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quinta-feira, 12 de agosto de 2021

Os Cinco Treinamentos de Plena Atenção - Quinto treinamento: Nutrição e Cura

Consciente do sofrimento causado pelo consumo inconsequente, eu me comprometo a cultivar a boa saúde física e mental em mim mesmo, em minha família e na sociedade como um todo ao me alimentar, beber e consumir de maneira consciente. Praticarei a observação profunda no que diz respeito ao meu consumo dos Quatro Tipos de Nutrientes, a saber: alimentos, impressões sensoriais, vontade e consciência. Estou determinado a não beber álcool, não fazer uso de drogas, praticar jogos de azar ou usar produtos com conteúdo tóxico, como alguns sites de internet, jogos eletrônicos, programas de TV, filmes, revistas, livros e a não me envolver em conversas com conteúdo similar. Retornarei ao momento presente como um modo de estar em contato com os elementos capazes de renovar, curar e revigorar a mim e àqueles ao meu redor – e não me deixarei arrastar ao passado pelo arrependimento e pela tristeza nem permitirei que a ansiedade, o medo e a avidez me empurrem para longe. Eu me comprometo a não tentar preencher minha solidão, ansiedade ou qualquer outro sofrimento através do consumismo. Contemplarei tanto o Interser quanto o ato de consumir de modo que preservem a paz, a alegria e o bem-estar no meu corpo, na minha consciência, e no corpo e na consciência coletivos da minha família, da sociedade e do Planeta Terra.

Quando tomamos um banho ou uma chuveirada, podemos olhar para o nosso corpo e ver que ele foi um presente dos nossos pais e dos pais deles. Ainda que muitos não queiram ter grande ligação com seus pais - estes podem ter-lhes causado muito dano -, quando se olha profundamente é impossível não ver certa identificação com eles. À medida que lavamos cada parte do nosso corpo, podemos perguntar a nós mesmos: "A quem pertence este corpo? Quem me transmitiu este corpo? O que foi transmitido?" Meditando desta forma, descobriremos que há três componentes: o transmissor, aquilo que é transmitido e aquele que recebe a transmissão. O transmissor são nossos pais. Nós somos a continuação de nossos pais e de seus ancestrais. O objeto da transmissão é o nosso próprio corpo. E aquele que recebe a transmissão somos nós. 

Se continuarmos a meditar sobre isso, veremos claramente que o transmissor, o objeto transmitido e o receptor são uma coisa só. Todos os três estão presentes no nosso corpo. Quando estamos profundamente em contato com o momento presente, podemos ver que todos os nossos ancestrais e todas as gerações futuras estão presentes em nós. Vendo isto, saberemos o que fazer e o que não fazer - para nós mesmos, pelos nossos ancestrais, pelos nossos filhos e pelos filhos destes.

Quando você olha para seu pai, provavelmente não vê de imediato que você e seu pai são um só. Você pode estar zangado com ele por muitas razões. Mas no momento em que você o compreende e ama, você percebe o vazio da transmissão. Percebe que amar a você mesmo é amar seu pai, e que amar seu pai é amar a você mesmo. Manter seu corpo e sua consciência saudáveis é fazê-lo por seus ancestrais, por seus pais e pelas gerações futuras. Você faz isso pela sua sociedade e por todos, não apenas por você mesmo. A primeira coisa que você deve ter em mente é que você não está praticando isto como uma entidade separada. Tudo quanto você ingerir, você o está ingerindo por todos. Todos os seus ancestrais e todas as gerações futuras estão ingerindo isto com você. Este é o verdadeiro significado do vazio da transmissão. O quinto treinamento para a mente alerta deveria ser praticado neste espírito.

Existem pessoas que bebem álcool e ficam embriagadas, que destroem seus corpos, suas famílias, sua sociedade. Elas deveriam abster-se de beber. Mas você que tem bebido uma taça de vinho toda semana pelos últimos trinta anos sem causar nenhum mal a você mesmo, por que deveria parar com isso? Qual é a utilidade de praticar este treinamento para a mente alerta se a ingestão de álcool não prejudica a você nem a outras pessoas? Apesar de você não ter se prejudicado durante os últimos trinta anos por beber apenas uma ou duas taças de vinho por semana, a verdade é que isto pode ter um efeito sobre seus filhos, seus netos e sua sociedade. Basta observar profundamente para constatá-lo. Você não está praticando para você sozinho, mas para todo mundo. Seus filhos podem ter uma propensão ao alcoolismo e, vendo você beber vinho toda semana, um deles pode tornar-se um alcoólatra no futuro. Se você abandonar suas duas taças de vinho, isto significa mostrar a seus filhos, a seus amigos e à sua sociedade que sua vida não é apenas para você próprio. Sua vida é para seus ancestrais, para as gerações futuras e também para sua sociedade.

Parar de beber duas taças de vinho por semana é uma prática muito profunda, mesmo que este costume não tenha trazido nenhum dano a você. Este é o discernimento de um bodhisattva, que sabe que tudo o que faz é feito para todos os seus ancestrais e para as gerações futuras. O vazio da transmissão é a base do quinto treinamento para a mente alerta. O uso de drogas por tantos jovens também deveria acabar através desse modo de pensar.

Quando somos capazes de sair da concha de nosso pequeno eu e ver que estamos inter-relacionados com todos e com tudo, observamos que cada ato nosso está ligado com a humanidade inteira, com o cosmos inteiro. Manter-se com saúde é ser gentil com seus ancestrais, com seus pais, com as gerações futuras e também com a sua sociedade. Saúde não é só a saúde corporal, mas também a saúde mental. O quinto treinamento para a mente alerta refere-se à saúde e à cura.

Consciente do sofrimento causado pelo consumo inconsequente, eu me comprometo a cultivar a boa saúde física e mental em mim mesmo, em minha família e na sociedade como um todo ao me alimentar, beber e consumir de maneira consciente. Pelo fato de você não estar fazendo isto só para você mesmo, o parar de beber uma ou duas taças de vinho por semana é verdadeiramente um ato de bodhisattva. Você faz isto por todos. Em uma festa, quando alguém lhe oferece uma taça de vinho, você pode sorrir e recusar: "Não, obrigado. Eu não bebo álcool. Eu agradeceria se me trouxesse um copo de suco ou água." Faça isto com gentileza, com um sorriso. É muito ilustrativo. Você dá um exemplo para muitos amigos, incluindo muitas crianças que estiverem presentes. Apesar de se poder fazer isto de maneira educada e discreta, é verdadeiramente o ato de um bodhisattva, dando exemplo com sua própria vida. (...)

O objeto deste treinamento para a mente alerta é o consumo responsável. Somos o que consumimos. Se olharmos profundamente para os itens que consumimos todo dia, iremos conhecer muito bem nossa natureza. Temos de comer, beber, consumir, mas se o fizermos sem a mente alerta, podemos destruir nossos corpos e a nossa consciência, mostrando ingratidão para com nossos ancestrais, pais e gerações futuras.

Quando comemos com mente alerta, estamos em estreito contato com o alimento. O alimento que comemos nos vem da natureza, dos seres vivos e do cosmos. Tocá-lo com a mente alerta é mostrar nossa gratidão. Comer com mente alerta pode ser uma grande alegria. Pegamos nossa comida com nosso garfo, olhamos para ela por um segundo antes de colocá-la na boca e então a mastigamos cuidadosa e conscientemente, pelo menos cinqüenta vezes. Se praticarmos isto, estaremos em contato com o cosmos inteiro.

Podemos ter uma dieta cuidadosa para o nosso corpo e podemos também ter uma dieta cuidadosa para nossa consciência, nossa saúde mental. Precisamos abster-nos de ingerir os tipos de "alimento" intelectual que trazem toxinas para a nossa consciência. Alguns programas de TV, por exemplo, nos educam e nos ajudam a levar uma vida mais saudável; devemos reservar algum tempo para assistir a programas como esses. Mas outros programas nos trazem toxinas; precisamos abster-nos de assistir a eles. Esta pode ser uma prática para todos os membros da família.

Sabemos que fumar cigarros não é bom para nossa saúde. Foi um trabalho árduo conseguir que os fabricantes fossem obrigados a colocar uma advertência no maço de cigarros: o cigarro pode ser prejudicial à sua saúde. Esta é uma frase contundente, mas foi necessária, porque os anúncios para promover o fumo são muito convincentes. Eles dão aos jovens a idéia de que, se não fumarem, não estão de fato vivendo intensamente. (...)

Às vezes não precisamos comer ou beber tanto como costumamos, mas isto se tornou uma espécie de vício. Nós nos sentimos muito sozinhos. A solidão é um dos tormentos da vida moderna. É semelhante ao terceiro e ao quarto treinamentos para a mente alerta - nós nos sentimos sozinhos, então nos engajamos numa conversa, ou mesmo numa relação sexual, esperando que o sentimento de solidão vá embora. Beber e comer também podem ser o resultado da solidão. Você quer comer ou se empanturrar para esquecer a solidão, mas o que você come pode trazer toxinas para o seu corpo. Quando você está sozinho, você abre a geladeira, vê TV, lê revistas ou romances ou pega o telefone e conversa. Mas o consumo sem consciência sempre piora as coisas.

Um filme pode conter muita violência, ódio e medo. Se passarmos uma hora assistindo a esse filme, vamos regar as sementes da violência, do ódio e do medo dentro de nós. Nós fazemos isso e deixamos que nossos filhos o façam também. Deveríamos fazer uma reunião familiar e discutir uma política inteligente sobre o assistir à televisão. Talvez devêssemos escrever em nossos aparelhos de TV o mesmo que está escrito nos maços de cigarros: Assistir à televisão pode ser prejudicial à sua saúde. Esta é a verdade. Algumas crianças entraram para gangues e muitas são muito violentas, em parte porque viram muita violência na televisão. Devemos ter uma política inteligente no que diz respeito ao uso da televisão em nossa família. (...)

Por sermos solitários, queremos conversar, mas nossas conversas também podem suscitar muitas toxinas. De tempos em tempos, depois de falar com alguém, sentimo-nos como que paralisados pelo que acabamos de ouvir. A mente alerta nos ajudará a eliminar o tipo de conversa que nos traz mais toxinas.

Os psicoterapeutas são aqueles que escutam profundamente os sofrimentos de seus clientes. Se eles não sabem como fazer para neutralizar e transformar a dor e o pesar neles mesmos, não serão capazes de se manter dispostos e saudáveis por longo tempo. O exercício que proponho tem três pontos: primeiro, olhe profundamente para seu corpo e para sua consciência e identifique os tipos de toxina que já estão em você. Cada um de nós tem de ser seu próprio médico, não apenas para o corpo, mas também para a mente. Depois de identificarmos as toxinas, podemos tentar expeli-las. Um modo de fazê-lo é beber muita água. Outro é a massagem: fazer o sangue chegar aonde estão as toxinas, a fim de que possa levá-las embora. Um terceiro método é inspirar profundamente ar fresco e puro. Isto leva mais oxigênio ao sangue e ajuda a expelir as toxinas de nosso corpo. Existem mecanismos no nosso corpo que tentam neutralizar e expelir essas substâncias, mas nosso corpo pode estar muito fraco para fazer o trabalho sozinho.

Enquanto fazemos estas coisas devemos parar de ingerir mais toxinas. Ao mesmo tempo que realizamos as práticas acima, examinamos nossa consciência para ver que tipos de toxinas já estão lá. Temos muita raiva, desespero, medo, ódio, ânsias e ciúmes - todas estas coisas o Buda as descreveu como venenos. O Buda falou dos três venenos básicos, designando-os como raiva, ódio e ilusão. Há muitos outros além destes, e temos de reconhecer a presença deles em nós. Nossa felicidade depende de nossa capacidade de transformá-los. Não praticamos os exercícios e por isso fomos levados por nosso estilo de vida irresponsável. A qualidade da nossa vida depende muito da quantidade de paz e alegria que pode ser encontrada em nosso corpo e em nossa consciência. Se houver muitos venenos em nosso corpo e na nossa consciência, a paz e a alegria em nós não serão fortes o suficiente para nos fazer felizes. Portanto, o primeiro passo é identificar e reconhecer os venenos que já estão em nós.

O segundo passo da prática é estar plenamente conscientes do que nosso corpo e nossa consciência estão ingerindo. Que espécies de toxinas estou colocando em meu corpo hoje? A que filmes estou assistindo hoje? Que livro estou lendo? Que revista estou olhando? Que tipos de conversa estou tendo? Tente reconhecer as toxinas.

(Do livro “Os cinco treinamentos para a mente alerta” – Thich Nhat Hanh)


segunda-feira, 8 de abril de 2019

Cuidando da Própria Raiva

No momento em que você sente raiva, você tem a tendência de acreditar que seu sentimento foi criado por outra pessoa. Você culpa esta pessoa por todo o seu sofrimento. Mas, ao fazer um exame profundo, você talvez perceba que a semente da raiva que existe em você é a principal causa do seu sofrimento. Muitas outras pessoas, quando confrontadas com a mesma situação, não ficariam com a raiva com que você fica. Elas ouvem as mesmas palavras, presenciam a mesma situação, mas são capazes de permanecer mais calmas, sem se deixarem afetar tanto pelas circunstâncias. Por que você se enraivece com tanta facilidade? Talvez isso aconteça porque a semente da raiva é muito forte, e como você não praticou os métodos destinados a cuidar bem da raiva, a semente dela pode ter sido rega da no passado com excessiva freqüência.

Todos temos uma semente da raiva nas profundezas da nossa consciência. No entanto, em alguns de nós, esta semente é maior do que nossas outras sementes como a do amor e a da compaixão. A semente da raiva pode ser maior por não ter sido cuidada através da nossa prática no passado. Por isso, como já disse, quando começamos a cultivar a energia da plena consciência, a primeira coisa que percebemos com clareza é que a principal causa do nosso sofrimento, da nossa aflição, não é a outra pessoa, e sim a semente da raiva que existe em nós. Nesse momento, paramos de considerar a outra pessoa culpada do nosso sofrimento. Compreendemos que ela é apenas uma causa secundária. Você sente um enorme alívio ao descobrir isso e começa a se sentir muito melhor. Mas a outra pessoa pode ainda estar sofrendo porque não aprendeu a cuidar da própria raiva. Quando isso acontece, está na hora de ajudar o outro.

Quando não sabemos lidar com o nosso sofrimento, deixamos que ele se derrame sobre as pessoas que estão em volta. Quando você sofre, faz com que as pessoas ao seu redor também sofram. Isso é bastante natural. É por esse motivo que temos que aprender a lidar com o nosso sofrimento, para não o espalharmos em torno de nós. Quando você é o chefe da família, por exemplo, você sabe que o bem-estar dos seus familiares é extremamente importante. Como você tem compaixão, não permite que seu sofrimento afete os que estão à sua volta. Você pratica e aprende a lidar com seu sofrimento porque sabe que nem ele nem sua felicidade são uma questão individual.

Quando você está com raiva e não quer lidar com ela, fica sem defesa, sofre, e também faz as pessoas à sua volta sofrerem. Sua primeira reação é achar que a pessoa que causou a raiva merece ser punida. Tem vontade de castigá-la porque ela fez você sofrer. Mas, depois de praticar durante dez ou quinze minutos a respiração, a meditação andando e o olhar consciente, você compreende que ela precisa de ajuda e não de punição. Esta é uma percepção justa. Essa pessoa pode ser alguém muito próximo a você sua esposa, seu marido, algum dos filhos. Se você não ajudá-la, quem o fará?

Depois então de acolher e abraçar a raiva, sentindo-se muito melhor, você nota que a outra pessoa continua a sofrer. Esta percepção gera em você um movimento em direção a ela, num grande desejo de ajudá-la. Trata-se de uma forma completamente diferente de pensar e de sentir, pois o desejo de punir simplesmente desapareceu. A raiva se transformou em compaixão.

A prática da plena consciência nos torna mais atentos e perspicazes. Esta capacidade de discernimento é fruto da prática que pode nos ajudar a perdoar e a amar. Num período de quinze minutos, ou de meia hora no máximo, a prática da plena consciência, da concentração e do discernimento é capaz de libertar você da raiva, enchendo seu ser de amor.

Quando você entende o sofrimento da outra pessoa, você é capaz de transformar seu desejo de punir, passando apenas a querer ajudá-la. Quando isso acontece, você sabe que sua prática teve êxito. Você é um bom jardineiro.

Dentro de cada um de nós existe um jardim, e cada praticante precisa voltar para dentro de si mesmo e cuidar dele. Talvez no passado você tenha se dado conta disso. Agora, então, precisa saber o que está acontecendo no seu jardim e procurar colocar tudo em ordem. Restaure a beleza e restabeleça a harmonia do seu jardim. Muitas pessoas se encantarão com seu jardim se ele for bem cuidado.

Quando éramos crianças, aprendemos a respirar, a andar, sentar, comer e falar. Fizemos tudo isso instintivamente sem pensar. O que eu proponho agora é que tomemos consciência dos nossos atos para renascermos espiritualmente. Para isso, temos que aprender a respirar de novo, de um modo consciente. Aprender a andar de novo, conscientemente. Aprender a ouvir de novo, com consciência e compaixão. Aprender a falar de novo, com a linguagem do amor, para honrar nosso compromisso original. Dizer a nossa verdade, com respeito e suavidade, e acolher a do outro: "Meu amor, estou sofrendo. Estou com raiva. Quero que você saiba disso".

Esta frase expressa a fidelidade ao nosso compromisso. Meu amor, estou fazendo o melhor que posso. Estou cuidando da minha raiva. Para o meu bem e para o seu. Não quero explodir, destruir a mim e a você. Estou fazendo o melhor que posso." Esta lealdade provocará respeito e confiança na outra pessoa. E finalmente diremos: "Meu amor, preciso da sua ajuda." Esta é uma declaração muito poderosa, porque, quando estamos com raiva, geralmente temos a tendência de dizer: "Não preciso de você, não quero te ver pela frente." Se você puder dizer as três frases anteriores com sinceridade, do fundo do coração, o outro passará por uma transformação. Não duvide dos efeitos dessa prática.

Com o seu comportamento, você consegue influenciar a outra pessoa e incentivá-la a começar a praticar. Ela pensará e sentirá: "Meu parceiro está sendo fiel falando a verdade. Ele está de fato tentando fazer o melhor possível. Preciso fazer a mesma coisa." Isso significa que, quando cuidamos bem de nós mesmos, estamos cuidando bem da pessoa que amamos. O amor por nós mesmos é a base da nossa capacidade de amar o outro. Se não cuidamos bem de nós mesmos, se não estamos felizes e tranquilos, não podemos fazer a felicidade de mais ninguém. Não podemos ajudar nossos seres queridos, não podemos amá-los. Nossa capacidade de amar uma outra pessoa depende totalmente da nossa capacidade de amar e cuidar bem de nós mesmos.

Nossos ferimentos podem ter sido causados pelo nosso pai ou nossa mãe. Eles repassaram o que sofreram quando crianças. Como não sabiam a forma de curar as feridas da infância, eles as transmitiram para nós. Se não soubermos como transformar e curar nossos próprios ferimentos, vamos transmiti-los para nossos filhos e netos. É por isso que temos que voltar à criança ferida que existe dentro de nós para ajudá-la a ficar curada.

Às vezes, essa criança precisa de toda a nossa atenção. Ela pode emergir das profundezas da nossa consciência pedindo atenção. Se você estiver consciente, ouvirá a voz dela pedindo ajuda. Quando isso acontece, é hora de desligar-se de tudo em torno e voltar-se para dentro, acolhendo e abraçando carinhosamente a criança ferida dentro de você. Respire conscientemente dizendo: "Ao inspirar o ar, volto-me para minha criança ferida; ao soltar o ar, cuido amorosamente da minha criança ferida." Você precisa praticar e se voltar para a sua criança ferida todos os dias, abraçando-a com carinho, falando com ela. E você também pode escrever uma carta para ela dizendo que reconhece sua presença e fará tudo que estiver ao seu alcance para curar seus ferimentos.

(Do livro “Aprendendo a lidar com a raiva” de Thich Nhat Hanh)

segunda-feira, 1 de abril de 2019

Agora é a Hora de Apenas Ouvir

Nós nos comunicamos para sermos compreendidos e entender os outros. Se estamos conversando e ninguém está nos ouvindo (talvez nem mesmo nós mesmos), não estamos nos comunicando de forma eficaz. Existem duas chaves para uma comunicação efetiva e verdadeira. A primeira é a escuta profunda. A segunda é a fala amorosa. Escuta profunda e fala amorosa são os melhores instrumentos que conheço para estabelecer e restaurar a comunicação com os outros e aliviar o sofrimento.

Todos nós queremos ser entendidos. Quando interagimos com outra pessoa, especialmente se não praticamos a consciência do nosso próprio sofrimento e ouvimos bem a nós mesmos, estamos ansiosos para que os outros nos entendam imediatamente. Queremos começar nos expressando. Mas falar primeiro assim normalmente não funciona. Ouvir profundamente precisa vir primeiro. Praticar a atenção plena do sofrimento - reconhecendo e abraçando o sofrimento em si mesmo e na outra pessoa - dará origem ao entendimento necessário para uma boa comunicação. Quando ouvimos alguém com a intenção de ajudar essa pessoa a sofrer menos, isso é uma escuta profunda.

Quando ouvimos com compaixão, não somos pegos em julgamento. Um julgamento pode se formar, mas nós não nos apegamos a isso. A audição profunda tem o poder de nos ajudar a criar um momento de alegria, um momento de felicidade e para nos ajudar a lidar com uma emoção dolorosa.

Ouvir profundamente é uma prática maravilhosa. Se você pode ouvir por trinta minutos com compaixão, você pode ajudar a outra pessoa a sofrer muito menos. Se você não praticar plena atenção da compaixão, não poderá ouvir muito. A atenção plena da compaixão significa que você ouve com apenas uma intenção - ajudar a outra pessoa a sofrer menos. Sua intenção pode ser sincera, mas se você não praticou primeiramente ouvindo a si mesmo e não praticou a atenção plena da compaixão, pode perder rapidamente sua capacidade de ouvir.

A outra pessoa pode dizer coisas cheias de percepções erradas, amarguras, acusações e culpas. Se não praticarmos a atenção plena, suas palavras provocarão irritação, julgamento e raiva em nós, e perderemos nossa capacidade de ouvir com compaixão. Quando irritação ou raiva surgem, perdemos nossa capacidade de ouvir. É por isso que temos que praticar, para que durante todo o tempo de ouvir, a compaixão possa permanecer em nossos corações. Se pudermos manter nossa compaixão viva, as sementes de raiva e julgamento em nossos corações não serão regadas e não brotarão. Temos que nos treinar primeiro para podermos ouvir a outra pessoa.

Tudo bem se você não estiver pronto para ouvir em determinado momento. Se a qualidade da sua audição não for boa o suficiente, é melhor pausar e continuar outro dia. não se esforce muito. Pratique a respiração consciente e a caminhada consciente até que esteja pronto para realmente ouvir a outra pessoa. Você pode dizer: "Quero ouvi-lo quando estiver no meu melhor. Tudo bem se continuarmos amanhã?

Então, quando estivermos prontos para ouvir profundamente, podemos ouvir sem interromper. Se tentarmos interromper ou corrigir a outra pessoa, transformaremos a sessão em um debate e isso arruinará tudo. Depois de ouvirmos profundamente e permitirmos que a outra pessoa expresse tudo em seu coração, teremos a chance de, mais tarde, lhe fornecer um pouco da informação de que ele precisa para corrigir sua percepção - mas não agora. Agora apenas ouvimos, mesmo que a pessoa diga coisas erradas. É a prática da atenção plena da compaixão que nos mantém ouvindo profundamente.

Você tem que ter tempo para olhar e ver o sofrimento na outra pessoa. Você deve estar preparado. A escuta profunda tem apenas um propósito: ajudar os outros a sofrer menos. Mesmo que a pessoa diga coisas erradas, expresse amargura ou culpa, continue a ouvir com compaixão enquanto puder. Você pode dizer isso para si mesmo como um lembrete:

Estou ouvindo essa pessoa com um único propósito: dar a essa pessoa a chance de sofrer menos.

Mantenha o propósito único de ouvir profundamente em seu coração e em sua mente. Enquanto a energia da compaixão estiver te habitando, você estará seguro. Mesmo que o que a outra pessoa diga tenha muitas percepções errôneas, amargura, raiva, culpa e acusação, você está realmente seguro.

Lembre-se de que o discurso da outra pessoa pode se basear em preconceitos e mal-entendidos. Você terá uma chance depois de oferecer algumas informações para que ele ou ela possa corrigir sua percepção, mas não agora. Agora é a hora de ouvir. Se você puder manter viva sua consciência de compaixão por até trinta minutos, estará habitado pela energia da compaixão e estará a salvo. Enquanto a compaixão estiver presente, você poderá ouvir com equanimidade.

Você sabe que a outra pessoa está sofrendo. Quando não sabemos como lidar com o sofrimento dentro de nós, continuamos sofrendo e fazemos com que as pessoas ao nosso redor sofram. Quando outras pessoas não sabem como lidar com o sofrimento, elas se tornam vítimas. Se você absorve seu julgamento, medo e raiva, você se torna sua segunda vítima. Mas se você puder ouvir profundamente, entendendo que o que eles estão dizendo vem do sofrimento, então você está protegido por sua compaixão.

Você só quer ajudá-los a sofrer menos. Você não os culpa nem os julga mais.

(Do livro “The Art of Communicating” – Thich Nhat Hanh)

quarta-feira, 1 de agosto de 2018

O Dedo Não é a Lua

Uma tarde Sariputta e Moggallana trouxeram um amigo, o asceta Dighanakha, para conhecer o Buda. Dighanakha era tão conhecido quanto Sanaya. Ele também era tio de Sariputta. Quando soube que seu sobrinho tinha se tornado um discípulo do Buda, ficou curioso para aprender sobre os ensinamentos do Buda. Quando pediu a Sariputta e Moggallana para explicar-lhe os ensinamentos, eles sugeriram que ele se encontrasse diretamente com o Buda.

O Buda sorriu e perguntou, “Você aprova de coração a sua doutrina de não acreditar em doutrinas? Você acredita na sua doutrina de incredulidade?”

De certa forma surpreso, Dighanakha respondeu, “Gautama, se eu acredito ou não, não tem importância.”

O Buda falou gentilmente, “Uma vez que a pessoa é capturada pela crença em uma doutrina, ele perde sua liberdade. Quando se torna dogmática, a pessoa acredita que sua doutrina seja a única verdade e que as outras doutrinas sejam heresias. Todas as disputas e conflitos surgem dessas visões estreitas. Elas podem se alongar sem fim, perdendo tempo precioso e às vezes até levando a guerras. Apego a visões é o grande impedimento no caminho espiritual. Quando é limitado por visões estreita , uma pessoa se torna tão confusa que não é mais possível deixar a porta da verdade aberta.”

“Deixe-me contar a história de um jovem viúvo que vivia com seu filho de 5 anos. Ele gostava de seu filho mais que da própria vida. Um dia ele deixou seu filho em casa enquanto viajou em negócios. Quando ele se foi, piratas vieram, roubaram e queimaram toda a vila. Eles seqüestraram seu filho. Quando o homem voltou, encontrou o cadáver queimado de uma criança deitada ao lado de sua casa queimada. Ele assumiu que seria o cadáver de seu filho.  Ele chorou em lamento e cremou o que restou do corpo. Como ele amava muito seu filho, colocou as cinzas numa sacola que carregava com ele onde quer que fosse.”

“Muitos meses depois, seu filho conseguiu escapar dos piratas e voltou para casa. Ele chegou no meio da noite e bateu na porta. Naquele momento o pai estava abraçado à sacola com as cinzas e chorando. Ele se recusou a abrir a porta mesmo quando a criança gritou que era seu filho. Ele acreditava que seu filho estava morto e que a criança batendo na porta era alguma criança da vizinhança zombando da sua dor. Finalmente, seu filho não teve nenhuma alternativa a não ser ir embora sozinho. Portanto o pai e o filho se perderam para sempre.”

“Veja meu amigo, se estamos apegados a alguma visão, e nos agarramos a ela como sendo a verdade absoluta, podemos algum dia nos encontrar em uma situação similar a do jovem viúvo. Achando que já possuímos a verdade, seremos incapazes de abrir nossas mentes para receber a verdade, mesmo que ela bata na nossa porta.”

Dighanakha perguntou, “Mas qual é o seu ensinamento? Se alguém segue o seu ensinamento será capturado por visões estreitas?”

“Meus ensinamentos não são uma doutrina ou uma filosofia. Não é o resultado de um pensamento discursivo ou uma conjectura mental como várias filosofias que debatem se a essência fundamental do universo é fogo, água, terra e vento ou espírito, ou se o universo é finito ou infinito, temporal ou eterno. Pensamento discursivo e conjecturas mentais são como formigas movendo-se lentamente ao redor da borda de uma tigela – nunca vão a lugar nenhum.”

“Meus ensinamentos não são uma filosofia. É o resultado da experiência direta. Você pode confirmá-los pela sua própria experiência. Eu ensino que todas as coisas são impermanentes e sem um eu separado. Isto eu aprendi da minha experiência direta. Você pode também. Eu ensino que todas as coisas dependem de todas as outras para surgir, desenvolver e passar. Nada é criado de uma fonte original e única. Eu experimentei diretamente esta verdade e você também pode. “

“Meu objetivo não é explicar o universo, mas ajudar a guiar outros a ter uma experiência direta da realidade. Palavras não podem descrever a realidade. Apenas a experiência direta nos habilita a ver a verdadeira face da realidade.”

Dighanakha exclamou, “Maravilhoso, maravilhoso, Gautama! Mas o que aconteceria se uma pessoa percebesse seus ensinamentos como um dogma?”

O Buda ficou quieto por um momento e depois acenou com a cabeça. “Dighanakha, isto é uma pergunta muito boa. Meus ensinamentos não são um dogma ou uma doutrina, mas não há dúvidas que algumas pessoas irão tomá-los como tal. Eu devo declarar claramente que meus ensinamentos são como um dedo apontando para a Lua e não a própria Lua. Uma pessoa inteligente faz uso do dedo para ver a Lua. Uma pessoa que apenas olha o dedo e a toma pela Lua, nunca verá a Lua real. “

“Meus ensinamentos são um meio de prática, não algo para se agarrar e adorar. Meus ensinamentos são como uma balsa usada para atravessar o rio. Apenas um tolo carregaria a balsa ao andar pela outra margem depois de tê-la alcançado, de ter alcançado a margem da liberação.”

Dighanakha juntou as palmas de suas mãos. “Por favor, Senhor Buda me mostre como ser liberado de sentimentos dolorosos.”

O Buda disse, “Há três tipos de sentimentos – agradáveis, desagradáveis e neutros. Todos os três tem raiz nas percepções da mente e corpo. Sentimentos surgem e vão embora como qualquer outro fenômeno material ou mental. Eu ensino o método de olhar em profundidade de forma de iluminar a natureza e a origem dos sentimentos, sejam agradáveis, desagradáveis ou neutros. Quando você pode ver a origem de seus sentimentos, entenderá a sua natureza. Verá que sentimentos são impermanentes e gradualmente permanecerá imperturbável pelo seu surgimento e também quando forem embora.”

“Quase todos os sentimentos dolorosos têm sua origem no modo errado de olhar a realidade. Quando você arranca visões errôneas, o sofrimento cessa. Visões errôneas fazem com que as pessoas considerem a impermanência como permanente. Ignorância é a fonte de todo o sofrimento. Praticamos o caminho da consciência de forma a superar a ignorância. A pessoa tem que olhar em profundidade para as coisas de forma a penetrar na sua verdadeira natureza. A pessoa não pode vencer a ignorância através de orações e oferendas.”

Sariputta, Moggallana, Kaludayi, Nagasamala e Channa todos ouviram o Buda explicar estas coisas a Dighanakha. Sariputta foi capaz de pegar o significado das palavras do Buda mais profundamente. Ele sentiu sua própria mente brilhar como um sol. Incapaz de expressar sua alegria, ele juntou as palmas de suas mãos e se prostrou diante do Buda. Moggallana se prostrou também. Então Dighanakha, emocionado e profundamente impressionado por tudo que o Buda disse, também se prostrou diante do Buda. Kaludayi e Channa estavam profundamente tocados por esta cena. Eles se sentiram orgulhosos por estarem associados ao Buda e sua fé e confiança no seu Caminho foi mais fortalecida.

(Do livro “Old Path White Clouds” sobre a vida do Buda – Thich Nhat Hanh)
(Traduzido por Leonardo Dobbin)

segunda-feira, 25 de junho de 2018

A Prática da Felicidade

Para mim, ser feliz significa sofrer menos. Se não fôssemos capazes de transformar a dor que existe dentro de nós, a felicidade seria impossível. Muitas pessoas procuram a felicidade fora de si mesmas, mas a verdadeira felicidade precisa vir de dentro de nós. Nossa cultura tem muitas receitas de felicidade, e afirma que a atingimos quando possuímos uma grande quantidade de dinheiro, muito poder e uma elevada posição na sociedade. Mas, se você observar com cuidado, verá que numerosas pessoas ricas e famosas não são felizes. Até você já viveu esta experiência: depois de alcançar um bem material que desejava ardentemente, experimentou alegria durante um certo tempo, mas rapidamente voltou à insatisfação inicial, passando a desejar outra coisa. Este é um processo interminável e frustrante.

O Buda e os monges da época dele não possuíam nada, a não ser três mantos e uma tigela de comida, mas eram felizes porque tinham algo extremamente precioso: a liberdade. De acordo com os ensinamentos do Buda, a condição básica para a felicidade é a liberdade. Não estamos nos referindo aqui à liberdade política, e sim à liberdade que conquistamos quando nos libertamos da raiva, do desespero, do ciúme e das ilusões. Buda os descreve como venenos. Enquanto eles estão no nosso coração, é impossível ser feliz.

Estamos muito estruturados em nossos comportamentos. Vivemos num mundo violento e reproduzimos, desde muito cedo, sem nos darmos conta, essa violência nos pequenos gestos do cotidiano, na relação com nossos parceiros, filhos, família, companheiros de trabalho, pessoas com quem cruzamos na rua. Regamos abundantemente a semente da raiva existente dentro de cada um de nós, e nos descuidamos das sementes do amor, da compaixão, da doçura, da solidariedade. Solidificamos os hábitos agressivos e recebemos agressão de volta, num processo sem fim.

Para que essa estrutura seja desmanchada, para que as sementes positivas sejam nutridas e para que o hábito se transforme, é necessário ouvirmos muitas vezes os novos conceitos, as novas práticas, os novos ensinamentos. Por isso eles serão repetidos, para que impregnem o seu ser, condicionem uma nova consciência, comecem a se traduzir nas suas atitudes, e tragam, para você e para o mundo, a paz, a felicidade e a harmonia que todos buscamos.

Suponhamos que, numa determinada família, pai e filho estão com raiva um do outro. Eles não conseguem mais se comunicar e por isso sofrem muito: Nenhum dos dois quer permanecer preso à raiva que estão sentindo, mas não sabem como dominá-la.

Quando estamos com raiva, sofremos como se estivéssemos ardendo no fogo do inferno. Quando sentimos um grande desespero ou ciúme, estamos no inferno. Precisamos, nesses momentos, procurar um amigo ou uma amiga que nos ajude a transformar a raiva e o desespero que ardem em nós.

Ouvir com compaixão alivia o sofrimento. Quando as palavras de uma pessoa estão cheias de raiva, é sinal de que ela está sofrendo profundamente. Por sofrer tanto, ela fica cheia de amargura, torna-se agressiva e está sempre pronta a se queixar e culpar os outros por seus problemas. Por isso você acha muito desagradável escutar o que ela tem a dizer e procura evitá-la. Para compreender e transformar a raiva, precisamos aprender a ouvir com compaixão e usar palavras amorosas.

Compaixão não é pena, é solidariedade, é colocar-se no lugar do outro para compreender o que ele sente. Existe um Bodisatva um Grande Ser capaz de ouvir profundamente e com grande compaixão. Quando somos capazes de ouvir alguém com compaixão, como este Grande Ser, conseguimos aliviar o sofrimento e oferecer uma orientação concreta àqueles que nos procuram em busca de ajuda. Não tenha pressa. Fique tranqüilamente ao lado da pessoa durante o tempo que for necessário e escute o que ela tem a dizer, deixando que ela se expresse livremente. Repito, você poderá aliviar grande parte do sofrimento dela se mantiver viva a compaixão durante todo o tempo em que a estiver ouvindo.

Você precisa se concentrar bastante enquanto escuta, ouvindo com todo o seu ser: com os olhos, os ouvidos, o corpo a mente. Se você apenas fingir que está ouvindo e não se esforçar para prestar atenção com a totalidade do seu ser, a outra pessoa perceberá isso e o sofrimento dela não será aliviado. Não é fácil manter essa concentração, porque o nosso pensamento se evade muitas vezes. Mas se você respirar serena e profundamente e trouxer de volta a atenção sempre que ela se dispersar, com o desejo sincero de ajudar a pessoa a encontrar alívio, você será capaz de sustentar a compaixão enquanto estiver ouvindo. Ouvir com compaixão é uma prática muito profunda. Você não ouve para julgar ou culpar ninguém. Você só escuta porque quer que a outra pessoa sofra menos. Ela pode ser seu pai, seu filho, sua filha, seu companheiro ou alguém amigo. Ouvir a outra pessoa pode efetivamente ajudar a transformar a raiva e o sofrimento dela.

Conheço uma mulher católica que mora na América do Norte. Ela sofria muito porque seu relacionamento com o marido era extremamente difícil. O casal tinha uma formação acadêmica elevada, mas o marido estava em guerra com a mulher e os filhos, não conseguindo muitas vezes nem mesmo falar com eles. Todos na família procuravam evitá-lo, porque ele era como uma bomba prestes a explodir. A raiva dele era enorme, o que o fazia sofrer bastante. Ele achava que a mulher e os filhos o desprezavam, porque se afastavam dele. Não era desprezo o que a mulher e os filhos sentiam, era medo. Ficar perto daquele homem era perigoso, porque ele podia explodir a qualquer momento.

Certo dia, a esposa pensou em se matar porque não podia mais suportar a situação. Mas, antes de cometer suicídio, ela telefonou para uma amiga que era praticante do budismo e contou o que estava planejando. A amiga a havia convidado várias vezes para praticar a meditação, a fim de sofrer menos, mas ela sempre recusara o convite, explicando que, sendo católica, não poderia praticar ou seguir os ensinamentos budistas. Ao tomar conhecimento de que a amiga pretendia se matar, a mulher budista disse ao telefone: "Se você é de fato minha amiga, quero lhe fazer um pedido. Tome um táxi e venha até a minha casa." Quando a mulher chegou, a amiga insistiu para que ela ouvisse uma fita que continha uma palestra do darma que ensinava como restabelecer a comunicação com os outros, sobretudo os mais próximos. Deixou-a sozinha na sala e, quando voltou, uma hora e meia depois, a amiga passara por uma grande transformação.

Ela descobrira muitas coisas. Compreendera que era em parte responsável pelo próprio sofrimento e que também tinha causado um grande sofrimento ao marido, pois não fora capaz de ajudá-lo. Entendeu que a raiva do marido era causada por um grande sofrimento e que o fato de evitá-lo apenas aumentava sua dor. As palavras da fita a fizeram entender que, para ajudar a outra pessoa, ela tinha que ser capaz de ouvir com profunda compaixão. Deu-se conta de que não conseguira fazer isso nos últimos cinco anos.

Depois de ouvir a palestra do darma, a mulher sentiu um intenso desejo de ir para casa, procurar o marido e pedir-lhe que falasse de seus sentimentos, para ajudá-lo. Mas a amiga budista lhe disse:  "Não, minha amiga, você não deve fazer isso hoje, porque, para ouvir com compaixão, é preciso treinar durante pelo menos uma ou duas semanas." A budista convidou então a amiga católica para participar de um retiro, onde ela poderia aprender mais.

Quatrocentas e cinqüenta pessoas participaram do retiro, comendo, dormindo e praticando juntas durante seis dias. Praticaram a respiração consciente, permanecendo atentas ao ar que entrava e saía, para unir o corpo e a mente. Praticaram o andar consciente, concentrando-se em cada passo, e o sentar consciente, para se tornarem capazes de observar e abraçar o sofrimento à sua volta.

Além de ouvir palestras sobre o darma, todas praticaram a arte de escutar umas às outras e usar palavras amorosas. Tentaram ouvir profundamente o que a outra dizia para compreender seu sofrimento. A mulher católica entregou-se com muita seriedade e profundidade à prática, porque para ela se tratava de uma questão de vida ou morte.

Ao voltar para casa depois do retiro, ela se sentia muito calma, com o coração repleto de compaixão, querendo sinceramente ajudar o marido a desarmar a bomba que pulsava dentro dele. Ela se movia devagar, prestando atenção em seus passos e respirando lenta e conscientemente para permanecer calma e alimentar sua compaixão. O marido notou imediatamente a mudança e surpreendeu-se quando a mulher se aproximou e se sentou perto dele, algo que não fazia há cinco anos.

Ela ficou em silêncio durante talvez dez minutos e depois colocou delicadamente a mão sobre a dele, dizendo: "Querido, eu sei que você tem sofrido muito nos últimos cinco anos e sinto muito por isso. Sei que sou em grande parte responsável pelo seu sofrimento. Cometi muitos erros e lhe causei muita dor, mesmo sem desejar. Sinto de fato muitíssimo. Gostaria que você me desse a chance de recomeçar. Quero fazer você feliz, mas não tenho sabido como, e não quero mais continuar desse jeito. Por isso, querido, preciso que você me ajude a compreendê-lo melhor para poder amá-lo melhor. Por favor, me diga o que se passa no seu coração. Eu sei que você sofre muito, mas preciso conhecer seu sofrimento para não repetir os mesmos erros do passado. Se você não me ajudar, não posso fazer nada. Preciso da sua ajuda para parar de magoá-la. Tudo o que eu quero é amar você." Ao ouvi-la falando dessa maneira, ele começou a chorar. Chorou como uma criança.

Sua mulher estivera amarga durante muito tempo. Ela gritava o tempo todo, criticando-o, e suas palavras eram cheias de raiva e agressividade. Tudo o que eles faziam era brigar um com o outro. Há anos ela não falava com ele daquele jeito, com tanto amor e carinho. Quando ela viu o marido chorar, soube que tinha uma chance. A porta do coração do marido começava a se abrir de novo. Ela sabia que precisava ter muito cuidado e por isso continuou a praticar a respiração consciente. Disse apenas: "Por favor, meu querido, abra seu coração para mim. Quero aprender a fazer melhor as coisas para não continuar a cometer erros."

Toda a formação acadêmica dos dois não lhes ensinara a ouvir um ao outro com compaixão. Mas aquela noite foi um marco na vida daquele homem e daquela mulher, porque ela aprendera a ouvir com compaixão. Passaram muitas horas conversando, e este foi o início de uma feliz reconciliação.

Quando a prática é correta e adequada, poucas horas podem ser suficientes para produzir a transformação e a cura. A conversa daquela noite fez com que o marido se inscrevesse também em um retiro.

Esse retiro durou seis dias e também causou no marido uma grande transformação. Durante uma meditação do chá, ele apresentou a mulher aos outros participantes, dizendo: "Queridos amigos e companheiros, gostaria de apresentar a vocês um Bodisatva, um Grande Ser. Trata-se da minha mulher uma grande Bodisatva. Eu a fiz sofrer muito nos últimos cinco anos. Fui um completo idiota. Mas ela conseguiu mudar tudo. Ela salvou minha vida." A seguir, os dois contaram sua história e o que os levara a participar do retiro. Descreveram também como foram capazes de se reconciliar num nível profundo e renovar o amor que sentiam um pelo outro.


(Do livro “Aprendendo a lidar com a raiva”– Thich Nhat Hanh)