As "ofensas" são os erros
que cometemos contra nossas pessoas queridas. Dissemos alguma coisa, fizemos
alguma coisa ou pensamos alguma coisa. Nossas palavras, ações ou pensamentos
fizeram a outra pessoa sofrer, e estas são as graves ofensas que cometemos.
Como podemos viver de modo a perdoar todo dia os outros? Nós perdoamos porque
eles não têm bastante mente alerta, bastante compreensão, bastante amor e
porque ainda têm percepções erradas. Temos então de ser capazes de engolir
nosso ressentimento, porque também nós cometemos erros da mesma natureza contra
outras pessoas. Se quisermos que nosso Pai do céu nos perdoe, também devemos
perdoar aos outros os erros, as ofensas que acumularam.
Em nossa vida, podemos ter cometido
erros com relação a nossos pais, irmãos, irmãs e amigos e queremos ser
perdoados. Assim devemos perdoar também os defeitos, as fraquezas, as
grosserias, em primeiro lugar dos nossos familiares, de nossa família de
sangue. Isto é uma prática, isto é uma oração que executamos com nossas ações e
com nosso modo de vida. Lembremo-nos que foi o próprio Jesus que ensinou estas
palavras a seus discípulos.
Já devemos ter rezado muito, mas
talvez não tenhamos aprendido a arte mais profunda da oração. Quando temos um
problema, invocamos o Buda, invocamos os bodhisattvas, invocamos a Deus para
nos ajudar. Não há nada de errado nisto. Temos o direito de fazê-lo. Mas este
tipo de oração não é feito com as palavras da maior das orações, isto é, rezar
de tal forma a irmos além do nascimento e da morte.
Muitas vezes, quando rezamos, é para
pedir a Deus, ou a Buda, que faça alguma coisa que nós não podemos:
"Senhor Deus, meu ente querido N. está numa situação difícil. Por favor, livrai-o dessa condição
perigosa". Enviamos a Deus mensagens como esta: "Senhor, meu irmão está com
câncer. Por favor, cure-o". Em princípio, Deus sabe o que deve fazer. Mas
em geral nós queremos simplesmente ditar a Deus o que ele deveria fazer.
Procedemos como se Deus não soubesse o que é necessário, como se tivéssemos de
dizer a ele claramente o que fazer. Mas, na verdade, esta mente una é bem mais
sábia do que nós. Mais engraçado ainda é que às vezes barganhamos com o Buda ou
com Deus: "Senhor Buda, se me concederes isto, vou raspar minha
cabeça", ou: "serei vegetariano por três meses". Às vezes somos
até mais específicos quanto ao preço: "Se meu filho, ou minha filha,
passar no exame, farei oferendas a dez templos".
Mais de dez anos atrás ouvi minha
querida amiga Irmã Chan Khong rezando de maneira semelhante. Ela dizia:
"Senhor Buda, como pode ser possível para Thây viver mais tempo? Se Thây
puder viver um longo tempo, muitas pessoas vão beneficiar-se de seus
ensinamentos". (Thây era como me chamavam os meus alunos e amigos;
significa "mestre" em vietnamita.) Mesmo nestas palavras da oração há
uma idéia de barganha. Há muitas pessoas que querem gozar do benefício dos
verdadeiros ensinamentos e da prática. O coração da Irmã Chan Khong era muito
grande quando fez este tipo de oração. Achava que o ponto fraco do Buda era que
ele queria que seus ensinamentos durassem por muito tempo e que muitas pessoas
fossem libertadas por eles; por isso esses parâmetros: "Senhor Buda, se
permitires que meu mestre viva por mais dez anos, inúmeras pessoas serão
capazes de se beneficiar dos ensinamentos que ele dá". Isto não é uma
forma de barganha?
Isto não é tão óbvio como a oração:
"Se meu filho, ou minha filha, passar no exame, eu farei oferendas a dez
templos", ou: "Eu rasparei minha cabeça"? Isto soa como se,
quando raspamos a cabeça, Buda se beneficiará muito.
Se olharmos um pouco mais fundo na
oração da Irmã Chan Khong, veremos algo que é muito encantador, mas que ela na
verdade não disse: isto é, ela pensa que seu mestre é seu lugar de refúgio e
que ela ainda não está sólida o suficiente, de modo que, se ele não existir
mais, ela sentirá falta de algo. Por isso também a Irmã Chan Khong tem o mesmo
estado de espírito de todas as outras monjas mais jovens, ela quer que seu
mestre viva o maior tempo possível. Nesta oração há um pouco de egoísmo,
O desejo de não querermos ficar
sozinhos(as), sem um mestre. Queremos que nosso lugar de refúgio esteja aqui o
maior tempo possível. Não é verdade que os discípulos querem que seus mestres
vivam o maior tempo possível de modo que muitas pessoas se possam beneficiar de
seus ensinamentos e que todos os discípulos continuem a ter um lugar de
refúgio?
Como é triste quando seu mestre
morre tão logo você seja consagrado monge ou monja! Há, portanto, algo de
simpático nas palavras desta oração e não há nada de errado nela. Mas se
soubermos como olhar profundamente quando rezamos, seremos capazes de ver o que
está acontecendo nas profundezas de nossa consciência. Rezar assim pode ser
muito comovente, mas devemos olhar mais profundamente a fim de ver com clareza.
Se formos budistas, cristãos ou de outra tradição religiosa, temos em nossa
oração uma tendência geral de barganhar com Deus, com o Buda, ainda que
barganhemos de maneira muito agradável?
"Tentação" significa nossa
tendência à ganância, raiva, amargura, desconfiança, dúvida e luxúria. Alguns
cristãos chamam isto de tentações do demônio. No budismo, chamamos isto as
ações perniciosas do corpo, da linguagem e da mente, e as tentações dos cinco
sentidos: visão, audição, olfato, paladar e tato. O budismo tem outra maneira
de descrever a tentação: os três destinos perniciosos. Há o destino do reino do
espírito faminto. Um espírito faminto é alguém perpetuamente com fome de
compreensão e de amor, mas incapaz de recebê-los quando lhe são oferecidos. Há
o destino da região do inferno. No budismo, estamos na região do inferno,
quando ardemos de raiva, ódio, cobiça, inveja e outros estados perniciosos da
mente. A tentação faz parte do destino do reino animal. É verdade que os seres
humanos também são animais, mas o reino animal é o mundo daqueles que
simplesmente seguem seus desejos instintivos e cujo coração de amor e de
compreensão jamais teve chance de se desenvolver.
Minha
experiência é que somos mais
facilmente tentados nessas esferas quando estamos sós. Quando estamos
com nossa
comunidade, com nossos irmãos e irmãs, somos protegidos pela energia da
sangha
e não será tão fácil cair em tentação. E, assim, a oração pode
traduzir-se em ação e não consistir apenas de palavras. Quando temos uma
mente alerta, quando temos
uma sangha, estamos numa posição bem mais sólida e não precisamos cair
em
tentação.
Quando o Buda ainda estava neste
mundo, as pessoas começavam sua prática recitando: "Eu me refugio no
Buda". Refugiar-se significa ligar-se ao que existe de mais saudável em
nós e que nos apóia em nossas aspirações mais profundas. As pessoas não
esperaram até o Buda morrer para praticar o "refugiar-se no Buda".
Também naquela época já começaram a recitar: "Eu me refugio na
sangha". Monges, monjas e pessoas leigas sentavam-se juntos e rezavam.
Quando monges, monjas e pessoas leigas se sentam juntos e rezam, não são apenas
mais capazes de resistir à tentação, mas também aumentam e fortalecem sua
energia da mente alerta.
Hoje em dia, muitas pessoas vivem
nas regiões do inferno das drogas, da solidão e do desespero. Há também aqueles
que criam, de vários modos diferentes, o inferno para as pessoas ao redor
delas. E há também aqueles que matam, roubam, seqüestram e estupram. Há tantos
espíritos famintos vagando por aí, com fome de amor, de compreensão, de uma
família, de um ideal.
Rezamos para não cair nesses três
caminhos perniciosos. Nossa oração pode ser bem concreta, assim que tivermos
descoberto um caminho a trilhar, assim que nos tivermos refugiado na sangha e
assim que soubermos como seguir praticando um caminho espiritual. O desejo mais
profundo nesta oração é afastar-se dos caminhos da tentação e animar-se a
seguir nosso caminho espiritual. Isto é um desejo que todos nós podemos
entender.
(Do livro “A energia da oração” –
Thich Nhat Hanh)
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