terça-feira, 16 de outubro de 2018

Não-Desejo

Não-desejo significa a natureza da realidade. Como temos percepções erradas, a realidade não pode se revelar para nós. Os exercícios de respiração 13 a 16 ensinados pelo Buda nos ajudam a remover nossas percepções erradas de forma que a realidade é revelada. Como percepção é sempre uma percepção de algo, precisamos perguntar sobre a natureza de nossa percepção e a natureza da realidade como objeto da nossa percepção.

O Buda nos advertiu para olharmos a natureza de nosso desejo de forma que a realidade possa se revelar fortemente, e então não mais seremos capturados em percepções erradas. Cada um de nós tem objetos de desejo, de ganância. Acreditamos que se não obtivermos o que queremos, não poderemos ser felizes, e perseguimos esses objetos. O Buda nos adverte para olharmos em profundidade para o objeto, usando plena consciência e concentração, de forma que ele revele sua verdadeira natureza.

Este é o objetivo do exercício, “Experimentando não-desejo, eu inspiro.” Podemos desejar riqueza, acreditando que se não tivermos muito dinheiro, não podemos ser felizes. Aqueles de nós que tem muito dinheiro sabem que ele pode nos fazer muito infelizes. Dinheiro não é um elemento de nossa felicidade. Com dinheiro, podemos sentir que temos poder. Este poder pode nos trazer muito sofrimento porque está freqüentemente ligado a noções de eu, discriminação, desilusão e ignorância. Olhando em profundidade para o objeto de nosso desejo, nossa ganância, vemos que não é realmente um objeto a se perseguir.

Se somos viciados em álcool, pensamos que não podemos nos sentir bem sem ele. Precisamos olhar em profundidade para a sua natureza; como ele é feito, o que ele vai fazer conosco e com as pessoas ao nosso redor; qual a relação entre a bebida e nosso fígado, coração, sentimentos e consciência. Se olharmos com profundidade suficiente, veremos que o objeto de nosso desejo não é um elemento de nossa felicidade. Podemos sofrer tremendamente devido ao álcool ou morrer por causa dele, mas mesmo assim o perseguimos por um longo tempo.

O Buda usou a imagem de um homem que está sedento e vê um copo. A água parece muito fria, fresca e doce, mas há veneno nela. Alguém alerta ao homem para que não beba da água, “Se você beber, poderá morrer ou ficar a beira da morte. Não beba, eu te alerto. Procure alguma outra coisa para beber. Use qualquer coisa para matar sua sede, mas não beba isso.” Mas o homem está tão sedento e a água é tão apelativa que ele decide que beber está OK. Ele bebe e pensa, “Eu morrerei depois.” E ele sofre.

Acontece o mesmo com riqueza, fama, sexo e comida. Se há comida na mesa e você deseja muito, pensando que não pode ser feliz sem ela, mesmo se alguém te disser que você morrerá ou sofrerá muito por comê-la, você ainda a comerá. Você está tão faminto e pensa que a felicidade não é possível a não ser que você coma. Você pensa: “Tudo bem, morrerei porque tenho que comer isso.” Muitos de nós têm essa atitude.

Conheço uma mulher que recebeu os Cinco Treinamentos de Plena Atenção alguns anos atrás. Depois ela conheceu um homem na universidade e se apaixonaram. Ele disse a ela: “Não estou feliz com minha esposa, e quando te vejo sei que você é tudo que quero”, e ele chorava. Ele era casado e tinha um filho e mesmo assim queria ter um caso com ela. Ele não percebeu que se fosse em frente, causaria muito sofrimento para ela, para ele mesmo, para sua esposa e filho. Como a mulher tinha recebido e estava praticando o Terceiro Treinamento, ela disse: “Não, eu não posso ter uma relação com você.” Mas ela ainda queria ter muito essa relação. Finalmente, depois da graduação, ele voltou ao seu país. Ela se sentiu sozinha e começou a odiar os Cinco Treinamentos. Ela disse: “Devido aos Cinco Treinamentos de Plena Atenção eu não tive um relacionamento com ele e era exatamente o que eu queria. Ambos ficamos com consciências limpas, mas eu ainda odeio o Terceiro Treinamento.”

Eu estou certo que se ela fosse adiante e tivesse um relacionamento com ele, teria criado muito sofrimento para ela mesma, para ele e muitas outras pessoas. Como ela não experimentou esse sofrimento, era possível para ela odiar o Terceiro Treinamento. Temos que olhar em profundidade para o objeto do desejo para ver como ele acontece e o que ele fará conosco e com as pessoas ao nosso redor. Se tivéssemos um insight real na sua origem e resultado, não o quereríamos, porque veríamos que ele nos traria muito sofrimento.

Intenção e desejo, volição, é o terceiro tipo de nutriente que aprendemos. Como mencionei antes, o Buda ofereceu a imagem de um homem carregado a força por dois homens fortes. O homem quer viver. Não deseja morrer. Mesmo assim os dois homens o carregam a força e desejam jogá-lo em uma fogueira. O homem grita: “Não, não, eu não quero morrer! Quero viver! Não me joguem no fogo.” Mesmo assim os dois homens continuam e jogam-no na fogueira. O Buda disse que esses dois homens fortes são nosso desejo, nossa volição. Você não quer morrer, não quer sofrer, mas devido ao seu desejo, é arrastado para o reino do sofrimento. Olhando em profundidade para a natureza do objeto de seu desejo com plena consciência e concentração, você descobrirá a sua natureza verdadeira e parará de persegui-la.

Nos dias de hoje as pessoas pescam com pesos de plásticos. Elas não usam mais insetos vivos. O peixe vê a isca. É muito apelativa. Eles mordem e o anzol escondido os corta. Nos comportamos do mesmo modo. Temos uma percepção errada sobre o objeto de nosso desejo. Pensamos que a vida não terá significado, e não seremos felizes se não tivermos aquele objeto. Há milhões de maneiras de ser feliz, mas não sabemos como abrir a porta para que a felicidade entre. Apenas perseguimos os objetos de nosso desejo. Muitos de nós experimentaram a realidade que quanto mais perseguimos objetos de nosso desejo, mais sofremos.

Tenho uma boa história para contar. Imagine um riacho descendo do alto da montanha. Ele é muito jovem e quer correr. Seu objetivo é o oceano. Quer chegar lá tão rápido quanto possível. Quando alcança as planícies e o campo, fica mais lento. Se torna um rio. Fluindo lentamente, começa a refletir as nuvens e o céu. Há muitos tipos de nuvens, com diferentes formas e cores, e o rio passa todo o tempo as perseguindo, uma depois da outra. Mas as nuvens não ficam paradas. Elas vêm e vão. O rio chora muito, porque nenhuma das nuvens fica com ele para sempre. As coisas são impermanentes. Ele sofre devido a sua atitude e comportamento.

Um dia um vento forte limpou todas as nuvens e o céu ficou extremamente azul. Não havia absolutamente nuvens. O rio pensou que a vida não valia a pena ser vivida mais. Ele não sabia como desfrutar do céu azul. Ele o via como vazio, e sentia que a vida não tinha significado. Esta noite ele quis se matar. Como pode um rio se matar? De alguém não é possível se tornar ninguém. De algo não é possível se tornar nada. Durante aquela noite ele chorou muito. Este é o som da água batendo nas margens. Esta foi a primeira vez que ele voltou-se para si mesmo.

Até agora, ele tinha apenas corrido para fora de si mesmo. Ele pensava que a felicidade estava fora, não dentro. A primeira vez que voltou a si mesmo e ouviu o som de suas lágrimas, ele descobriu algo. Ele não sabia que um rio era feito de elementos não-rio. Ele estava perseguindo nuvens, pensando que não poderia ser feliz sem elas, e não percebeu que ele era feito de nuvens. O que ele estava procurando já estava dentro dele. Felicidade é assim. Se você sabe como voltar ao aqui e agora e perceber os elementos de sua felicidade que já estão disponíveis, não precisa mais correr.

De repente o rio percebeu que havia algo refletido nele: o céu azul. Ele vê o quão pacífico, sólido, livre e bonito o céu é. Ele não tinha percebido antes. Ele sabe que sua felicidade deveria ser feita de solidez, liberdade e espaço. Ele é preenchido de felicidade porque pela primeira vez soube como refletir o céu. Antes, ele havia somente refletido as nuvens e ignorado completamente o céu. Esta foi uma noite de transformações profundas. Todas as lágrimas e sofrimento foram transformados em alegria, solidez e liberdade.

Na manhã seguinte não havia vento. As nuvens retornaram. Agora ele as reflete sem apego com equanimidade. Ele diz “Oi” cada vez que uma nuvem aparece. Quando a nuvem se vai, ele não fica triste. Ele achou a liberdade. Ele sabe que a liberdade é a fundação da sua felicidade. Ele aprendeu a parar e não correr mais. Naquela noite algo maravilhosos se revelou. A imagem da lua cheia foi refletida. Ele está muito feliz dando as mãos para as nuvens e a lua, praticando meditação caminhando para o oceano. Cada passo, feito em conjunto com as nuvens e a lua traz ao rio muita felicidade.

Cada um de nós é um rio. Começamos como um regato descendo do alto da montanha, querendo correr o mais rápido possível. Então aprendemos como ficar mais lentos um pouco, e começamos a perseguir objetos de nosso desejo. Sofremos. Às vezes sofremos tanto que não queremos nem mais existir. Então temos a chance de voltarmos para nós mesmos e refletir profundamente. Percebemos que o objeto de nosso desejo é a causa de nosso desespero e das nossas aflições. Todos os elementos da felicidade estão disponíveis no aqui e agora. Temos tudo que precisamos. De repente conseguimos o tipo de liberdade que nunca tivemos e somos capazes de viver cada momento de nossa vida diária profundamente. Como nos tornamos um rio feliz, podemos ajudar muitos rios a nossa volta a se tornarem felizes também.

(Traduzido do  livro “The Path of Emancipation” – Thich Nhat Hanh – por Leonardo Dobbin)