Svasti percebeu como um bhikkhu em Jetavana chamado Thera nunca falava com ninguém mais. Sempre andava sozinho. O Venerável Thera não perturbava ninguém nem violava nenhum dos preceitos e, ainda assim, parecia para Svasti que ele não vivia em genuína harmonia com o resto da comunidade. Uma vez Svasti tentou falar com ele, mas Thera foi embora sem responder. Os outros bhikkhus apelidaram ele de “aquele que vive sozinho”. Svasti frequentemente ouvia o Buda encorajar os bhikkhus a evitar a conversa irrelevante, meditar mais e desenvolver a auto-suficiência. Mas Svasti sentia que o Venerável Thera não estava vivendo o tipo de auto-suficiência que o Buda pretendia. Confuso, Svasti decidiu perguntar ao Buda sobre isto.
No dia seguinte, durante sua palestra de Dharma, o Buda chamou o Venerável Thera. Perguntou a ele: “É verdade que você prefere ficar consigo mesmo e que faz todas as coisas sozinho, evitando contato com os outros bhikkhus?”
O bhikkhu respondeu: “Sim, senhor, é verdade. Você tem nos ensinado a ser auto-suficiente e praticar estar sozinho.”
O Buda se voltou para a comunidade e disse: “Bhikkhus, eu explicarei o que é a verdadeira auto-suficiência, e qual a melhor maneira de se viver sozinho. Uma pessoa auto-suficiente é uma pessoa que habita na plena consciência. Ele está consciente do que está acontecendo no momento presente, o que está acontecendo no seu corpo, sentimentos, mente e objetos da mente. Ele sabe como olhar em profundidade para as coisas no momento presente. Ele não persegue o passado nem se perde no futuro, porque o passado não mais existe e o futuro ainda não chegou. A vida só pode acontecer no momento presente. Se perdermos o momento presente, perderemos a vida. Esta é a melhor maneira de viver sozinho.”
“Bhikkhus, o que significa ‘perseguir o passado’? Perseguir o passado significa se perder em pensamentos sobre como era sua aparência no passado, que sentimentos existiam então, que status ou posição tinha, que sofrimento ou alegria você experimentou naquele tempo. Deixar tais pensamentos surgirem agarra você firmemente no passado.”
“Bhikkhus, o que significa ‘se perder no futuro’? Se perder no futuro significa se perder em pensamentos sobre o futuro. Você imagina, tem esperança, medo ou preocupação sobre o futuro, querendo saber como se parecerá, como seus sentimentos serão, se você terá felicidade ou sofrimento. Deixar tais pensamentos surgirem agarra você firmemente no futuro.”
“Bhikkhus, retornem ao momento presente de forma a estar em contato direto com a vida e vê-la em profundidade. Se você não puder fazer contato direto com a vida, não poderá ver em profundidade. Plena consciência possibilita que você volte ao momento presente. Mas se você está escravizado pelos desejos e ansiedades sobre o que está acontecendo no presente, perderá sua plena consciência e não estará verdadeiramente presente para a vida.”
“Bhikkhus, aquele que realmente sabe como estar sozinho habita o momento presente, mesmo se está sentado no meio de uma multidão. Se uma pessoa sentada sozinha no meio da floresta não está plenamente consciente, se ele é caçado pelo passado e futuro, não está verdadeiramente sozinho.”
O Buda então recitou um gatha para sumarizar seus ensinamentos:
Não persiga o passado
Não se perca no futuro.
O passado não mais existe
O futuro ainda não chegou.
Ao olhar em profundidade para a vida como ela é
Exatamente aqui e agora,
O praticante habita
Na estabilidade e liberdade.
Nós precisamos ser diligentes hoje.
Deixar para amanhã pode ser tarde demais.
Morte vem inesperadamente.
Como podemos barganhar com ela?
O sábio é uma pessoa que sabe
Como habitar na plena consciência
Noite e dia.
Aquele que sabe
A melhor maneira de viver sozinho.
Depois de ler o gatha, o Buda agradeceu Thera e o convidou a se sentar novamente. O Buda não tinha elogiado nem criticado Thera, mas estava claro que o bhikku agora tinha uma melhor compreensão do que o Buda quis dizer por auto-suficiente ou estar sozinho.
Durante a discussão do Dharma que aconteceu depois à noite, Svasti ouviu os discípulos seniores dizer o quão importante eram as palavras do Buda daquela manhã. O Venerável Ananda repetiu o discurso do Buda, incluindo o gatha, palavra por palavra. Svasti sempre ficava surpreso com a memória de Ananda. Ananda inclusive falou com a mesma entonação do Buda. Quando Ananda terminou, Mahakaccana ficou de pé e disse: “Eu gostaria de sugerir que nós fizéssemos um sutra formal dos ensinamentos do Buda desta manhã. Eu gostaria de sugerir que o chamássemos do Sutra da Melhor Maneira de Viver Sozinho. Cada bhikku deveria memorizar este sutra e colocá-lo em prática.” (...)
A palestra de Dharma do Buda no outro dia foi muito especial. Ele esperou as crianças se sentarem quietamente e então lentamente se levantou. Ele pegou uma das flores de lótus (que as crianças haviam trazido) e a segurou em frente da comunidade. Ele não disse nada. Todos se sentavam perfeitamente imóveis. O Buda continuou a segurar a flor sem dizer nada por um longo tempo. As pessoas estavam perplexas e queriam saber o que ele estava querendo dizer com aquilo. Então o Buda olhou para toda a comunidade e sorriu.
Ele disse: “Eu tenho os olhos do verdadeiro Dharma, o tesouro dos insights maravilhosos, e eu acabei de transmiti-los para Mahakassapa.”
Todos viraram o olhar para o Venerável Kassapa e viram que ele estava sorrindo. Seus olhos não se desviavam do Buda e da flor de lótus que ele segurava. Quando as pessoas olharam de volta para o Buda, viram que ele também estava olhando para o lótus e sorrindo.
Embora Svasti se sentisse perplexo, sabia que a coisa mais importante era manter a plena atenção. Ele começou a observar sua respiração enquanto olhava para o Buda. A flor de lótus branca na mão do Buda tinha recém florescido. O Buda a segurava em um gesto extremamente gentil, nobre. Seu polegar e indicador seguravam o caule da flor que seguia o formato de sua mão. Sua mão era tão bonita quanto a flor do lótus, pura e maravilhosa. De repente, Svasti verdadeiramente viu a pura e nobre beleza da flor. Não havia nada sobre o que pensar. Bem naturalmente, um sorriso surgiu na sua face.
O Buda começou a falar. “Amigos, esta flor é uma realidade maravilhosa. Enquanto eu segurei a flor em frente de vocês, todos tiveram a chance de experimentá-la. Fazer contato com a flor é fazer contato com uma realidade maravilhosa. É fazer contato com a própria vida.”
“Mahakapassa sorriu antes de todos porque ele foi capaz de fazer contato com a flor. Enquanto os obstáculos permanecerem nas suas mentes, não serão capazes de fazer contato com a flor. Alguns de vocês se perguntaram, ‘Porque Gautama está segurando essa flor? Qual o significado de seu gesto?’ Se suas mentes estão ocupadas com tais pensamentos, vocês não podem experimentar a flor.”
“Amigos, se perder em pensamentos é uma das coisas que não nos deixam fazer verdadeiro contato com a vida. Se você é governado pela preocupação, frustração, ansiedade, raiva, ciúme, perde a chance de fazer contato real com todas as maravilhas da vida.”
“Amigos, o lótus na minha mão é apenas real para aqueles que habitam plenamente conscientes no momento presente. Se vocês não retornarem ao momento presente, a flor verdadeiramente não existe. Há pessoas que podem passar por uma floresta de sândalos sem verdadeiramente ver uma árvore. A vida é preenchida com sofrimento, mas também contém muitas maravilhas. Estejam conscientes de forma a ver ambos o sofrimento e as maravilhas da vida.”
“Ter contato com o sofrimento não significa ficar perdido nele. Ter contato com as maravilhas da vida não significa nos perdermos nelas também. Estar em contato é verdadeiramente encontrar a vida, ver a vida em profundidade. Se nós diretamente encontrarmos a vida, entenderemos sua natureza interdependente e impermanente. Graças a isto, não mais nos perderemos no desejo, raiva e ganância. Habitaremos na liberdade e liberação.
(Traduzido do livro “Old Path White Clouds” sobre a vida do Buda – Thich Nhat Hanh – por Leonardo Dobbin)
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