O budismo às vezes fala da consciência armazenadora como o oceano de consciência e as outras consciências são descritas como ondas que sobem da base do oceano. Há um vento e aquele vento provoca as outras consciências para que se manifestem. A consciência armazenadora é a fundação, a raiz. Desta base, a mente se manifesta e opera. Às vezes descansa e retorna para casa, para consciência armazenadora. Deste modo, a consciência armazenadora é o jardim e a consciência mental o jardineiro. Manas também pula da consciência armazenadora, entretanto se vira e abraça a consciência armazenadora como sua propriedade, como um objeto de seu amor. Faz isso dia e noite. É por isso que é chamada de a amante.
Quando você se apaixona por alguém, não se apaixona de verdade por ele ou ela. Você cria uma imagem que é bastante diferente de realidade. Depois de viver junto durante um ou dois anos, descobre que a imagem que tem é bastante distante da realidade. Embora manas nasça da consciência armazenadora, o modo dela olhar para a consciência armazenadora é cheio de ilusões e percepções erradas. Ela cria uma imagem da consciência armazenadora como o objeto do seu amor, e este objeto não é exatamente a realidade. Quando nós usarmos uma máquina fotográfica para tirar uma foto de alguém, a foto é só uma imagem, não é aquela pessoa. A amante pensa que ama a consciência armazenadora, mas de fato só ama a imagem que ela criou. Um objeto da consciência pode ser a coisa em si mesma, ou pode ser uma representação que você fabrica subjetivamente.
Portanto temos o jardineiro, mente, e nós temos a amante, manas. Mas a consciência mental pode ser interrompida. Por exemplo, quando nós dormimos sem sonhar, a consciência mental não está operacional. Quando estamos em um coma, a consciência mental deixa de trabalhar completamente. E há concentrações profundas quando a consciência mental pára completamente, não há nenhum pensamento, nenhum planejamento, nada - contudo a consciência armazenadora continua operando. Uma profunda meditação caminhando pode ser assim. Seu corpo está se movendo e sua consciência armazenadora continua a trabalhar, mas você não está consciente disto.
A consciência mental também pode operar independentemente das consciências dos sentidos ou pode operar em colaboração. Suponha que você seja convidado para uma exposição. Ficando em frente a uma pintura, a consciência dos olhos está funcionando. Em um primeiro momento, talvez, a consciência dos olhos esteja olhando para a arte sem qualquer pensamento, qualquer julgamento. Mas para ver o objeto dentro de si mesmo dura só um kshana, um momento breve. Logo as experiências surgem e a consciência mental propõe todos os tipos de avaliações e julgamentos e coisas assim. Isso é uma cooperação entre os dois tipos de consciência: consciência mental e consciência dos olhos. Quando a consciência mental está trabalhando com a consciência dos sentidos, é chamada consciência associativa. Se você for absorvido em reflexão profunda, você não vê, você não ouve, você não sente mais. Naquele lugar profundo de reflexão, a consciência mental está trabalhando só. Em meditação você usa normalmente a consciência mental independentemente. Nós fechamos nossos olhos, nós fechamos nossos ouvidos, nós não queremos ser perturbados pelo que nós vemos ou ouvimos. A concentração está sendo executada só pela consciência mental.
Também há vezes quando a consciência dos sentidos opera em colaboração com consciência armazenadora sem passar pela mente. É engraçado, mas acontece mesmo, muito freqüentemente. Quando você dirige seu carro, pode evitar muitos acidentes, mesmo se sua consciência mental estiver pensando em outras coisas. Você pode nem mesmo estar pensando na direção. E ainda, a maioria das vezes pelo menos, você não se acidenta. Quando você caminha, raramente tropeça (ou pelo menos só ocasionalmente!). Isto é porque as impressões e imagens providas pela consciência dos olhos são recebidas pela consciência armazenadora, e são tomadas decisões sem passar pela consciência mental.
Quando algo ou alguém se aproxima de repente de seu olho - por exemplo, se alguém está a ponto de bater em você, ou quando algo está a ponto de cair em você - você reage depressa. Aquela reação rápida, aquela decisão, não é feita pela consciência mental. Se você tiver que fazer uma manobra rápida, não é sua consciência mental que faz isto. Nós não pensamos "Oh, há uma pedra lá frente, eu tenho que desviar dela." Nós apenas agimos. Aquele instinto de autodefesa vem da consciência armazenadora.
Eu tive um sonho uma vez que ilustra este ponto. Na Ásia, antigamente, tínhamos que preparar nosso próprio arroz do campo. Nós tínhamos que remover a casca do núcleo do arroz antes que pudéssemos cozinhá-lo e comê-lo. No templo tínhamos um instrumento que removia a casca. A ação de remover a casca tinha um tipo de som muito particular, rítmico. Um dia eu estava tirando uma soneca e durante o tempo em que eu estava cochilando, ouvi o som de descascar. Mas na realidade era um estudante meu que raspava um bloco de tinta chinesa.
Para ter tinta para escrever você tem que pôr um pouco de água em um prato e raspar o bloco sólido de tinta na água. Aquele som de alguma maneira achou um modo de entrar através da minha consciência auditiva na consciência armazenadora e foi transmitido para a consciência mental. Por isso é que em meu sonho eu vi alguém descascando arroz. Mas na realidade não estava descascando, era só a preparação da tinta. Assim a impressão entra de dois modos: através da consciência mental ou através da consciência armazenadora. E tudo que passa pelas consciências dos cinco sentidos pode ser armazenado, pode ser analisado, pode ser processado pela consciência armazenadora. Não têm que sempre passar pela consciência mental. Podem ir diretamente das cinco primeiras consciências para a consciência armazenadora.
Em um quarto frio à noite, embora você não esteja sonhando, e a consciência mental não esteja funcionando, a sensação de frio penetra no corpo ao nível de consciência dos sentidos. Isto cria uma vibração no nível da consciência armazenadora, e seu corpo move o cobertor para cima até te cobrir.
Se nós estamos dirigindo, manipulando uma máquina, ou executando outras tarefas, muitos de nós permitimos que nossa consciência dos sentidos colabore com a consciência armazenadora que nos permite fazer muitas coisas sem a intervenção da consciência mental. Quando nós trazemos para nossa consciência mental este trabalho, então de repente podemos nos dar conta das formações mentais que estão surgindo.
A palavra "formação" (samskara em sânscrito) significa algo que manifesta quando muitas condições se juntam. Quando nós olharmos para uma flor, podemos reconhecer muitos dos elementos que se juntaram para a flor se manifestar naquela forma. Nós sabemos que sem a chuva não pode haver nenhuma água e a flor não pode se manifestar. Vemos que o sol também está lá. A terra, o adubo, o jardineiro, tempo, espaço, e muitos elementos se juntaram para ajudar a flor a se manifestar. A flor não tem uma existência separada; é uma formação. O sol, a lua, a montanha, e o rio são todos formações. Usando a palavra "formação" nos lembra que não há nenhum núcleo de existência separada neles. Há só uma junção de muitas, muitas condições para algo para manifestar.
Como praticantes budistas, podemos nos treinar para olhar para tudo como uma formação. Sabemos que todas as formações estão mudando todo o tempo. Impermanência é uma das marcas de realidade, porque tudo muda.
Formações que existem na consciência são chamadas formações mentais. Quando há contato entre um órgão do sentido (olhos, orelhas, nariz, boca, corpo) e o objeto, a consciência dos sentidos surge. E no momento que seus olhos primeiramente olham um objeto, ou você sente o vento em sua pele, a primeira formação mental de contato se manifesta. O contato causa uma vibração no nível da consciência armazenadora.
Se a impressão for fraca, então a vibração pára e a corrente da consciência armazenadora recupera sua tranqüilidade; você continua dormindo ou continua com suas atividades, porque aquela impressão criada através de toque não foi forte o bastante para chamar a atenção da consciência mental.
É como quando uma mosca pousa na superfície da água e faz a água ondular um pouco. Depois que a mosca sai, a superfície da água se torna completamente calma novamente. Portanto embora a formação mental se manifeste, embora a corrente de vida vibre continuamente, não há nenhuma consciência nascida na consciência mental porque a impressão foi muito fraca.
Às vezes na psicologia budista, se fala de quarenta e nove ou cinqüenta formações mentais. Em minha tradição, nós falamos de cinqüenta e uma. As cinqüenta e uma formações mentais também são chamadas concomitantes mentais; quer dizer, elas são o conteúdo verdadeiro da consciência, do mesmo modo que as gotas de água são o conteúdo verdadeiro do rio. Por exemplo, a raiva é uma formação mental. A consciência mental pode operar de tal modo que a raiva pode se manifestar nela. Naquele momento, a consciência mental está cheia de raiva, e podemos até sentir que nossa consciência mental não é nada mais que a raiva. Mas na realidade, a consciência mental não é só raiva, porque mais tarde a compaixão surge, e naquele momento, a consciência mental se torna compaixão. Consciência mental é, em vários momentos, todas as cinqüenta e uma formações mentais, sejam elas positivas, negativas ou neutras.
Sem formações mentais, não pode haver nenhuma consciência. É como se nós estivéssemos discutindo uma formação de pássaros. A formação une os pássaros, e eles voam formosamente no céu. Você não precisa de alguém para segurar os pássaros e os manter voando em uma formação. Você não precisa de um ego para criar a formação. Os pássaros apenas fazem isto. Em uma colméia, você não precisa alguém que dá a ordem para esta abelha ir para esquerda e aquela abelha ir para a direita; elas apenas se comunicam entre si e são uma colméia. Entre todas as abelhas, cada abelha pode ter uma responsabilidade diferente, mas nenhuma abelha reivindica ser a chefe de todas as abelhas, nem mesmo a rainha. A rainha não é a chefe. A função dela é simplesmente dar à luz aos ovos. Se você tem uma comunidade boa, uma Sangha boa, é como esta colméia na qual todas as partes compõem o todo, sem líder, nenhum chefe.
Quando nós dizemos que está chovendo, queremos dizer que o ato de chover está acontecendo. Você não precisa de alguém para executar o ato de chover. Não é que exista a chuva, e aquele que faz a chuva cair. Na realidade, quando você diz que a chuva está caindo, é muito engraçado, porque se não estivesse caindo, não seria chuva. No nosso modo de falar, nós estamos acostumados a ter um sujeito e um verbo(...). Mas, olhando profundamente, nós não precisamos de um "chovedor" nós só precisamos da chuva. Chovendo e chuva são a mesma coisa. A formação de pássaros e os pássaros são o mesmo - lá nenhum "ego", nenhum chefe está envolvido.
Há uma formação mental chamada vitarka, "pensamento inicial". Quando usarmos o verbo "pensar", precisamos de um sujeito do verbo: eu penso, você pensa, ele pensa. Mas, realmente, você não precisa de um sujeito para um pensamento a ser produzido. Pensando sem um pensador - isto é absolutamente possível. Pensar é pensar em algo. Perceber é perceber algo. O que percebe e o objeto que é percebido são um.
Quando Descartes disse, "penso, logo existo" o ponto dele era que se eu pensar, deve haver um "eu" para o pensar ser possível. Quando ele fez a declaração "penso" ele acreditou que pudesse demonstrar que o "eu" existia. Nós temos o hábito forte de acreditar em um ego, um eu. Mas, observando muito profundamente, podemos ver que um pensamento não precisa de um pensador para ser possível. Não há nenhum pensador atrás do pensamento - há apenas o pensamento; isso é suficiente.
Agora, se o senhor Descartes estivesse aqui, nós poderíamos lhe perguntar, ”Monsieur Descartes, você diz, ‘você pensa, então você existe’, mas o que é você? Você é seu pensamento. Pensamento - isso é bastante. O pensamento se manifesta sem a necessidade de um eu por trás”.
Pensando sem um pensador. Sentindo sem aquele que sente. O que é nossa raiva sem nosso "eu"? Este é o objeto de nossa meditação. Todas as cinqüenta e uma formações mentais acontecem e manifestam sem um eu atrás delas organizando para que uma apareça, e depois para que outra apareça. Nossa consciência mental tem o hábito de se basear na ideia de um eu, em manas. Mas podemos meditar para estar mais atentos a nossa consciência armazenadora onde mantemos as sementes de todas as formações mentais que não estão se manifestando no momento em nossa mente.
Quando meditamos, praticamos olhar profundamente procurando trazer luz e claridade ao nosso modo de ver as coisas. Quando a visão do não-eu é obtida, nossa ilusão é afastada. Isto é o que nós chamamos transformação. Na tradição budista, transformação é possível com a compreensão profunda. O momento em que a visão do não-eu existe, manas, a noção de "eu sou" se desintegra, e nós nos achamos desfrutando, neste exato momento, de liberdade e felicidade.
(Traduzido do livro “Buddha Mind, Budda Body” – Thich Nhat Hanh)
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