois que a mosca sai, a superfície da água se torna completamente calma novamente. Portanto embora a formação mental se manifeste, embora a corrente de vida vibre continuamente, não há nenhuma consciência nascida na consciência mental porque a impressão foi muito fraca.

Às vezes na psicologia budista, se fala de quarenta e nove ou cinqüenta formações mentais. Em minha tradição, nós falamos de cinqüenta e uma. As cinqüenta e uma formações mentais também são chamadas concomitantes mentais; quer dizer, elas são o conteúdo verdadeiro da consciência, do mesmo modo que as gotas de água são o conteúdo verdadeiro do rio. Por exemplo, a raiva é uma formação mental. A consciência mental pode operar de tal modo que a raiva pode se manifestar nela. Naquele momento, a consciência mental está cheia de raiva, e podemos até sentir que nossa consciência mental não é nada mais que a raiva. Mas na realidade, a consciência mental não é só raiva, porque mais tarde a compaixão surge, e naquele momento, a consciência mental se torna compaixão. Consciência mental é, em vários momentos, todas as cinqüenta e uma formações mentais, sejam elas positivas, negativas ou neutras.

Sem formações mentais, não pode haver nenhuma consciência. É como se nós estivéssemos discutindo uma formação de pássaros. A formação une os pássaros, e eles voam formosamente no céu. Você não precisa de alguém para segurar os pássaros e os manter voando em uma formação. Você não precisa de um ego para criar a formação. Os pássaros apenas fazem isto. Em uma colméia, você não precisa alguém que dá a ordem para esta abelha ir para esquerda e aquela abelha ir para a direita; elas apenas se comunicam entre si e são uma colméia. Entre todas as abelhas, cada abelha pode ter uma responsabilidade diferente, mas nenhuma abelha reivindica ser a chefe de todas as abelhas, nem mesmo a rainha. A rainha não é a chefe. A função dela é simplesmente dar à luz aos ovos. Se você tem uma comunidade boa, uma Sangha boa, é como esta colméia na qual todas as partes compõem o todo, sem líder, nenhum chefe.

Quando nós dizemos que está chovendo, queremos dizer que o ato de chover está acontecendo. Você não precisa de alguém para executar o ato de chover. Não é que exista a chuva, e aquele que faz a chuva cair. Na realidade, quando você diz que a chuva está caindo, é muito engraçado, porque se não estivesse caindo, não seria chuva. No nosso modo de falar, nós estamos acostumados a ter um sujeito e um verbo(...). Mas, olhando profundamente, nós não precisamos de um "chovedor" nós só precisamos da chuva. Chovendo e chuva são a mesma coisa. A formação de pássaros e os pássaros são o mesmo - lá nenhum "ego", nenhum chefe está envolvido.

Há uma formação mental chamada vitarka, "pensamento inicial". Quando usarmos o verbo "pensar", precisamos de um sujeito do verbo: eu penso, você pensa, ele pensa. Mas, realmente, você não precisa de um sujeito para um pensamento a ser produzido. Pensando sem um pensador - isto é absolutamente possível. Pensar é pensar em algo. Perceber é perceber algo. O que percebe e o objeto que é percebido são um.

Quando Descartes disse, "penso, logo existo" o ponto dele era que se eu pensar, deve haver um "eu" para o pensar ser possível. Quando ele fez a declaração "penso" ele acreditou que pudesse demonstrar que o "eu" existia. Nós temos o hábito forte de acreditar em um ego, um eu. Mas, observando muito profundamente, podemos ver que um pensamento não precisa de um pensador para ser possível. Não há nenhum pensador atrás do pensamento - há apenas o pensamento; isso é suficiente.

Agora, se o senhor Descartes estivesse aqui, nós poderíamos lhe perguntar, ”Monsieur Descartes, você diz, ‘você pensa, então você existe’, mas o que é você? Você é seu pensamento. Pensamento - isso é bastante. O pensamento se manifesta sem a necessidade de um eu por trás”.

Pensando sem um pensador. Sentindo sem aquele que sente. O que é nossa raiva sem nosso "eu"? Este é o objeto de nossa meditação. Todas as cinqüenta e uma formações mentais acontecem e manifestam sem um eu atrás delas organizando para que uma apareça, e depois para que outra apareça. Nossa consciência mental tem o hábito de se basear na ideia de um eu, em manas. Mas podemos meditar para estar mais atentos a nossa consciência armazenadora onde mantemos as sementes de todas as formações mentais que não estão se manifestando no momento em nossa mente.

Quando meditamos, praticamos olhar profundamente procurando trazer luz e claridade ao nosso modo de ver as coisas. Quando a visão do não-eu é obtida, nossa ilusão é afastada. Isto é o que nós chamamos transformação. Na tradição budista, transformação é possível com a compreensão profunda. O momento em que a visão do não-eu existe, manas, a noção de "eu sou" se desintegra, e nós nos achamos desfrutando, neste exato momento, de liberdade e felicidade.


(Traduzido do livro “Buddha Mind, Budda Body” – Thich Nhat Hanh)

quinta-feira, 2 de maio de 2019

Como Transformar o Nosso Adubo

Quando examinamos cuidadosamente uma flor, podemos constatar que ela é composta inteiramente de elementos não-florais, como sol, chuva, solo, adubo, ar e tempo. Se prosseguirmos nesse exame acurado, notaremos que ela estará prestes a se transformar em adubo. Se não notarmos isso, ficaremos chocados quando a flor começar a se decompor. Quando examinamos atentamente o adubo, vemos que ele também está prestes a se transformar em flores e compreendemos que adubo e flores se integram. Precisam um do outro. Um bom jardineiro orgânico não discrimina o adubo, porque sabe como transformá-lo em cravos, em rosas e em muitos outros tipos de flores. Quando examinamos a nós mesmos em profundidade, vemos tanto flores como lixo. Cada um de nós tem raiva, ódio, depressão, discriminação racial e muitas outras espécies de lixo, mas não há necessidade de sentir medo.

Da mesma forma que um jardineiro sabe como transformar adubo em flores, podemos aprender a arte de transformar a raiva, a depressão e a discriminação racial em amor e compreensão. Este é o trabalho da meditação. Segundo a psicologia budista, nossa consciência esta dividida em duas partes, como uma casa de dois pavimentos. No térreo, há uma sala de visitas que chamamos de "mente consciente". Sob o andar térreo existe um porão, que chamamos de "consciência armazenadora". Nesta, tudo o que fizermos, experimentarmos ou percebermos fica armazenado sob a forma de uma semente ou de um filme.

Nosso porão é um arquivo de todos os tipos de filmes imagináveis, guardados em fita de vídeo. No andar de cima, na sala, sentamo-nos em uma cadeira e assistimos a esses filmes, a medida que eles são trazidos do porão. Alguns filmes, como Ira, Medo ou Desespero, parecem ter a capacidade de sair do porão por conta própria. Abrem a porta da sala e se instalam no nosso aparelho de vídeo, pouco importando que nós os tenhamos escolhido ou não. Quando isso acontece, ficamos paralisados, e não temos outra saída senão assisti-los. Felizmente, cada filme tem uma duração limitada e, quando termina, volta para o porão. Mas, a cada vez que é visto por nós, ele estabelece uma posição melhor na prateleira do arquivo, e sabemos que, em breve, retornará. Algumas vezes, um estímulo exterior, como alguém dizendo algo que fira nossos sentimentos, aciona a exibição de um filme na nossa tela de TV. Gastamos demais o nosso tempo assistindo a esses filmes, e muitos deles estão nos destruindo. Aprender a por um ponto final neles é primordial para o nosso bem-estar. Textos tradicionais descrevem a consciência como um campo, um pedaço de terra onde todo tipo de semente pode ser plantada – sementes de dor, de felicidade, de alegria, de magoa, de medo, de raiva e de esperança.

A consciência armazenadora também é descrita como um depósito cheio de todas as nossas sementes. Quando uma semente se manifesta na nossa mente consciente, sempre volta mais forte ao deposito. A qualidade de nossa vida depende da qualidade das sementes armazenadas na nossa consciência. Podemos ter o habito de manifestar sementes de raiva, de magoa e de medo na nossa mente consciente, sementes de alegria, de felicidade e de paz podem não brotar muito. Praticar a consciência significa reconhecer cada semente a medida que elas sobem do deposito, e regar sempre que possível as sementes mais sadias, a fim de ajudá-las a crescer mais fortes.

Em cada momento em que estamos atentos a algo sereno e belo, regamos sementes de serenidade e de beleza em nós – e lindas flores desabrocham na nossa consciência. O tempo que levamos regando uma semente determina sua força. Por exemplo, se pararmos diante de uma árvore, respirarmos conscientemente e a fruímos por cinco minutos, sementes de felicidade dentro de nós serão regadas durante cinco minutos, e essas sementes crescerão mais fortes. Nesses mesmos cinco minutos, outras sementes, como as do medo e da dor, não serão regadas. Temos que por isso praticar todos os dias. Qualquer semente que se manifeste na nossa mente consciente sempre volta mais forte da nossa consciência armazenadora.

Se regamos cuidadosamente nossas sementes sadias, podemos confiar que a nossa consciência se encarregará do trabalho de cura. Nosso corpo é dotado do poder de curar. Toda vez que cortamos um dedo, lavamos o corte cuidadosamente e deixamos o trabalho de cura por conta de nosso corpo. Em poucas horas, ou em um dia, o corte está cicatrizado. Também a nossa consciência é dotada de poder de curar. Suponha que você viu na rua alguém que conheceu há vinte anos e cujo nome e incapaz de lembrar. A semente dessa pessoa tornou-se muito fraca na sua memória, uma vez que ela não teve a oportunidade de se manifestar no nível superior da sua consciência durante esse tempo todo. No caminho de volta, você vasculha seu deposito a fim de encontrar a semente de seu nome, mas não a consegue encontrar. Por fim, você acaba com dor de cabeça de tanto esforço. Então, para de procurar e começa a ouvir uma fita ou um CD com uma bela música. Depois, desfruta de um jantar delicioso e de uma bela noite de sono. De manhã, ao escovar os dentes, o tal nome simplesmente aflora. "Ah, sim, é esse o seu nome". Isso significa que, durante a noite, quando sua mente consciente cessou a busca, a consciência armazenadora continuou a trabalhar e, pela manha, apresentou- lhe os resultados. A cura tem muitos caminhos.

Quando sentimos raiva, dor ou desespero, só precisamos inspirar e expirar conscientemente e reconhecer o sentimento de raiva, dor ou desespero, e depois deixar o trabalho da cura para a nossa consciência. Mas não é somente pelo fato de entrar em contato com a nossa dor que podemos nos curar. Na verdade, se não estivermos prontos para isso, entrar em contato com ela poderá apenas exacerbá-la. Precisamos primeiro nos fortalecer, é a forma mais fácil de fazê-lo é entrando em contato com a paz e a alegria. Existem muitas coisas maravilhosas, mas como centralizamos nossa atenção no que está errado, não estamos aptos a entrar em contato com o que não está errado. Se despendermos algum esforço para inspirar e expirar e entrar em contato com o que não está errado, mais fácil será a cura.

Muitos de nós trazem dentro de si tanta dor que se torna difícil tocar uma flor ou segurar a mão de uma criança. Mas precisamos fazer algum esforço para desenvolver o habito de tocar o que é belo e propício. Esta é a maneira de ajudar nossa consciência armazenadora a realizar o trabalho de cura. Se entrarmos em contato com o que é pacífico e curativo em nós e ao nosso redor, ajudamos nossa consciência armazenadora a executar o trabalho de transformação. Nós nos deixamos curar pelas árvores, pelos pássaros, pelas belas crianças. De outra maneira, apenas reprisaremos o nosso sofrimento.

Existe na nossa consciência armazenadora uma semente maravilhosa – a semente da plena consciência; quando se manifesta, tem a capacidade de discernir o que esta acontecendo no momento presente. Se damos um passo tranqüilo e feliz, e sabemos que estamos dando um passo tranqüilo e feliz, a consciência está presente. A consciência é um importante agente para a nossa transformação e cura, mas a nossa semente de consciência vem sendo há muito soterrada sob inúmeras camadas de dor e de esquecimento. Raramente estamos cientes de que temos olhos que vêem com clareza, um coração e um fígado que funcionam bem, e de não sentirmos dor de dente. Vivemos no esquecimento, procurando a felicidade em algum outro lugar, ignorando e esfacelando os preciosos elementos de felicidade que já existem dentro e fora de nós. Se inspiramos e expiramos e vemos que a árvore esta ali, viva e bela, a semente da nossa consciência será regada e crescerá mais forte.

(Retirado do livro "Vivendo em paz" de Thich Nhat Hanh)