quarta-feira, 26 de abril de 2017

Formações Internas


O Buda ensinou: “Eu vou ensiná-los o que eu quero dizer por ‘conhecer a  melhor maneira de viver sozinho’.”

Não persiga o passado
Não se perca no futuro
O passado não mais existe
O futuro ainda não veio.
Olhando em profundidade para a vida como é
Neste exato aqui e agora,
O praticante habita
Na estabilidade e liberdade.
Precisamos ser diligentes hoje.
Esperar até amanhã pode ser tarde demais.
A morte vem inesperadamente.
Como podemos barganhar com ela?
Um sábio chama uma pessoa que sabe
Como morar na plena atenção
Dia e noite
“Aquele que sabe
A melhor maneira de viver sozinho.”

(Do sutra sobre a Melhor Maneira de Viver Sozinho)

O gatha “Conhecendo a Melhor Maneira de Viver Sozinho” começa com a linha: “Não persiga o passado”. “Perseguir o passado” significa se lamentar pelo que já veio e se foi. Lamentamos a perda de coisas bonitas do passado que não mais encontramos no presente. O Buda comentou essa linha como se segue: “Quando a pessoa pensa em como seu corpo era no passado, como seus sentimentos eram no passado, como suas percepções eram no passado, como suas formações mentais eram no passado, como sua consciência era no passado, quando ele pensa assim dando surgimento a uma mente que é escravizada nestas coisas que pertencem ao passado, então a pessoa está perseguindo o passado.”

O Buda ensinou que não deveríamos perseguir o passado “porque o passado não existe mais”. Quando estamos perdidos em pensamentos sobre o passado, perdemos o presente. A vida existe somente no momento presente. Perder o presente é perder a vida. O que o Buda quis dizer é muito claro: nós devemos dizer adeus ao passado de forma que possamos retornar ao presente. Retornar ao presente é ficar em contato com a vida.

Que dinâmica na nossa consciência nos compele a regressar e viver com as imagens do passado? Estas forças são feitas das formações internas (sânscrito”samyojana), formações mentais que surgem em nós e nos limitam. As coisas que vemos, ouvimos, cheiramos, tocamos, imaginamos ou pensamos podem todas dar surgimento a formações internas – desejo, irritação, raiva, confusão, medo, ansiedade, suspeita e assim por diante. Formações internas estão presentes nas profundezas da consciência de cada um de nós.

Formações internas influenciam nossa consciência e nosso comportamento diário. Elas nos impelem a pensar, dizer e fazer coisas das quais nem estamos conscientes. Como elas nos compelem desta maneira, são chamadas de correntes, porque nos limitam a agir de determinados modos.

Os comentários usualmente mencionam nove tipos de formações internas: desejo, ódio, orgulho, ignorância, visões teimosas, apego, dúvida, ciúme e egoísmo. Entre estes, a formação interna fundamental é a ignorância, a falta de clareza de visão. A ignorância é a matéria-prima a partir da qual as outras formações internas são feitas. Embora haja nove formações internas, como o “desejo” é sempre listado primeiro, é comumente usado para representar todas as formações internas. No Kaccana – Bhaddekaratta, o monge Kaccana explica:

Meus amigos, o que significa habitar no passado? Uma pessoa pode pensar, “no passado meus olhos eram desse modo e a forma (com a qual meus olhos entraram em contato) era daquele jeito”. Pensando assim ele fica limitado pelo desejo. Ao ficar limitado pelo desejo há um sentimento de saudade. Este sentimento de saudade o mantém habitando no passado.

O comentário de Kaccana poderia nos fazer pensar que a única formação interna segurando a pessoa no passado é o desejo. Mas quando Kaccana se refere ao “desejo”, ele está o usando para representar todas as formações internas – ódio, dúvida, ciúme e assim por diante. Todas estas nos amarram e nos seguram no passado.

Às vezes apenas temos que ouvir o nome de alguém que nos enganou no passado e nossas formações internas desta época automaticamente nos levam de volta ao passado e revivemos o sofrimento. O passado é a casa de memórias tanto dolorosas como felizes. Ficar absorvido no passado é uma maneira de estar morto no momento presente. Não é fácil deixar ir o passado e retornar a viver no presente. Ao tentarmos fazer isto, temos que resistir à força das formações internas em nós. Temos que aprender a transformar nossas formações internas de forma que sejamos livres para estarmos atentos ao momento presente.

O presente contém o passado. Quando entendermos como nossas formações internas causam conflitos em nós, poderemos ver como o passado está no momento presente, e não mais seremos subjugados pelo passado. Quando o Buda disse “Não persiga o passado” ele estava nos dizendo para não sermos subjugados pelo passado. Ele não quis dizer que deveríamos parar de olhar para o passado de forma a observá-lo em profundidade.

Quando revemos o passado e o observamos profundamente, se estivermos firmemente ancorados no presente, não seremos subjugados por ele. Os materiais do passado que constroem o presente se tornam claros quando se expressam no presente. Podemos aprender com eles. Se observarmos estes materiais em profundidade, podemos chegar a um novo entendimento sobre eles. Isto é chamado de “olhar novamente para algo antigo de forma a aprender algo novo”.

Se soubermos que o passado também está localizado no presente, entenderemos que somos capazes de mudar o passado ao transformar o presente. Os fantasmas do passado que nos seguem no presente, também pertencem ao momento presente. Observá-los em profundidade, reconhecer sua natureza e transformá-los, é transformar o passado. Os fantasmas do passado são muito reais. Eles são as formações internas em nós que às vezes estão quietas, dormindo, enquanto que outras vezes acordam de repente e agem de forma forte.

No budismo há um termo sânscrito anushaya. “Anu” significa “junto com”. “Shaya” significa “deitado”. Poderíamos traduzir anushayacomo “tendência latente”. As formações internas continuam a estar conosco, mas elas estão dormindo nas profundezas de nossa consciência. Chamamo-nas de fantasmas, mas elas estão presentes de uma maneira muito real. De acordo com a escola de budismo Vijñanavada, anushaya são as sementes que dormem na consciência armazenadora de todos. Uma parte importante do trabalho da meditação é ser capaz de reconhecer as anushaya quando elas se manifestam, observá-las em profundidade e transformá-las.

(Do livro “Our appointment with life”– Thich Nhat Hanh)
(Traduzido por Leonardo Dobbin)

quarta-feira, 12 de abril de 2017

Os Sete Fatores do Despertar


Despertar consiste de sete qualidades chamadas os sete fatores do despertar, às vezes chamado os sete membros do despertar (sapta bodhyanga em sânscrito).

1. Plena Atenção (Mindfulness)

O primeiro fator do despertar, ou o primeiro membro do despertar, é plena atenção, sati. Quem começa na prática da atenção plena já descobriu o caminho do despertar. Você já está no caminho. No comentário para o Satipatthana Sutta o Buda disse, "Plena atenção, amigos, é essencial em todos os lugares; é tão essencial como o sal é para o curry".

Isto é um pouco reconfortante para mim, uma vez que eu venho de um país onde as pessoas estão seriamente sem medo de sal. Meu avô costumava comer sanduíches de sal. Por favor não pense que eu estou defendendo que você tente fazer isso. Simplesmente estou dizendo que acho que a comparação ressoa em mim. É tão essencial como o sal é para o curry.

Quando falamos da atenção plena, lembre-se de que estamos nos referindo aos quatro estabelecimentos da Plena Atenção que encontramos em um capítulo anterior e que espero que estejamos já desenvolvendo. Há um comentário interessante do Buda sobre plena atenção contido no Dhammapada. O Buda disse, "a pessoa que se deleita na prática da plena atenção e abomina a negligência reside nas proximidades do nirvana". Nós não estamos muito longe de libertação, Nós estamos habitando na verdade bem nas proximidades do que estamos buscando.

2. Investigação dos Dharmas

O segundo dos sete fatores do despertar é a investigação dos darmas, dhamma-vicaya. Esta é uma qualidade de discernimento, de corte através da superfície. Começamos a ver as coisas como elas realmente são. Podemos ver seus componentes.

Vamos dar um exemplo simples, algo que normalmente consideramos ser uma entidade única como "o corpo". Se trouxermos a qualidade da investigação para o corpo, começamos a reconhecer todas as peças diferentes, todas as diferentes condições e elementos que se juntam para compor essa coisa chamada corpo; ou que compõem essa coisa chamada felicidade; ou que se reúnem para inventar essa coisa que chamamos de tristeza ou sofrimento.

Nós vemos as coisas como elas são; vemos a causa de algo, as condições que surgem junto com ela e seus efeitos. O Dharma é para ser descoberto por cada um de nós para nós mesmos e não através da fé cega.

Uma vez um seguidor de outra tradição veio ouvir uma palestra de Dharma do Buda, e ficou tão impressionado que ele pediu para refugiar-se ali. Seu nome era Tino. O Buda ativamente desencorajou-o, dizendo: "Você deve investigar primeiro muito atentamente." Honestamente, os budistas não são grandes na conversão.

Na verdade, se alguém vier a nós muito sonhador, tendemos a desencorajá-lo, não temos qualquer programa missionário. Se você encontrar algo útil, fique à vontade. Se você não encontrar alguma coisa útil, também está ok, desejamos-lhe tudo de bom no seu caminho.

3. Energia

O terceiro membro do despertar é a energia ou esforço: viriya. Nós já discutimos essa prática: Os Quatro Esforços Corretos. Este é também o sexto aspecto do Nobre Caminho Óctuplo, fazendo brotar a quantidade certa de esforço, fazendo brotar a quantidade certa de energia. Existe alguma energia na nossa prática. Não somos como um zumbi.

Outro aspecto da energia e esforço é evitar o sobre-esforço, ao ponto onde torna-se uma mentalidade de insistência, ou orientada a meta. Acho que muitas vezes é no extremo que tendemos a cair. Queremos “conseguir” algo, então nos esforçamos e também forçamos duramente os outros em nossa vida prática. Nos agarramos em algo, neste caso, nossa prática e seguramos isso muito firmemente. Compartilhei muitas vezes que, para as pessoas no Ocidente, a prática da preguiça é um antídoto muito importante para a nossa situação atual. Eu espero que cada um de vocês esteja encontrando oportunidades para a preguiça durante a semana, quer seja por um minuto, uma hora ou um dia por semana.

4. Alegria

O quarto dos membros do despertar é o deleite, piti. Esta energia de prazer permeia todo o corpo e mente. Se não temos este tipo de experiência em nossa prática, deliciando-nos e desfrutando de nossa meditação sentada, de nossa meditação andando, de nossa prática de plena atenção, será difícil progredir muito. Este elemento de prazer se manifesta naturalmente quando temos uma atenção focalizada, quando desenvolvemos a capacidade para viver com a nossa experiência. Começamos a apreciar as coisas que antes realmente não prestávamos atenção, que costumamos chamar "neutras". Thay chama isso de "não-dor de dente"; a não-dor de dente se torna deliciosa!


5. Calma

O quinto fator do despertar é chamado calma, passaddhi, absoluta calma. Passaddhi é descrita às vezes como "calma real". Muitos de nós realmente não nos sentimos calmos, ainda assim a calma começa a se desenvolver ao nos movermos em nossa prática, e é descrita em termos muito bonitos nos textos. É descrita como a sensação que um viajante cansado teria em um dia quente, depois de andar muito e então ver uma grande árvore e vir a sentar-se sob a sua sombra fresca. Esta calma se desenvolve em nosso corpo e mente através de nossa prática da atenção plena.

6. Concentração

O sexto fator do despertar é samadhi, concentração ou habitar com o que está presente. É uma reunião, foco — nosso corpo, fala e mente estão unidos. Não é o tipo de concentração intelectual que ficamos exaustos, é habitar com o que a vida nos oferece, uma não-luta.

7. Equanimidade

O sétimo fator de despertar é equanimidade, upeksha. Este é o equilíbrio da mente. Não é indiferença. Thay às vezes traduzupeksha como inclusividade. Podemos incluir tudo e excluir nenhum. Estamos presentes com tudo o que existe.