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sábado, 10 de julho de 2021

Os Cinco Treinamentos de Plena Atenção - Quarto Treinamento: Fala Amável e Escuta Profunda

Consciente do sofrimento causado pela fala inconsequente e por minha falta de habilidade em ouvir os outros, eu me comprometo a cultivar a fala amável e a escuta compassiva para aliviar o sofrimento, e promover a reconciliação e a paz em mim mesmo e entre as pessoas, grupos religiosos, étnicos e nações. Sabendo que a as palavras podem criar tanto felicidade quanto sofrimento, eu me comprometo a falar a verdade com palavras que inspirem confiança, alegria e esperança. Ao perceber a raiva se manifestando em mim, eu me comprometo a não falar. Praticarei a respiração e o caminhar em plena consciência para reconhecer minha raiva e olhar com profundidade suas raízes – especialmente no caso de percepções errôneas ou falta de compreensão do meu próprio sofrimento e do sofrimento de outras pessoas. Falarei e escutarei de modo a aliviar o sofrimento, tanto em mim quanto nos demais, e a resolver situações difíceis. Eu me comprometo a não espalhar notícias das quais não tenha certeza e a não usar palavras que possam causar divisão ou discórdia. Praticarei a Diligência Correta como um meio de nutrir minha capacidade de compreensão, amor, alegria e inclusão, e também para transformar gradativamente a raiva, a violência e o medo presentes em minha consciência.

Existe um ditado vietnamita que diz: "Não custa nada ser amável ao falar". Basta escolher com cuidado nossas palavras, e podemos fazer as outras pessoas felizes. Usar as palavras conscientemente, com amabilidade, é praticar a generosidade. Por isso este treinamento está diretamente ligado ao segundo treinamento para a mente alerta. Podemos fazer muitas pessoas felizes, praticando tão somente o modo de falar amável. Novamente vemos o caráter de interser dos cinco treinamentos para a mente alerta.

Muitas pessoas acham que só serão capazes de praticar a generosidade depois que acumularem uma pequena fortuna. Conheço jovens que sonham em ficar ricos para poderem levar a felicidade aos outros: "Quero ter o título de doutor ou ser presidente de uma grande empresa para ganhar muito dinheiro e ajudar muitas pessoas". Eles não percebem que normalmente é mais difícil praticar a generosidade depois de ficar rico. Se você é motivado pela gentileza amorosa e pela compaixão, há muitas formas de levar a felicidade aos outros agora mesmo, começando pela maneira amável de falar. O seu modo de falar com os outros pode dar a eles alegria, felicidade, autoconfiança, esperança, lealdade e iluminação. O modo de falar consciente é uma prática profunda.

Avalokitesvara Bodhisattva é uma pessoa que aprendeu a arte de escutar e falar profundamente para ajudar as pessoas a se livrarem de seu medo, miséria e desespero. Ele é o modelo desta prática, e a porta que ele abre é chamada "porta universal." Se praticarmos o escutar e o falar de acordo com Avalokitesvara, também nós seremos capazes de abrir a porta universal e levar alegria, paz e felicidade a muitas pessoas e aliviar seu sofrimento. (...)

Durante a época do Buda, o objetivo da prática de muitas pessoas era nascer e viver junto com Brahma. Era semelhante à prática cristã de querer ir para o céu, para estar com Deus. "Na casa de meu Pai há muitas moradas", e você quer viver numa dessas moradas. Para aqueles que queriam estar com Brahma, o Buda disse: "Pratique as quatro nobres moradas: amor, compaixão, alegria e equanimidade." Se quisermos compartilhar o ensinamento do Buda com nossos amigos cristãos, o conteúdo é o mesmo: "Deus é amor, compaixão, alegria e imparcialidade." Se você quer estar com Deus, pratique estas quatro moradas. Se não as praticar, por mais que ore ou fale sobre estar com Deus, não será possível ir para o céu. (...)

Por viver uma vida consciente, sempre contemplando o mundo, e por ser o observador do mundo, Avalokitesvara presencia muito sofrimento. Ele sabe que muito sofrimento nasce da fala descuidada e da incapacidade de escutar os outros; portanto ele pratica a fala consciente e amável e a escuta profunda. Avalokitesvara pode ser descrito como aquele que nos ensina a melhor forma de praticar o quarto treinamento para a mente alerta.

"Consciente do sofrimento causado pela fala inconsequente e por minha falta de habilidade em ouvir os outros, eu me comprometo a cultivar a fala amável e a escuta compassiva para aliviar o sofrimento, e promover a reconciliação e a paz em mim mesmo e entre as pessoas, grupos religiosos, étnicos e nações." Esta é exatamente a porta universal praticada por Avalokitesvara.

Nunca na história da humanidade tivemos tantos meios de comunicação - televisão, telecomunicações, telefones, aparelhos de fax, rádios sem fio, hot lines e red lines - mas ainda permanecemos como ilhas. Há tão pouca comunicação entre os membros de uma família, entre os indivíduos na sociedade e entre as nações. Sofremos de tantas guerras e conflitos. Certamente não cultivamos a arte da escuta e da fala. Não sabemos como escutar um ao outro. Temos pouca capacidade de manter uma conversa inteligente ou significativa. A porta universal da comunicação deve ser aberta novamente. 

Se não olharmos profundamente para dentro de nós mesmos, essa prática não será fácil. Se houver muito sofrimento dentro de você, é difícil escutar as outras pessoas ou dizer-lhes coisas belas e agradáveis. Primeiro você tem de olhar profundamente para a natureza da sua raiva, de seu desespero e do seu sofrimento, a fim de se libertar e disponibilizar para os outros. 

Suponhamos que seu marido tenha dito algo rude na segunda-feira, que a magoou muito. Ele usou uma linguagem descuidada e não tem capacidade de escutar. Se você responde na mesma hora, a partir de sua raiva e do seu sofrimento, você se arrisca a magoá-lo também e a tornar seu sofrimento ainda mais profundo. O que você deve fazer? Se você passar por cima da sua raiva ou permanecer em silêncio, isto pode machucá-la, porque, se você tentar passar por cima da raiva que está dentro de você, estará passando por cima de você mesma. Você vai sofrer mais tarde, e seu sofrimento vai trazer mais sofrimento para o seu parceiro.

A melhor prática do momento é inspirar e expirar para acalmar sua raiva, para acalmar a dor: "Inspirando, eu sei que estou com raiva. Expirando, eu acalmo meu sentimento de raiva". Basta respirar profundamente sobre sua raiva, que você vai acalmá-la. Você está tendo plena consciência de sua raiva, não passando por cima dela. Respirando conscientemente para acalmar sua raiva, você será capaz de dizer à outra pessoa que você está sofrendo. Durante esse momento você está vivendo sua raiva, lidando com ela com a energia da mente alerta. Você não está de forma alguma negando a raiva.

Quando eu falo sobre isto com psicoterapeutas, tenho certa dificuldade. Quando eu digo que a raiva nos faz sofrer, eles consideram que a raiva é algo negativo a ser removido. Mas eu sempre digo que a raiva é algo orgânico, como o amor. A raiva pode tornar-se amor. Nosso adubo pode tornar-se uma rosa. Se soubermos como cuidar do nosso adubo, podemos transformá-lo numa rosa. Devemos considerar o lixo negativo ou positivo? Ele pode ser positivo, se soubermos como lidar com ele. Com a raiva é a mesma coisa. Ela pode ser negativa, quando não sabemos como lidar com ela; mas, se soubermos como lidar com a nossa raiva, ela pode ser muito positiva. Não precisamos jogar nada fora.

Depois de inspirar e expirar certo número de vezes para recuperar sua calma, mesmo que sua raiva ainda esteja presente, você tem plena consciência dela e pode dizer à outra pessoa que você está com raiva. Também pode dizer que você gostaria de examiná-la profundamente, e gostaria que ele também a examinasse profundamente. Então vocês podem marcar uma hora na sexta-feira à noite para examiná-la juntos. Uma pessoa examinando as raízes do seu sofrimento é bom, duas pessoas examinando é melhor ainda e duas pessoas examinando juntas é a melhor opção de todas.

Eu proponho sexta à noite por duas razões. Primeira, você ainda está zangada e, se começar a discutir agora, pode ser muito arriscado. Você pode dizer coisas que vão piorar ainda mais a situação. De agora até sexta à noite você pode praticar a análise profunda da natureza da sua raiva e a outra pessoa também pode. Enquanto dirige o carro, ele pode perguntar a si mesmo: "O que houve de tão sério? Por que ela ficou tão furiosa? Deve haver uma razão". Enquanto você dirige, também terá chance de examiná-la profundamente. Antes de chegar sexta à noite, um de vocês ou ambos podem ver as raízes do problema e ser capazes de dizer tudo ao outro e pedir desculpas. Então, na sexta à noite, podem tomar um xícara de chá juntos e curtir um ao outro. Se marcarem uma hora, ambos terão tempo para se acalmar e analisar profundamente. Esta é a prática da meditação. Meditação é acalmar-nos e analisar profundamente a natureza do nosso sofrimento.

Quando chegar a noite de sexta, se o sofrimento ainda não tiver sido transformado, vocês poderão praticar a arte de Avalokitesvara. Sentam-se juntos e praticam a escuta profunda – uma pessoa fala e a outra escuta profundamente. Quando você fala, vai usar a forma mais profunda da verdade e praticar a fala amável. Somente usando esta forma de linguagem é que haverá uma chance de a outra pessoa entender e aceitar.

Ao ouvir, você sabe que é só com a escuta profunda que você vai poder aliviar o sofrimento da outra pessoa. Se você escutar sem dar ouvidos, você não consegue nada. Sua presença deve ser profunda e real. Sua escuta deve ser de boa qualidade para aliviar a outra pessoa de seu sofrimento.

Esta é a prática do quarto treinamento para a mente alerta. A segunda razão para esperar até sexta é que, se você neutraliza este sentimento na sexta à noite, vocês têm sábado e domingo para aproveitarem juntos.(...)

A fala pode ser construtiva ou destrutiva. Falar com consciência plena pode trazer felicidade real; a fala sem consciência pode matar. Quando alguém nos diz alguma coisa que nos anima e alegra, este é o maior presente que nos pode dar. 

(Do livro “Os cinco treinamentos para a mente alerta” – Thich Nhat Hanh)


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