terça-feira, 26 de março de 2019

Ensinamento Sobre o Caminho da Plena Atenção

Sidarta quietamente fez um gesto para que as crianças sentassem e disse: “Vocês todas são crianças inteligentes e eu estou certo que serão capazes de entender e praticar as coisas que eu partilharei com vocês. O Grande Caminho que eu descobri é profundo e sutil, mas qualquer um desejando aplicar seu coração e mente pode entendê-lo e segui-lo.”

“Quando você, criança, descasca uma tangerina, pode comê-la com consciência ou sem consciência. O que significa comer uma tangerina com consciência? Quando você está comendo uma tangerina está consciente que está comendo uma tangerina. Você experimenta totalmente sua adorável fragrância e gosto doce. Quando você descasca a tangerina, sabe que está descascando a tangerina; quando remove um gomo e o coloca em sua boca, sabe que está removendo um gomo e o colocando na boca. Quando experimenta sua adorável fragrância e gosto doce, está consciente que está experimentando seu gosto doce e adorável fragrância.”

“A tangerina que Nandabala me ofereceu tem nove gomos. Eu comi cada gomo em plena consciência e vi o quão preciosos e maravilhosos eram. Eu não esqueci a tangerina, e portanto a tangerina era real, a pessoa comendo a tangerina era real. Isto é que é comer uma tangerina de forma consciente.”

“Crianças o que significa comer uma tangerina sem plena consciência? Quando você está comendo uma tangerina, não sabe que está comendo uma tangerina. Não experimenta a adorável fragrância e o gosto doce da tangerina. Quando você descasca a tangerina, não sabe que está descascando uma tangerina. Quando remove um gomo e põe na sua boca, não sabe que está removendo um gomo e o colocando em sua boca. Quando sente o cheiro da fragrância ou o gosto de uma tangerina, não sabe que está sentindo o cheiro da fragrância ou o gosto da tangerina. Ao comer uma tangerina deste modo, você não pode apreciar sua preciosa e maravilhosa natureza. Se você não está consciente que está comendo uma tangerina, a tangerina não é real. Se a tangerina não é real, a pessoa que a está comendo também não é real. Crianças, isto é comer uma tangerina sem plena consciência.”

“Crianças, comer uma tangerina em plena consciência significa que enquanto você come está verdadeiramente em contato com ela. Sua mente não está correndo atrás dos pensamentos de ontem ou de amanhã, mas está habitando totalmente no momento presente. A tangerina está verdadeiramente presente. Vivendo com plena consciência da mente significa morar no momento presente, sua mente e corpo habitando realmente no aqui e agora.”

“Uma pessoa que pratica a plena atenção pode ver coisas na tangerina que outros não são capazes de ver. Uma pessoa consciente pode ver a árvore de tangerina, o florescer da tangerina na primavera, os raios de sol e chuva que nutriram a tangerina. Olhando profundamente, a pessoa pode ver dez mil coisas que fizeram a tangerina possível. Olhando para a tangerina, uma pessoa que pratica plena atenção pode ver as maravilhas do universo e como todas as coisas interagem umas com as outras. “

“Crianças, nossa vida diária é justamente como a tangerina. Como a tangerina é dividida em gomos, cada dia é dividido em 24 h. Uma hora é como um gomo da tangerina. Viver todas as 24hs do dia é como comer todos os gomos da tangerina. O caminho que eu encontrei, é o caminho de viver cada hora do dia em plena atenção, mente e corpo sempre habitando no momento presente. O oposto é viver no esquecimento, não saber que estamos vivos. Não experimentamos totalmente a vida porque nossa mente e corpo não estão habitando no aqui e agora.”

Gautama olhou para Sujata e disse seu nome.

“Sim, Mestre?” Sujata juntou as palmas das mãos.

“Você acha que uma pessoa que vive em plena atenção fará muitos erros ou poucos?”

“Respeitável Mestre, uma pessoa que vive em plena atenção fará menos erros. Minha mãe sempre me diz que uma menina deveria prestar atenção à maneira como anda, fica em pé, fala, ri e trabalha de forma a evitar pensamentos, palavras e ações que possam causar lamento para ela mesma e para os outros.”

“Isso mesmo, Sujata. Uma pessoa que vive em plena atenção sabe o que está pensando, dizendo e fazendo. Tal pessoa pode evitar pensamentos, palavras e ações que causam sofrimento para ela mesma e para os outros.”

“Crianças, viver em plena atenção significa viver no momento presente. Uma pessoa é consciente do que está acontecendo dentro dela e ao seu redor. A pessoa está em contato direto com a vida. Se a pessoa continua a viver desse modo, será capaz de profundamente entender a si mesma e ao que está a sua volta. Entendimento leva à tolerância e ao amor. Quando todos os seres se entenderem, eles se aceitarão e se amarão. Então não haverá tanto sofrimento no mundo. O que você pensa Svasti? As pessoas podem amar se elas são incapazes de se entender?”

“Respeitável Mestre, sem entendimento, o amor é bem difícil. Me lembra algo que aconteceu com minha irmã Bhima. Uma vez ela chorou a noite toda até que minha irmã Bala perdeu a paciência e deu umas palmadas nela. Isso apenas fez Bhima chorar mais. Eu peguei Bhima e percebi que ela estava com febre. Tinha certeza que sua cabeça deveria estar doendo por causa da febre. Chamei Bala e disse a ela que colocasse a mão na testa de Bhima. Quando ela fez isso entendeu de uma vez porque Bhima estava chorando.Seu olhos amoleceram e ela pegou Bhima nos seus braços e cantou para ela com amor. Bhima parou de chorar mesmo ainda com febre. Respeitável mestre, penso que isto aconteceu porque Bala entendeu o porque de Bhima estar chateada. E assim penso que sem entendimento, o amor não é possível.”

“Isso mesmo Svasti! O amor só é possível quando há entendimento. E somente com amor pode haver aceitação. Pratiquem viver em plena atenção crianças e vocês aprofundarão seu entendimento. Serão capazes de entender a vocês mesmos, às outras pessoas e todas as coisas. E vocês terão corações de amor. Este é o caminho que eu descobri.”

Svasti juntou as palmas das mãos. “Respeitável Mestre, podemos chamar este caminho do ‘Caminho da Plena Atenção’?”

Sidarta sorriu “Claro. Podemos chamá-lo de o Caminho da Plena Atenção. Eu gosto muito. O Caminho da Plena Atenção leva ao perfeito Despertar.”

Sujata juntou as palmas das mãos e pediu permissão para falar. “Você é aquele que despertou, aquele que mostra como viver em plena atenção. Podemos chama-lo de ‘O Desperto’?”

Sidarta fez que sim com a cabeça. “Isto me agradaria muito.”

Os olhos de Sujata brilharam. Ela continuou “Desperto em Magadhi é pronunciado como budh. Uma pessoa desperta deveria ser chamada Buda em Magadhi. Podemos chamá-lo de Buda?”

Sidarta fez que sim com a cabeça. Todas as crianças estavam extasiadas. Nalaka, um menino de 14 anos, o mais velho do grupo falou: “Respeitável Buda, estamos muito felizes de receber seus ensinamentos sobre o Caminho da Plena Atenção. Sujata me disse como você meditou sobre esta árvore nos últimos 6 meses e como na última noite obteve o Grande Despertar. Respeitável Buda, esta árvore é a mais bonita da floresta. Podemos chama-la de ‘Árvore do Despertar’, a ‘Árvore Bodhi’? A palavra bodhi divide a mesma raiz da palavra Buda e também significa despertar.”

Gautama fez que sim com a cabeça. Ele também estava deleitado. Ele não tinha adivinhado que durante seu encontro com as crianças o caminho e mesmo a grande árvore receberiam nomes especiais.

(Traduzido do livro “Old Path White Clouds” sobre a vida do Buda – Thich Nhat Hanh)

segunda-feira, 18 de março de 2019

O Meio de Vida Correto

Para praticar o Meio de Vida Correto, é necessário encontrar uma forma de ganhar a vida que não represente uma transgressão aos ideais de amor e compaixão. A forma pela qual você se sustenta pode ser uma expressão do seu ser mais profundo ou pode ser uma fonte de sofrimento para você e para os outros.

Os sutras costumam dizer que o Meio de Vida Correto é ganhar a vida sem precisar transgredir nenhum dos Cinco Treinamentos da Atenção Plena: não vender armas, não vender escravos, não vender carne, álcool, drogas nem venenos, não fazer profecias nem dizer a sorte. Monges e monjas devem tomar cuidado para não fazerem aos leigos pedidos exagerados em relação aos quatro requisitos básicos, que são remédios, alimentos, roupas e hospedagem, e para não possuírem coisas materiais além de suas necessidades imediatas. Ao procurarmos estar conscientes em todos os momentos, tentamos ter uma ocupação que seja benéfica para os seres humanos, os animais, as plantas e a terra, ou pelo menos uma ocupação que prejudique pouco. Vivemos em uma sociedade na qual os empregos costumam ser difíceis de obter, mas se nosso emprego prejudicar a vida de alguma forma, então deveríamos procurar outro. Nossa atividade diária tanto pode alimentar a compreensão e a compaixão quanto pode ajudar a destruí-las.

Temos sempre que ter consciência das conseqüências, imediatas ou remotas, do nosso trabalho. Muitas indústrias modernas são prejudiciais aos seres humanos e à natureza, mesmo aquelas que produzem alimentos, e os pesticidas químicos e fertilizantes destroem o meio ambiente. Por isso, a prática do Meio de Vida Correto é muito difícil para os fazendeiros. Se não usarem produtos químicos, talvez tenham dificuldades para se manterem comercialmente competitivos. Este é apenas um entre muitos exemplos. Ao exercer sua profissão, respeite sempre os Cinco Treinamentos da Atenção Plena. Um trabalho que de alguma forma envolva morte, roubo, má conduta sexual, mentiras ou venda de drogas ou de álcool não é um Meio de Vida Correto. Se sua empresa polui os rios ou o ar, trabalhar neste lugar não é um Meio de Vida Correto. Fabricar armas ou lucrar com as superstições dos outros também não são Meios de Vida Corretos. As pessoas têm superstições, e acreditam que seu destino está escrito nas estrelas ou na palma das mãos. A verdade é que ninguém pode ter certeza absoluta sobre o que acontecerá no futuro, e ao praticar a atenção plena adquirimos o poder de alterar o destino previsto pelos astrólogos. Além disso, as profecias contribuem para que fatos preditos acabem se tornando realidade.

Compor ou executar obras de arte também podem ser um meio de sustento. Um compositor, escritor, pintor, músico, bailarino ou ator têm efeito direto na consciência coletiva. Qualquer obra de arte é, em grande parte, um produto da consciência coletiva. Portanto, o artista deve praticar a atenção plena, para que seu trabalho ajude aqueles que entram em contato com ele a também praticar a atenção plena. Um jovem que queria aprender a desenhar flores de lótus foi a um mestre e pediu para ser seu aprendiz. O mestre o conduziu até um lago de lótus e o convidou a se sentar ali. O jovem viu as flores desabrochando quando o sol estava alto, e observou os botões se fechando quando a noite chegava. Na manhã seguinte, fez a mesma coisa. Quando uma flor de lótus murchou e suas pétalas caíram na água, ele observou o caule, o estame e o restante da flor, e depois passou a observar outra flor. Fez isto durante dez dias. No décimo primeiro dia, o mestre lhe perguntou: "Você está pronto?" e ele respondeu: “Vou tentar." O mestre lhe deu um pincel, e apesar de ter um estilo infantil, o jovem desenhou um lótus absolutamente lindo. Ele havia se tornado o lótus, e o desenho simplesmente brotou de dentro dele. A ingenuidade em matéria de técnica era evidente, mas uma beleza profunda estava retratada ali.

O Meio de Vida Correto não é apenas uma questão de escolha pessoal. Ele representa o nosso carma coletivo. Por exemplo, se eu sou um professor primário, e acho que ensinar as crianças a ter mais amor é compreensão é uma grande profissão, recusaria se alguém me pedisse para parar de ensinar e me transformasse, por exemplo, em um açougueiro. Mas ao meditar na interdependência das coisas, vejo que o açougueiro não é o único responsável pela matança de animais.

Talvez nossa opinião seja que o meio de vida do açougueiro é errado, e o nosso é certo, mas se nós não comêssemos carne ninguém precisaria matar animais. O Meio de Vida Correto, na verdade, é uma questão coletiva. O trabalho de cada pessoa afeta todas as outras. Os filhos do açougueiro podem se beneficiar com o professor, mas os filhos do professor, que comem carne, também são responsáveis pelo sustento do açougueiro. Vamos imaginar que um fazendeiro que se sustenta vendendo carne bovina queira receber os Cinco Treinamentos da Atenção Plena. À luz do primeiro treinamento, ele começa a se perguntar o que tem feito para proteger a vida. Reflete que proporcionou ao seu gado as melhores condições possíveis de bem estar, chegando mesmo a operar seu próprio matadouro, para que não houvesse crueldade desnecessária infligida aos animais na hora de abatê-los. Ele herdou a fazenda do pai, e além disso tem uma família para sustentar. É um dilema. O que fazer? Suas intenções são boas, mas ele herdou dos ancestrais não apenas a fazenda, mas também a força e a energia de seus hábitos. Cada vez que uma vaca é morta, isso deixará uma impressão em sua consciência, que retomará a ele em sonhos, durante a meditação ou no momento da morte. Tomar conta do gado da melhor maneira possível enquanto os animais estão vivos é de fato um Meio de Vida Correto. Ele deseja tratar seus animais com o máximo de bondade, mas também deseja a segurança proporcionada por uma renda estável para ele e para sua família.

Este homem deve continuar a contemplar todas estas questões com profundidade, praticando continuamente a atenção plena em companhia de sua Sangha local. À medida que sua compreensão se aprofunda, ele acabará encontrando uma forma de sair desta situação em que é obrigado a matar para viver.

Tudo o que fazemos é parte de nosso esforço de praticar o Meio de Vida Correto. Trata-se de um assunto muito mais amplo do que apenas o meio pelo qual obtemos nossa renda mensal. Talvez não possamos ter um Meio de Vida cem por cento correto, mas podemos decidir que vamos caminhar na direção da redução do sofrimento e do aumento da compaixão.

Milhões de pessoas, por exemplo, ganham a vida na indústria de armas, ajudando direta ou indiretamente a fabricar armamentos convencionais ou nucleares. Os Estados Unidos, a Rússia, a França, a Inglaterra, a China e a Alemanha são os principais fornecedores de armas do mundo. A seguir estas armas são vendidas para países do Terceiro Mundo, onde o povo não precisa de armas, e sim de comida. Fabricar ou vender armas não é um Meio de Vida Correto, mas a responsabilidade por essa situação pertence a nós todos - políticos, economistas e consumidores. Nunca promovemos um grande debate nacional sobre esta questão, que é tão importante. Precisamos discutir isso, e precisamos também continuar a gerar novos empregos, para que ninguém seja obrigado a viver dos lucros da fabricação de armas. Se você trabalha em uma profissão em que há espaço para a realização de seu ideal de compaixão, fique grato. E por favor, ajude a criar empregos para que outros também possam viver de uma forma correta, simples e sadia. Use toda a sua energia para tentar melhorar a situação geral.

Praticar o Meio de Vida Correto significa praticar a Atenção Plena Correta. Cada vez que o telefone toca, considere-o como a campainha da atenção. Pare tudo o que estiver fazendo, inspire e expire conscientemente, e a seguir pegue o telefone. A sua forma de atender o telefone personificará o Meio de Vida Correto. Precisamos discutir entre nós como praticar a atenção plena em nosso local de trabalho e em todos os outros locais. Será que respiramos ao ouvir o telefone? Sorrimos quando estamos atendendo a outros? Caminhamos com atenção plena quando nos deslocamos de uma reunião para outra? Praticamos a Fala Correta? Fazemos um relaxamento total depois de muitas horas de trabalho pesado? Vivemos de forma a encorajar as pessoas a serem pacíficas e felizes, e a trabalhar para incentivar a paz e a felicidade? Estas perguntas são muito importantes, e são todas de ordem prática. Trabalhar para incentivar este tipo de pensamento e de ação, além da compaixão, significa praticar o Meio de Vida Correto.

Se alguém tem uma profissão que contribui para que seres vivos sofram e oprimam outros, isto acabará contaminando sua consciência, da mesma forma que quando poluímos o ar que depois iremos respirar. Muitas pessoas enriquecem vivendo de forma incorreta. A seguir vão a um templo ou igreja e fazem doações. Estas doações se originam de sentimentos de culpa e medo, e não do desejo de fazer os outros felizes. Quando um templo ou igreja recebe grandes doações, as pessoas que recebem os recursos devem entender isto, e devem também tentar ajudar na transformação do doador, mostrando-lhe como abandonar um Meio de Vida incorreto. Estas pessoas necessitam, mais do que qualquer outra coisa, dos ensinamentos do Buda.

À medida que vamos estudando e praticando o Nobre Caminho óctuplo, começamos a entender que cada etapa do caminho está contida nos outros sete. Vemos também que cada etapa contém dentro de si as Nobres Verdades da existência, origem e cessação do sofrimento.

Ao praticar a Primeira Nobre Verdade, reconhecemos nosso sofrimento e o chamamos pelo seu nome correto - depressão, ansiedade, medo ou insegurança. A seguir olhamos de frente para ele, para descobrir em que se baseia, e isso representa a prática da Segunda Nobre Verdade. Essas duas práticas contêm os primeiros dois elementos do Nobre Caminho Óctuplo, ou seja, a Compreensão Correta e o Pensamento Correto. Todos nós temos uma tendência a fugir do sofrimento, mas quando começamos a praticar o Nobre Caminho Óctuplo criamos coragem para passar a encarar o sofrimento de forma diferente. Utilizamos a Atenção Plena Correta e a Concentração Correta para observar o sofrimento de frente, com coragem. A prática de olhar com profundidade e enxergar com clareza representa a Compreensão Correta, que nunca nos mostrará uma única razão para o sofrimento, mas centenas de camadas de causas e condições: sementes que herdamos de nossos pais, avós e ancestrais; sementes dentro de nós nutridas por amizades ou pela situação econômica e política de nosso país; além de muitas outras causas e condições.

Agora chegamos ao ponto onde queremos fazer alguma coisa para diminuir o nosso sofrimento. Depois de identificar o que alimenta nosso sofrimento, acharemos uma forma de deixar de ingerir esse nutriente, quer se trate de um comestível, de alimento dos sentidos, de nutriente recebido das nossas intenções, ou do alimento de nossa consciência.

(Do livro “A Essência dos ensinamentos de Buda” – Thich Nhat Hanh)

quarta-feira, 13 de março de 2019

Entrando em Contato com a Origem de Ser

No cristianismo e no budismo, tanto no Oriente quanto no Ocidente, existe o conceito do Todo, a realidade suprema, a origem de ser. Nossos amigos cristãos tendem a pensar que os budistas não gostam de imaginar o Todo, ou a origem de ser, como uma pessoa. É a isso que resistem mais. Alguns cristãos acreditam que, para os budistas, o Todo, ou a origem de ser, é uma não-pessoa. Mas isso não é verdade de forma alguma. Talvez vocês já tenham tido esta percepção na vida cotidiana. Todas as vezes em que contemplam uma árvore, embora saibam que aquilo não é uma pessoa, seu relacionamento com a árvore não é o de uma pessoa com uma não-pessoa.

Quando toco uma rocha, jamais a toco como inanimada. A árvore é espírito, mente; a rocha é espírito, mente; o ar, as estrelas, a lua, tudo é consciência. Eles são objeto de sua consciência. Quando vocês dizem "o vento está soprando", o que estão tentando dizer? Vocês têm a percepção de que o vento está soprando, então dizem: "Sei que o vento está soprando." Isto é uma percepção. O vento pode estar soprando, mas a pessoa perto de vocês talvez não o perceba. Como vocês o perceberam, tentam dizer-lhe isso.

Dizer "o vento está soprando" é muito estranho. O vento precisa estar soprando; caso contrário, não é o vento. Então vocês não precisam pronunciar a palavra soprando. Podem simplesmente dizer vento. O que é vento? É a sua percepção, a sua consciência. Conforme a sua percepção, assim é o vento. A única coisa da qual tem certeza é que o vento é o objeto da sua percepção. Ela consiste na substância e no objeto, naquele que percebe e no que é percebido. O vento é parte da sua consciência. É o objeto da sua percepção.

Algumas vezes vocês criam o objeto da sua percepção sem qualquer fundamento. Imaginam que outra pessoa está tentando destruí-los, quando, na verdade, tal coisa nem lhe passa pela mente. A mente cria muitas coisas. Nos ensinamentos da escola Dharmalakshana, aprende-se a olhar para as coisas como objetos da consciência e não como entidades separadas, independentes. Se olharem atentamente para o céu, não verão o céu azul como algo separado de vocês, algo inanimado. Perceberão o céu como a sua consciência. Também é o consciente coletivo.

Em Princeton há uma escola de pensamento que afirma que existe pensamento no céu azul. Existe pensamento na nuvem, nas estrelas. Vocês vêem o céu como consciência. O céu é consciência. O mesmo se pode dizer quanto às nuvens e às estrelas. Não são objetos inanimados, separados da consciência de vocês. É o objeto da sua consciência; então treinem isso para que não vejam mais os objetos da sua percepção como algo independente das percepções. A grande consciência está, ela mesma, se manifestando. Tudo é visto como consciência.

Nas esferas não-budistas é muito comum seus integrantes chegarem à mesma compreensão, como ocorreu com o Buda. Na minha experiência, quanto toco uma árvore, quando olho para um pássaro, quando contemplo a água no riacho, admiro-os, não porque foram criados por Deus, nem porque possuem a natureza do Buda. Admiro-os porque são árvores, são rochas, são água. Eu me curvo para uma rocha porque ela é uma rocha. Não me curvo perante uma rocha porque um espírito mora ali. Também não a considero uma coisa inanimada. Porque a rocha, no meu entender, nada mais é do que consciência, o próprio espírito.

Muitos dos nossos amigos cristãos se aborrecem quando os budistas dão outros nomes àquele espírito, sem usar a palavra Deus. Teilhard de Chardin ficou sentido ao ouvir o Espírito Santo sendo chamado de "o Todo", ou "espírito", e não Deus. Mas é correto empregar a palavra Deus quando muitos pensam em Deus como uma pessoa no sentido fenomenal? Se as pessoas sabem que Deus não é uma pessoa, mas também não menos do que uma pessoa, como disse Paul Tillich, então não será tão difícil usar a palavra Deus.

O Buda tem muitos corpos, Ele tem um corpo físico e também um corpo Dharma. Antes de falecer, disse aos discípulos: "Meu corpo físico não é tão importante. Toquem meu corpo Dharma. Este estará com vocês."

O que é o Dharma? Não é um grupo de leis e práticas ou uma pilha de sutras, videoteipes ou cassetes. O Dharma é compreensão, é a prática da bondade amorosa como expresso pela vida. Não se pode ver o Dharma a não ser quando se observa alguém praticando-o, tornando-o aparente a todos, como uma monja andando atentamente, tocando profundamente a terra, irradiando paz e felicidade. Esta monja não está pregando ou apresentando um videoteipe, mas expressando o Dharma ativo. Ela pode expressar o Dharma ativo porque ela é uma pessoa. Em nosso corpo físico podemos tocar o corpo de Dharma. O Buda tem um corpo de Dharma e este corpo continuará a ser visto e tocado por nós enquanto pessoas continuarem a praticar o Dharma. Tudo isso apenas é possível com não-ser, com impermanência.

Quando falamos sobre amar Buda, o que queremos dizer com isso? Precisamos amar Buda? Buda precisa ser amado por nós? Invocamos o nome de Buda e a recordação de Buda para fazê-lo presente nas nossas mentes, para torná-lo parte dos momentos da vida cotidiana. Buda precisa que o amemos, que nos lembremos dele, que o glorifiquemos? Não creio. Não penso que Buda necessite de amor. Podemos sentir amor por Buda, do mesmo modo que sentimos amor por nossos pais e mestres. Buda é nosso mestre. É claro que sentimos admiração pelo mestre, o Buda. Ele praticou bem, ele tem coragem. Tem muita compaixão, compreensão e é uma pessoa livre. Não sofre tanto quanto nós por causa do seu elevado nível de compreensão, compaixão e bondade amorosa.

Vocês amam alguém quando este alguém necessita de vocês. Quando aquele alguém sofre, o amor de vocês alivia o sofrimento. Seu amor contribui para trazer felicidade. Este é o significado do amor. É fácil entender que os seres que nos cercam, sofrendo, necessitam do nosso amor. Mas será que a salvação, a liberação de vocês depende do seu amor por Buda? Não penso assim. Se o louvarem, não é porque ele ou ela o deseja.

Contudo, enquanto o louvam, vocês estão tocando e irrigando as benfazejas sementes dentro de vocês. Segundo tal linha de conduta, Buda tem conscientização, é compreensivo e amoroso. Tocar a semente da compreensão, conscientização e bondade amorosa dentro de vocês contribui para que estas qualidades se tornem mais fortes para a sua própria felicidade e das outras pessoas e seres vivos que estão próximos. Quando queimam incenso, não é para Buda. Ele não precisa do incenso. Mas quando vocês fazem isso, curvando-se profundamente e louvando Buda, irrigam as benfazejas sementes dentro de vocês. Esta é a atitude. Quando se tornam conscientes, compreensivos e amorosos, sofrem muito menos, começam a se sentir felizes e as pessoas ao redor começam a se beneficiar por vocês estarem ali.

Quando um cristão diz que está fazendo algo de determinada maneira porque ama Deus, o que ele quer dizer com isso? Como ele ama Deus? Do mesmo modo que ama o pai, a mãe ou o professor? Todos eles devem ter problemas. Talvez estejam sofrendo e necessitem de amor e apoio. Não creio que Deus precise desse amor e apoio. No cristianismo, quando se ama Deus, é preciso amar o próximo; caso contrário, não podem dizer que amam a Deus. Então terão que ir ainda mais longe. Terão que amar os seus inimigos.

Por que temos que amar os nossos inimigos? Como você pode amar o seu inimigo? Nos ensinamentos budistas, isso está bem claro. O budismo ensina que a compreensão é a base do amor. Quando se tem consciência, compreende-se que a outra pessoa está sofrendo. Consegue-se ver aquele sofrimento e repentinamente não se quer mais que o outro sofra. Vocês sabem que podem deixar de fazer determinadas coisas para que o outro pare de sofrer e que há outras que lhe trazem alívio.

Quando vocês começam a ver o sofrimento na outra pessoa, nasce a compaixão e vocês não mais a consideram um inimigo. Vocês podem amar o seu inimigo. No momento em que compreendem que o assim considerado inimigo sofre e desejam que ele pare de sofrer, ele deixa de ser inimigo.

Quando odiamos alguém, estamos zangados com ele, porque não o entendemos ou não entendemos o seu ambiente. O hábito de olhar profundamente faz com que cheguemos à seguinte conclusão: se crescêssemos como ele, sob as suas circunstâncias e tendo vivido no seu ambiente, seríamos exatamente iguais a ele. Esta espécie de compreensão elimina a sua raiva, a sua discriminação e subitamente aquela pessoa não é mais sua inimiga. Então você consegue amá-la.

Enquanto continuar a considerá-la sua inimiga, o amor será impossível. Amar seu inimigo só é possível quando ele ou ela não for mais visto desta maneira, e o único modo de conseguir isso é praticando a observação profunda. Aquela pessoa fez com que você sofresse bastante no passado. A conduta correta é perguntar o motivo.

Quando você está infeliz, a sua infelicidade se espalha por todos à sua volta. Se tiver aprendido a arte da compreensão e tolerância, você sofrerá muito menos. Olhar para os seres vivos com olhos compassivos proporciona-lhe uma sensação maravilhosa. Você não altera coisa alguma. Apenas põe em prática olhar com os olhos da compaixão e, repentinamente, o seu sofrimento diminui. O que são os olhos da compaixão? A função dos olhos é ver e entender. "Os olhos da compaixão" são os olhos que vêem e entendem. Se existe compreensão, a compaixão chegará por uma via bastante natural. "Os olhos da compaixão" são os olhos da atenção profunda, os olhos da compreensão.

No budismo aprendemos que a compreensão é a verdadeira base do amor. Sem compreensão, independentemente de quanto você se esforce, não poderá amar. Se disser: "Tenho que tentar amá-lo", estará cometendo uma tolice. É preciso compreendê-lo e, ao fazer isso, irá amá-lo. Uma das coisas que aprendi dos ensinamentos de Buda é que sem a compreensão o amor não é possível. Se o marido e a esposa não se compreendem, não podem se amar. Se um pai e um filho não se compreendem, causarão sofrimento um ao outro. Então a compreensão é a chave que abre a porta do amor.

Compreensão é o processo de observar atentamente. Meditar significa observar atentamente as coisas, tocá-las com extrema atenção. Uma onda precisa entender que existem outras ondas à sua volta. Cada uma tem o seu próprio sofrimento. Você não é a única pessoa que sofre. Suas irmãs e seus irmãos também sofrem. No momento em que você for capaz de ver o sofrimento deles, irá parar de censurá-los e também parar com o seu próprio sofrimento. Se você está sofrendo e acredita que isto é criado pelas pessoas ao seu redor, é conveniente olhar outra vez. A maior parte do seu sofrimento vem da falta de compreensão de si mesmo e dos outros.

No budismo, não creio que a compaixão e a bondade amorosa sejam praticadas visando à salvação individual. A verdade ensinada pelo Buda é que o sofrimento existe. Com a atenta observação do sofrimento em você mesmo e na outra pessoa, advirá o entendimento. Quando isso acontecer, o amor e a aceitação também surgirão, o que levará ao término do sofrimento.

Você talvez imagine que o seu sofrimento é maior do que o de qualquer outra pessoa ou que é o único a sofrer. Não é verdade. Quando você reconhecer o sofrimento à sua volta, ajudará a si mesmo a sofrer menos. Saia de dentro de você e observe. A época do Natal é uma excelente oportunidade para isso. O sofrimento está em mim, é evidente, mas também está em você. Está no mundo.

Houve uma pessoa que nasceu há quase dois mil anos. Tinha consciência de que o sofrimento estava nela e na sua sociedade, e não se escondeu do sofrimento. Em vez disso, pôs-se a investigar atentamente a natureza do sofrimento, as suas causas. Como teve a coragem de se manifestar, tornou-se o mestre de muitas gerações. Talvez a melhor maneira de celebrar o Natal seja habituar-se a andar com atenção, a sentar com atenção e observar tudo atentamente para descobrir que o sofrimento ainda continua ali em todos nós e no mundo. Reconhecendo o sofrimento, aliviamos nossos corações daquilo que nos vem afligindo durante tantos dias e meses.

Segundo os ensinamentos budistas, quando se presta bastante atenção ao sofrimento, compreende-se a sua natureza; então, o caminho para a felicidade se revelará. No budismo, o nirvana é descrito como paz, estabilidade e liberdade. O processo é entender que paz, estabilidade e liberdade estão à nossa disposição aqui e agora, durante vinte e quatro horas por dia. Só precisamos saber como alcançá-las e termos a vontade, a determinação para consegui-lo. É como a água, sempre disponível para a onda. Nada mais é do que a onda tocando a água e compreendendo que ela está lá.

(Do livro Jesus e Buda Irmãos – Thich Nhat Hanh)

sexta-feira, 8 de março de 2019

Cultivando as Sementes Saudáveis

A consciência existe em dois níveis, como sementes e como manifestações dessas sementes. Suponhamos que haja em nós uma semente de raiva. Se as condições forem favoráveis, essa semente pode se manifestar como uma zona de energia chamada raiva. Ela arde e nos faz sofrer muito. É muito difícil que possamos sentir alegria no momento em que se manifesta a semente da raiva.

Cada vez que uma semente tem oportunidade de se manifestar, ela produz novas sementes da mesma espécie. Se sentirmos raiva por cinco minutos, novas sementes de raiva serão produzidas e semeadas no solo do nosso inconsciente naqueles cinco minutos. É por isso que temos de ter cuidado ao selecionar o tipo de vida que levamos e as emoções que expressamos. Quando eu sorrio, as sementes do sorriso e da alegria estão brotando. Enquanto elas se manifestarem, novas sementes de sorriso e de alegria estarão sendo plantadas. Se eu, no entanto, não praticar o sorriso por alguns anos, essa semente se enfraquecerá, e eu talvez não consiga mais sorrir.

Há muitos tipos de sementes em nós, boas e más. Algumas foram plantadas durante nossa vida, e transmitidas por nossos pais, nossos antepassados, nossa sociedade. Num minúsculo grão de milho existe o conhecimento, transmitido pelas gerações anteriores, de como brotar e produzir folhas, flores e espigas. Nosso corpo e nossa mente também têm conhecimentos que lhes foram transmitidos por gerações anteriores. Nossos ancestrais e nossos pais nos legaram sementes de alegria, paz e felicidade, bem como sementes de tristeza, raiva e assim por diante.

Cada vez que praticamos viver em plena consciência, plantamos sementes saudáveis e fortalecemos as sementes saudáveis que já estão em nós. As sementes saudáveis funcionam de forma semelhante à dos anticorpos. Quando um vírus penetra em nossa corrente sanguínea, nosso corpo reage, e os anticorpos vêm cercá-lo, cuidar dele e transformá-la. O mesmo vale para nossas sementes psicológicas. Se plantarmos sementes revigorantes, salutares, curativas, elas tomarão conta das sementes negativas, mesmo que não lhes peçamos nada. Para que isso ocorra, precisamos cultivar uma boa reserva de sementes renovadoras.

Um dia, na aldeia em que moro, perdemos um amigo muito íntimo, um francês que nos ajudou bastante na instalação de Plum Village. Ele teve um ataque cardíaco e morreu durante a noite. Pela manhã soubemos do falecimento. Ele era uma pessoa extremamente afável e nos dava muita alegria sempre que passávamos alguns minutos com ele. Para nós, ele era a própria alegria e paz. Na manhã em que soubemos da sua morte, lamentamos muito não termos passado mais tempo com ele.

Naquela noite, eu não conseguia dormir. A perda de um amigo como esse me doía muito. Mas eu tinha de fazer uma conferência na manhã seguinte e precisava dormir. Por isso, pratiquei a respiração. Era uma noite fria de inverno, e eu estava deitado na cama visualizando as belas árvores do quintal da minha ermida. Anos antes, eu plantara três lindos cedros de uma variedade encontrada no Himalaia. As árvores agora estavam bem altas; e, durante a meditação andando, eu costumava parar para abraçar esses lindos cedros, inspirando e expirando. Os cedros sempre correspondiam ao meu abraço, disso tenho certeza. Fiquei, assim, deitado na cama, só inspirando e expirando, tornando-me um com a respiração e com os cedros. Senti-me muito melhor, mas mesmo assim não conseguia dormir. Afinal, invoquei ao meu consciente a imagem de uma adorável menina vietnamita chamada Pequeno Bambu. Ela chegou à Plum Village quando tinha dois anos de idade, e era tão mimosa que todos queriam segurá-la no colo, especialmente as crianças. Elas não deixavam Pequeno Bambu andar no chão! Agora ela está com seis anos, e ao abraçá-la todos se sentem renovados, maravilhados. Foi assim que a convidei a surgir no meu consciente e pratiquei a respiração e o sorriso diante da sua imagem. Em alguns instantes, adormeci profundamente.

Cada um de nós precisa de uma reserva de sementes que sejam belas, saudáveis e fortes o suficiente para nos ajudar nos momentos difíceis. Às vezes, como a dor em nós é muito forte e concreta, mesmo que tenhamos uma flor à nossa frente, não conseguimos tocá-la. Nesse momento, sabemos que precisamos de ajuda. Se tivermos um depósito repleto de sementes saudáveis, podemos convocar algumas delas a se apresentarem para nos ajudar. Se você tem uma amiga muito próxima que o compreenda bem, se você sabe que sentado ao seu lado, mesmo sem dizer nada você se sente melhor, poderá trazer essa imagem à sua consciência, e vocês dois poderão “respirar juntos". Só isso já pode ser uma grande ajuda em momentos difíceis.

Se você não vê essa amiga há muito tempo, sua imagem pode estar muito apagada para lhe ocorrer facilmente. Se você sabe que ela é a única pessoa que pode ajudá-lo a recuperar seu equilíbrio e se sua imagem dela já estiver muito fraca, só há uma coisa a fazer: compre uma passagem e vá vê-la, para que ela esteja com você não como uma semente, mas como uma pessoa real.

Se você for até ela, deverá saber como passar bem o tempo porque ele será limitado. Quando chegar, sente-se perto dela, e de imediato se sentirá mais forte. Você sabe, também, que logo terá de voltar para casa. Por isso, precisa aproveitar a oportunidade para praticar a plena consciência em cada precioso momento em que estiver ali. Sua amiga pode ajudá-lo a recuperar o equilíbrio interno, mas isso não basta. Você mesmo deve se fortalecer no íntimo para que se sinta bem quando se encontrar sozinho novamente. É por isso que, sentado ao seu lado ou caminhando com ela, você precisa praticar a plena consciência. Se não o fizer, se apenas usar sua presença para amenizar o sofrimento, a semente da sua imagem não se fortalecerá o bastante para apoiá-lo quando você estiver de volta à sua casa. Precisamos praticar a plena consciência o tempo todo para plantar em nós mesmos sementes renovadoras, curativas. Mais tarde, quando precisarmos delas, elas cuidarão de nós.

O que não está errado?

Muitas vezes perguntamos: "O que está errado?”  Ao fazê-lo, convidamos dolorosas sementes de mágoa a se manifestarem. Sentimos depressão, raiva, sofrimento e produzimos mais sementes dessa natureza. Seríamos muito mais felizes se tentássemos nos manter em contato com as sementes saudáveis, alegres, dentro de nós e à nossa volta. Deveríamos aprender a perguntar, "O que não está errado?" e a manter contato com a resposta. Há tantos elementos no mundo e no nosso corpo, sentimentos, percepções e consciência, que são saudáveis, revigorantes e medicinais. Se nos bloquearmos, se ficarmos na prisão da nossa tristeza, não entraremos em contato com esses elementos salutares.

A vida está repleta de maravilhas, como o céu azul, a luz do sol, os olhos de um bebê. Nossa respiração, por exemplo, pode ser muito prazerosa. Eu aprecio minha respiração todos os dias. Muitas pessoas, porém, só descobrem a alegria de respirar quando têm asma ou nariz entupido. Não precisamos esperar uma crise de asma para apreciar nossa respiração. A mente alerta para os preciosos elementos da felicidade é em si a prática da correta conscientização. Esses elementos estão dentro de nós e ao nosso redor. Podemos apreciá-los a cada segundo das nossas vidas. Se agirmos assim, serão plantadas em nos sementes de paz, alegria e felicidade, e elas se fortalecerão. O segredo da felicidade é a própria felicidade. Onde quer que estejamos, à hora que for, temos a capacidade de apreciar o sol, a presença do outro, a maravilha da respiração. Não temos de viajar para nenhum lugar para isso. Podemos entrar em contato com esses elementos neste exato instante.

Quando plantamos alface e ela não cresce bem não pomos a culpa na alface. Investigamos os motivos que a levaram a não se desenvolver. Pode ser que ela precise de mais adubo, mais água ou menos sol. Nunca pomos culpa na alface. No entanto, se temos problemas com nossos amigos ou com nossa família, culpamos os outros. Se soubermos como cuidar das pessoas, elas também se desenvolverão como alface. A culpa não produz nenhum efeito positivo, da mesma forma que as tentativas de persuasão pelo raciocínio e pela discussão. Essa e a minha experiência. Nada de culpa, nada de raciocínio, nada de discussão; apenas a compreensão. Se compreendermos e demonstrarmos que compreendemos, o amor se torna possível e a situação se modifica.

Um dia, em Paris, dei uma palestra sobre a ausência de culpa da alface. Depois da palestra, estava só, em meditação andando, quando virei uma esquina e ouvi uma menina de oito anos falando com a mãe, "Mamãe, lembre-se de me regar. Eu sou a sua alface." Fiquei extremamente feliz por ela ter compreendido tão bem minha mensagem. Ouvi, então, a resposta da mãe. "E, minha filha, e eu também sou sua alface. Não se esqueça de me regar também." A mãe e a filha praticavam juntas. Foi muito bonito.

A compreensão

A compreensão e o amor não são dois sentimentos, mas um só. Imagine que seu filho acorda um dia de manhã e vê que já é bem tarde. Ele resolve acordar a irmãzinha para que ela tenha tempo de tomar o café da manhã antes de ir para a escola. Acontece que ela está de mau humor e, em vez de lhe agradecer pelo fato de tê-la acordado, ela lhe diz para calar a boca, deixá-la em paz e lhe dá um pontapé. É provável que seu filho se zangue, pensando, "Fui gentil ao acordá-la. Por que ela me chutou?" Ele pode sentir vontade de ir até a cozinha para lhe contar tudo, ou até mesmo pode revidar.

No entanto, quando ele se lembrar que durante a noite a irmã tossiu muito, perceberá que ela deve estar doente. Talvez ela tenha se comportado de forma tão intratável por estar resfriada. Nesse momento, ele compreende, e sua raiva desaparece. Quando compreendemos, não podemos deixar de amar. A raiva não nos atinge. Para desenvolver a compreensão, é necessário que pratiquemos a atitude de ver todos os seres humanos com os olhos da compaixão. Quando compreendemos, amamos. E quando amamos, agimos naturalmente de forma que amenize o sofrimento das pessoas.

(Do livro “Paz a Cada Passo” – Thich Nhat Hanh)