Consciente do sofrimento causado pela fala
inconsequente e por minha falta de habilidade em ouvir os outros, eu me
comprometo a cultivar a fala amável e a escuta compassiva para aliviar o
sofrimento, e promover a reconciliação e a paz em mim mesmo e entre as pessoas,
grupos religiosos, étnicos e nações. Sabendo que a as palavras podem criar tanto
felicidade quanto sofrimento, eu me comprometo a falar a verdade com palavras
que inspirem confiança, alegria e esperança. Ao perceber a raiva se manifestando
em mim, eu me comprometo a não falar. Praticarei a respiração e o caminhar em
plena consciência para reconhecer minha raiva e olhar com profundidade suas
raízes – especialmente no caso de percepções errôneas ou falta de compreensão do
meu próprio sofrimento e do sofrimento de outras pessoas. Falarei e escutarei de
modo a aliviar o sofrimento, tanto em mim quanto nos demais, e a resolver
situações difíceis. Eu me comprometo a não espalhar notícias das quais não tenha
certeza e a não usar palavras que possam causar divisão ou discórdia. Praticarei
a Diligência Correta como um meio de nutrir minha capacidade de compreensão,
amor, alegria e inclusão, e também para transformar gradativamente a raiva, a
violência e o medo presentes em minha consciência.
Existe um ditado vietnamita que diz: "Não
custa nada ser amável ao falar". Basta escolher com cuidado nossas palavras, e
podemos fazer as outras pessoas felizes. Usar as palavras conscientemente, com
amabilidade, é praticar a generosidade. Por isso este treinamento está
diretamente ligado ao segundo treinamento para a mente alerta. Podemos fazer
muitas pessoas felizes, praticando tão somente o modo de falar amável. Novamente
vemos o caráter de interser dos cinco treinamentos para a mente
alerta.
Muitas pessoas acham que só serão capazes de praticar a generosidade
depois que acumularem uma pequena fortuna. Conheço jovens que sonham em ficar
ricos para poderem levar a felicidade aos outros: "Quero ter o título de doutor
ou ser presidente de uma grande empresa para ganhar muito dinheiro e ajudar
muitas pessoas". Eles não percebem que normalmente é mais difícil praticar a
generosidade depois de ficar rico. Se você é motivado pela gentileza amorosa e
pela compaixão, há muitas formas de levar a felicidade aos outros agora mesmo,
começando pela maneira amável de falar. O seu modo de falar com os outros pode
dar a eles alegria, felicidade, autoconfiança, esperança, lealdade e iluminação.
O modo de falar consciente é uma prática profunda.
Avalokitesvara Bodhisattva é uma pessoa que aprendeu a arte de
escutar e falar profundamente para ajudar as pessoas a se livrarem de seu medo,
miséria e desespero. Ele é o modelo desta prática, e a porta que ele abre é
chamada "porta universal." Se praticarmos o escutar e o falar de acordo com
Avalokitesvara, também nós seremos capazes de abrir a porta universal e levar
alegria, paz e felicidade a muitas pessoas e aliviar seu sofrimento.
(...)
Durante a época do Buda, o objetivo da prática de muitas pessoas era
nascer e viver junto com Brahma. Era semelhante à prática cristã de querer ir
para o céu, para estar com Deus. "Na casa de meu Pai há muitas moradas", e você
quer viver numa dessas moradas. Para aqueles que queriam estar com Brahma, o
Buda disse: "Pratique as quatro nobres moradas: amor, compaixão, alegria e
equanimidade." Se quisermos compartilhar o ensinamento do Buda com nossos amigos
cristãos, o conteúdo é o mesmo: "Deus é amor, compaixão, alegria e
imparcialidade." Se você quer estar com Deus, pratique estas quatro moradas. Se
não as praticar, por mais que ore ou fale sobre estar com Deus, não será
possível ir para o céu. (...)
Por viver uma vida consciente, sempre contemplando o mundo, e por ser
o observador do mundo, Avalokitesvara presencia muito sofrimento. Ele sabe que
muito sofrimento nasce da fala descuidada e da incapacidade de escutar os.
outros; portanto ele pratica a fala consciente e amável e a escuta profunda.
Avalokitesvara pode ser descrito como aquele que nos ensina a melhor forma de
praticar o quarto treinamento para a mente alerta.
"Consciente do sofrimento causado pela fala inconsequente e por minha falta de habilidade em ouvir os outros, eu me comprometo a cultivar a fala amável e a escuta compassiva para aliviar o sofrimento, e promover a reconciliação e a paz em mim mesmo e entre as pessoas, grupos religiosos, étnicos e nações." Esta é exatamente a porta universal praticada por Avalokitesvara.
Nunca na história da humanidade tivemos
tantos meios de comunicação - televisão, telecomunicações, telefones, aparelhos
de fax, rádios sem fio, hot lines e red lines - mas ainda permanecemos
como ilhas. Há tão pouca comunicação entre os membros de uma família, entre os
indivíduos na sociedade e entre as nações. Sofremos de tantas guerras e
conflitos. Certamente não cultivamos a arte da escuta e da fala. Não sabemos
como escutar um ao outro. Temos pouca capacidade de manter uma conversa
inteligente ou significativa. A porta universal da comunicação deve ser aberta
novamente.
Quando não podemos nos comunicar, ficamos
doentes e, à medida que nossa doença aumenta, sofremos, e nosso sofrimento
contagia outras pessoas. Contratamos os serviços de psicoterapeutas para escutar
nosso sofrimento, mas, se eles não praticarem a porta universal, não serão bem
sucedidos. Os psicoterapeutas são seres humanos sujeitos ao sofrimento como
todos nós. Podem ter problemas com seu cônjuge, filhos, amigos e com a
sociedade. Eles também têm bloqueios internos. Talvez tenham muito sofrimento
que não pode ser partilhado nem mesmo com a pessoa mais amada de sua vida. Como
podem ficar sentados, ouvir e compreender o nosso sofrimento? Os psicoterapeutas
têm de praticar a porta universal, o quarto treinamento para a mente alerta -
escutar com atenção e falar com muito cuidado.
Se não olharmos profundamente para dentro de nós mesmos, essa prática
não será fácil. Se houver muito sofrimento dentro de você, é difícil escutar as
outras pessoas ou dizer-lhes coisas belas e agradáveis. Primeiro você tem de
olhar profundamente para a natureza da sua raiva, de seu desespero e do seu
sofrimento, a fim de se libertar e disponibilizar para os outros.
Suponhamos que seu marido tenha dito algo rude na segunda-feira, que
a magoou muito. Ele usou uma linguagem descuidada e não tem capacidade de
escutar. Se você responde na mesma hora, a partir de sua raiva e do seu
sofrimento, você se arrisca a magoá-lo também e a tornar seu sofrimento ainda
mais profundo. O que você deve fazer? Se você passar por cima da sua raiva ou
permanecer em silêncio, isto pode machucá-la, porque, se você tentar passar por
cima da raiva que está dentro de você, estará passando por cima de você mesma.
Você vai sofrer mais tarde, e seu sofrimento vai trazer mais sofrimento para o
seu parceiro.
A melhor prática do momento é inspirar e expirar para acalmar sua
raiva, para acalmar a dor: "Inspirando, eu sei que estou com raiva. Expirando,
eu acalmo meu sentimento de raiva". Basta respirar profundamente sobre sua
raiva, que você vai acalmá-la. Você está tendo plena consciência de sua raiva,
não passando por cima dela. Quando estiver calma o bastante, você poderá ser
capaz de usar uma linguagem bem consciente. De maneira amorosa e consciente,
você pode dizer: "Querido, queria que soubesse que estou zangada. O que você
disse me feriu muito, e eu quero que saiba disso". O simples fato de dizer isto
consciente e calmamente vai trazer-lhe algum alívio.
Respirando conscientemente para acalmar sua raiva, você será capaz de
dizer à outra pessoa que você está sofrendo. Durante esse momento você está
vivendo sua raiva, lidando com ela com a energia da mente alerta. Você não está
de forma alguma negando a raiva.
Quando eu falo sobre isto com psicoterapeutas, tenho certa
dificuldade. Quando eu digo que a raiva nos faz sofrer, eles consideram que a
raiva é algo negativo a ser removido. Mas eu sempre digo que a raiva é algo
orgânico, como o amor. A raiva pode tornar-se amor. Nosso adubo pode tornar-se
uma rosa. Se soubermos como cuidar do nosso adubo, podemos transformá-lo numa
rosa. Devemos considerar o lixo negativo ou positivo? Ele pode ser positivo, se
soubermos como lidar com ele. Com a raiva é a mesma coisa. Ela pode ser
negativa, quando não sabemos como lidar com ela; mas, se soubermos como lidar
com a nossa raiva, ela pode ser muito positiva. Não precisamos jogar nada
fora.
Depois de inspirar e expirar certo número de vezes para recuperar sua
calma, mesmo que sua raiva ainda esteja presente, você tem plena consciência
dela e pode dizer à outra pessoa que você está com raiva. Também pode dizer que
você gostaria de examiná-la profundamente, e gostaria que ele também a
examinasse profundamente. Então vocês podem marcar uma hora na sexta-feira à
noite para examiná-la juntos. Uma pessoa examinando as raízes do seu sofrimento
é bom, duas pessoas examinando é melhor ainda e duas pessoas examinando juntas é
a melhor opção de todas.
Eu proponho sexta à noite por duas razões. Primeira, você ainda está
zangada e, se começar a discutir agora, pode ser muito arriscado. Você pode
dizer coisas que vão piorar ainda mais a situação. De agora até sexta à noite
você pode praticar a análise profunda da natureza da sua raiva e a outra pessoa
também pode. Enquanto dirige o carro, ele pode perguntar a si mesmo: "O que
houve de tão sério? Por que ela ficou tão furiosa? Deve haver uma razão".
Enquanto você dirige, também terá chance de examiná-la profundamente. Antes de
chegar sexta à noite, um de vocês ou ambos podem ver as raízes do problema e ser
capazes de dizer tudo ao outro e pedir desculpas. Então, na sexta à noite, podem
tomar um xícara de chá juntos e curtir um ao outro. Se marcarem uma hora, ambos
terão tempo para se acalmar e analisar profundamente. Esta é a prática da
meditação. Meditação é acalmar-nos e analisar profundamente a natureza do nosso
sofrimento.
Quando chegar a noite de sexta, se o sofrimento ainda não tiver sido
transformado, vocês poderão praticar a arte de Avalokitesvara. Sentam-se juntos
e praticam a escuta profunda – uma pessoa fala e a outra escuta profundamente.
Quando você fala, vai usar a forma mais profunda da verdade e praticar a fala
amável. Somente usando esta forma de linguagem é que haverá uma chance de a
outra pessoa entender e aceitar.
Ao ouvir, você sabe que é só com a escuta profunda que você vai poder
aliviar o sofrimento da outra pessoa. Se você escutar sem dar ouvidos, você não
consegue nada. Sua presença deve ser profunda e real. Sua escuta deve ser de boa
qualidade para aliviar a outra pessoa de seu sofrimento.
Esta é a prática do quarto treinamento para a mente alerta. A segunda
razão para esperar até sexta é que, se você neutraliza este sentimento na sexta
à noite, vocês têm sábado e domingo para aproveitarem juntos.(...)
A fala pode ser construtiva ou destrutiva. Falar com consciência
plena pode trazer felicidade real; a fala sem consciência pode matar. Quando
alguém nos diz alguma coisa que nos anima e alegra, este é o maior presente que
nos pode dar. Às vezes, alguém nos diz alguma coisa tão cruel e aflitiva que
gostaríamos de fugir e cometer suicídio; perdemos toda a esperança, toda nossa
joie de vivre (alegria de viver).
As pessoas matam por causa da linguagem, do modo de falar. Quando
você defende fanaticamente uma ideologia, dizendo que esta forma de pensar ou de
organizar a sociedade é a melhor, e alguém se coloca no seu caminho, você tem de
suprimi-lo ou eliminá-lo. Isto está muito ligado ao primeiro treinamento para a
mente alerta - esse modo de falar pode matar não só uma pessoa, mas muitas.
Quando você acredita em alguma coisa com força extrema, é capaz de atirar
milhões de pessoas em câmaras de gás. Quando você usa a linguagem para promover
uma ideologia, conclamando as pessoas a matar para proteger e promover a sua
ideologia, você pode matar milhões. O primeiro e o quarto dos cinco treinamentos
para a mente alerta estão interligados.
O quarto treinamento para a mente alerta também está ligado ao
segundo treinamento para a mente alerta, sobre roubar. Assim como existe uma
"indústria do sexo", existe uma "indústria da mentira". Muitas pessoas precisam
mentir para ter sucesso como políticos ou vendedores. Um diretor de uma empresa
de comunicações me disse que se lhe fosse permitido dizer a verdade sobre os
produtos de sua companhia, as pessoas não os comprariam. Ele diz coisas
positivas sobre os produtos, mas sabe que não correspondem à verdade; evita
falar dos efeitos negativos dos produtos. Ele sabe que está mentindo e sente-se
mal com isso. Muitas pessoas estão presas a situações parecidas. Também na
política as pessoas mentem para angariar votos. É por isso que podemos falar de
uma "indústria da mentira".
(Do livro “Os cinco
treinamentos para a mente alerta” – Thich Nhat Hanh)
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