Imediatamente depois de ordenar o ataque terrestre ao Iraque, em fevereiro de 1991, o presidente Bush falou para sua nação, “Parem o que quer que estejam fazendo neste momento e rezem pelos soldados no Golfo. Deus abençoe os EUA.” Eu suspeito que no mesmo momento muitos muçulmanos estavam também rezando para o seu Deus para proteger o Iraque e seus soldados. Como Deus sabe que nação apoiar?
Muitos oram a Deus porque querem que ele satisfaça algumas de suas necessidades. Se eles querem ter um piquenique, pedem a Deus por um dia claro, de sol. Ao mesmo tempo, fazendeiros que precisam de mais chuva rezam pelo oposto. Se o tempo ficar claro, os que fazem piquenique podem dizer, “Deus está no nosso lado, ele respondeu as nossas preces.” Mas se chove, os fazendeiros dirão que Deus ouviu as preces deles. Esta é a maneira que usualmente rezamos.
No Sermão da Montanha, Jesus ensinou, “Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus!” Aqueles que trabalham pela paz deveriam ter um coração pacífico. Quando você tem um coração pacífico, é um filho de Deus. Mas muitos que trabalham pela paz não estão em paz. Eles ainda têm raiva e frustração e seu trabalho não é realmente pacífico. Não podemos dizer que eles pertencem ao Reino de Deus.
Para preservar a paz, nossos corações devem estar em paz com o mundo, com nossos irmãos e irmãs. Quando tentamos vencer o mal com o mal, não estamos trabalhando pela paz. Se você diz, “Saddam Hussein é mau. Temos que evitar que ele continue a ser mau,” e você então usa os mesmos meios que ele tem usado, você é exatamente igual a ele. Tentar sobrepujar o mal com o mal não é o caminho para fazer paz.
Jesus também disse, “Não matarás; e quem matar estará sujeito a julgamento. Eu, porém, vos digo que todo aquele que sem motivo se irar contra seu irmão estará sujeito a julgamento; e quem proferir um insulto a seu irmão estará sujeito a julgamento do tribunal; e quem lhe chamar: ‘Tolo’, estará sujeito ao inferno de fogo.”
Jesus não disse que se você ficar com raiva de seu irmão será colocado em um lugar chamado inferno. Ele disse que se você ficar com raiva de seu irmão, você já estará no inferno. Raiva é inferno. Ele também disse que você não precisa matar com seu corpo para ser colocado na cadeia. Precisa apenas matar com sua mente e já estará lá.
No Golfo Pérsico, muitos praticaram a matança com suas mentes – iraquianos, americanos, franceses, ingleses e outros soldados. Eles sabiam que se não matassem, os soldados inimigos os matariam, portanto usavam sacos de areia que representavam seus inimigos, e segurando suas baionetas firmemente, corriam e gritavam e as enfiavam nos sacos. Eles praticaram a matança dia e noite em seus corações e mentes.
O estrago causado por este tipo de prática é enorme. Eu vi alguns segundos deste tipo de prática na TV. Mesmo se o presidente Bush não tivesse dado a ordem de uma ofensiva terrestre, muito estrago já estava sendo feito nas mentes e corações de um milhão de pessoas no Golfo. Este tipo de ferida dura muito tempo e é transmitido às futuras gerações. Se você se treina cada dia para matar e então sonha em matar durante a noite, o estrago é profundo. Se você sobreviver, suportará este tipo de cicatriz por muitos anos. Esta é uma tragédia real.
Usualmente contamos corpos para medir o estrago de uma guerra, mas não contamos este tipo de ferida nos corações e mentes de muitos soldados. Temos que ver o estrago real de longo prazo que a guerra causa. Soldados vivem no inferno dia e noite, mesmo antes de ir ao campo de batalha e também depois de voltar da guerra.
Podemos pensar paz como ausência da guerra, e que se as grandes potências reduzissem seu arsenal teríamos paz. Mas se olharmos profundamente para as armas veremos nossas mentes – nossos preconceitos, medos e ignorância. Mesmo se transportássemos todas as bombas para a Lua, as raízes da guerra ainda estariam aqui – nos nossos corações e mentes – e, mais cedo ou mais tarde, faríamos novas bombas. Trabalhar pela paz é arrancar a raiz da guerra de dentro de nós mesmos e dos homens e mulheres. Começar uma guerra e dar a oportunidade de um milhão de homens e mulheres praticarem matança dia e noite nos seus corações é plantar muitas sementes de guerra – raiva, frustração e medo de ser morto. Eu me senti muito triste quando soube que oitenta porcento dos americanos apoiavam a guerra.
“Ouvistes o que foi dito: ‘Olho por olho e dente por dente!’ Eu, porém, vos digo: Não enfrenteis quem é malvado! Pelo contrário, se alguém te dá um tapa na face direita, oferece-lhe também a esquerda! Se alguém quiser abrir um processo para tomar a tua túnica, dá-lhe também o manto!”
Este é o ensinamento de Jesus sobre vingança. Quando alguém te pedir algo, dê. Quando ele quer algo emprestado, empreste. Quantos cristãos realmente praticam isto? Há uma história sobre um soldado americano que levava um prisioneiro japonês durante a Segunda Guerra. Enquanto andavam, o americano descobriu que o soldado japonês falava inglês e que tinha sido cristão mas tinha abandonado sua fé. Portanto ele perguntou: “Porque abandonou o cristianismo? É uma excelente religião.” E o japonês disse, “Eu não podia me tornar um soldado e continuar a ser cristão. Eu não acho que um bom cristão possa se tornar soldado e matar outra pessoa.” Ele entendeu esta passagem de Mateus.
Deve haver meios de resolver nossos conflitos sem ter que apelar para a matança. Precisamos focar nossa atenção nisto. Temos que achar maneiras de ajudar as pessoas a saírem de suas situações difíceis, situações de conflito, sem ter que matar.
“Vós ouvistes o que foi dito: ‘Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo!’ Eu, porém, vos digo: Amai os vossos inimigos e rezai por aqueles que vos perseguem! Assim, vos tornareis filhos do vosso Pai que está nos céus, porque ele faz nascer o sol sobre maus e bons, e faz cair a chuva sobre os justos e injustos.”
Isto é não-discriminação. Quando você reza apenas para o seu piquenique e não pelos fazendeiros que precisam da chuva, está fazendo o oposto que Jesus ensinou. Ele disse, “ame seus inimigos e rezem por aqueles que te perseguem...” Quando olhamos profundamente para a nossa raiva, vemos que a pessoa que chamamos de inimigo está também sofrendo. Assim que vemos isso, temos a capacidade de aceitar e ter compaixão por ele. Jesus chamou isto de “amar seu inimigo”.
Quando somos capazes de amar nosso inimigo, ele não é mais nosso inimigo. A idéia de “inimigo” desaparece e é substituída pela noção de alguém sofrendo muito e que precisa de nossa compaixão. Fazer isso às vezes é mais fácil que pensamos, mas precisamos praticar. Se lermos a Bíblia, mas não praticamos não ajudará muito.
“Perdoe as nossas ofensas assim como nos perdoamos a quem nos tenha ofendido.” Todos cometem erros. Se formos plenamente atentos veremos que algumas de nossas ações no passado causaram o sofrimento de outros e algumas ações de outras pessoas nos causaram sofrimento. Queremos perdoar. Queremos começar de novo, “Você, meu irmão, me enganou no passado. Eu agora entendo que era porque você estava sofrendo e não via claramente. Não sinto mais raiva de você.” Este tipo de perdão é o fruto da consciência. Quando você está plenamente atento pode ver todas as causas que levam a outra pessoa a te fazer sofrer. Quando você vê isso, perdão e liberação surgem naturalmente. Você não pode se obrigar a perdoar. Apenas quando você entende o que aconteceu pode ter compaixão pela outra pessoa e perdoá-la.
Se o presidente Bush tivesse mais entendimento da mente do presidente Hussein, a paz poderia ser obtida. O presidente Gorbachev fez uma série de propostas que poderiam ser aceitáveis para os aliados e muitas vidas poderiam ser poupadas. Mas como a raiva estava presente, o Sr. Bush rejeitou as propostas do Sr. Gorbachev e o Sr. Hussein deu ordem para queimar os poços do Kuwait. Se o presidente Bush tivesse visto claramente o sofrimento do povo iraquiano, não teria permitido que sua raiva se expressasse ao começar a guerra. Ele pediu ao povo americano que rezasse pelos soldados aliados. Pedia a Deus que abençoasse os Estados Unidos. Ele não disse para que as pessoas rezassem pelos civis iraquianos ou mesmo do Kuwait. Ele quer Deus do lado dos Estados Unidos. (...)
Quem é o presidente Bush? Presidente Bush somos nós. Nós somos responsáveis pela maneira como ele sente, por tudo que ele faz. Oitenta porcento dos americanos o apoiaram nesta guerra. Porque acusá-lo? Nossa capacidade de amor e entendimento estava tão limitada. Não fomos pacíficos o suficiente nos nossos corações e não fomos capazes de levar amor ao coração das outras pessoas. Quando eu vejo como nos preparamos para a guerra e praticamos matança dia e noite nos nossos corações me sinto destruído. (...)
Por favor, sente, respire e olhe profundamente e verá as perdas reais, as casualidades reais que os Estados Unidos sofreram e continuam a sofrer com a Guerra do Golfo. Visualize 500.000 soldados aliados estacionados na Arábia Saudita, esperando a ordem de invadir o Iraque, pulando e gritando enquanto enfiam baionetas que representam os soldados iraquianos. Você não pode enfiar uma baioneta numa pessoa sem antes se transformar numa besta. No outro lado, um milhão de soldados iraquianos praticando a mesma coisa. Um milhão e meio de soldados praticando violência, ódio e medo e o público americano os apoiando. Eles pensaram que esta guerra era algo limpo, rápido e moral. Eles viram apenas pontes e prédios sendo destruídos, mas as casualidades reais foram as almas dos homens e mulheres que voltaram para casa depois de tantos meses praticando violência.
Como eles poderiam ter feito o que fizeram e permanecido os mesmos? Quando voltaram, os soldados choraram de alegria, eles estavam vivos! Seus pais, esposas, maridos, filhos e amigos também choraram de alegria. Mas depois de uma ou duas semanas, a guerra surgiu do seu interior, de sua consciência mais profunda e suas famílias e toda a sociedade terão que suportar sua dor por um longo tempo.
Se você é psicólogo, dramaturgo, romancista, compositor, diretor de cinema, advogado, legislador, ativista pela paz, ambientalista, por favor, olhe profundamente nas almas dos soldados que voltaram da guerra de forma que você possa ver o sofrimento real que a guerra causa, não apenas nos soldados, mas em todos. Então projete esta imagem em uma tela enorme para que toda a nação veja e aprenda. Se formos capazes de compartilhar a verdade relativa à Guerra do Golfo, seremos capazes de evitar começar outra guerra como esta no futuro. Precisamos ver o quão profundo as feridas da guerra estão. Como alguém pode chamar de vitória a Guerra do Golfo? Uma vitória de quem?
(Do livro “Love in action”– Thich Nhat Hanh)
(Traduzido por Leonardo Dobbin)
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