Para mim, ser feliz significa sofrer menos. Se
não fôssemos capazes de transformar a dor que existe dentro de nós, a
felicidade seria impossível. Muitas pessoas procuram a felicidade fora de si
mesmas, mas a verdadeira felicidade precisa vir de dentro de nós. Nossa cultura
tem muitas receitas de felicidade, e afirma que a atingimos quando possuímos
uma grande quantidade de dinheiro, muito poder e uma elevada posição na
sociedade. Mas, se você observar com cuidado, verá que numerosas pessoas ricas
e famosas não são felizes. Até você já viveu esta experiência: depois de
alcançar um bem material que desejava ardentemente, experimentou alegria
durante um certo tempo, mas rapidamente voltou à insatisfação inicial, passando
a desejar outra coisa. Este é um processo interminável e frustrante.
O Buda e os monges da época dele não possuíam
nada, a não ser três mantos e uma tigela de comida, mas eram felizes porque
tinham algo extremamente precioso: a liberdade. De acordo com os ensinamentos
do Buda, a condição básica para a felicidade é a liberdade. Não estamos nos
referindo aqui à liberdade política, e sim à liberdade que conquistamos quando
nos libertamos da raiva, do desespero, do ciúme e das ilusões. Buda os descreve
como venenos. Enquanto eles estão no nosso coração, é impossível ser feliz.
Estamos muito estruturados em nossos
comportamentos. Vivemos num mundo violento e reproduzimos, desde muito cedo,
sem nos darmos conta, essa violência nos pequenos gestos do cotidiano, na
relação com nossos parceiros, filhos, família, companheiros de trabalho,
pessoas com quem cruzamos na rua. Regamos abundantemente a semente da raiva
existente dentro de cada um de nós, e nos descuidamos das sementes do amor, da
compaixão, da doçura, da solidariedade. Solidificamos os hábitos agressivos e
recebemos agressão de volta, num processo sem fim.
Para que essa estrutura seja desmanchada, para
que as sementes positivas sejam nutridas e para que o hábito se transforme, é
necessário ouvirmos muitas vezes os novos conceitos, as novas práticas, os
novos ensinamentos. Por isso eles serão repetidos, para que impregnem o seu
ser, condicionem uma nova consciência, comecem a se traduzir nas suas atitudes,
e tragam, para você e para o mundo, a paz, a felicidade e a harmonia que todos
buscamos.
Suponhamos que, numa determinada família, pai e
filho estão com raiva um do outro. Eles não conseguem mais se comunicar e por
isso sofrem muito: Nenhum dos dois quer permanecer preso à raiva que estão
sentindo, mas não sabem como dominá-la.
Quando estamos com raiva, sofremos como se
estivéssemos ardendo no fogo do inferno. Quando sentimos um grande desespero ou
ciúme, estamos no inferno. Precisamos, nesses momentos, procurar um amigo ou
uma amiga que nos ajude a transformar a raiva e o desespero que ardem em nós.
Ouvir com compaixão alivia o sofrimento. Quando
as palavras de uma pessoa estão cheias de raiva, é sinal de que ela está
sofrendo profundamente. Por sofrer tanto, ela fica cheia de amargura, torna-se
agressiva e está sempre pronta a se queixar e culpar os outros por seus
problemas. Por isso você acha muito desagradável escutar o que ela tem a dizer
e procura evitá-la. Para compreender e transformar a raiva, precisamos aprender
a ouvir com compaixão e usar palavras amorosas.
Compaixão não é pena, é solidariedade, é
colocar-se no lugar do outro para compreender o que ele sente. Existe um
Bodisatva um Grande Ser capaz de ouvir profundamente e com grande compaixão.
Quando somos capazes de ouvir alguém com compaixão, como este Grande Ser,
conseguimos aliviar o sofrimento e oferecer uma orientação concreta àqueles que
nos procuram em busca de ajuda. Não tenha pressa. Fique tranqüilamente ao lado
da pessoa durante o tempo que for necessário e escute o que ela tem a dizer, deixando
que ela se expresse livremente. Repito, você poderá aliviar grande parte do
sofrimento dela se mantiver viva a compaixão durante todo o tempo em que a
estiver ouvindo.
Você precisa se concentrar bastante enquanto
escuta, ouvindo com todo o seu ser: com os olhos, os ouvidos, o corpo a mente.
Se você apenas fingir que está ouvindo e não se esforçar para prestar atenção
com a totalidade do seu ser, a outra pessoa perceberá isso e o sofrimento dela
não será aliviado. Não é fácil manter essa concentração, porque o nosso
pensamento se evade muitas vezes. Mas se você respirar serena e profundamente e
trouxer de volta a atenção sempre que ela se dispersar, com o desejo sincero de
ajudar a pessoa a encontrar alívio, você será capaz de sustentar a compaixão enquanto
estiver ouvindo. Ouvir com compaixão é uma prática muito profunda. Você não
ouve para julgar ou culpar ninguém. Você só escuta porque quer que a outra
pessoa sofra menos. Ela pode ser seu pai, seu filho, sua filha, seu companheiro
ou alguém amigo. Ouvir a outra pessoa pode efetivamente ajudar a transformar a
raiva e o sofrimento dela.
Conheço uma mulher católica que mora na América
do Norte. Ela sofria muito porque seu relacionamento com o marido era
extremamente difícil. O casal tinha uma formação acadêmica elevada, mas o
marido estava em guerra com a mulher e os filhos, não conseguindo muitas vezes
nem mesmo falar com eles. Todos na família procuravam evitá-lo, porque ele era
como uma bomba prestes a explodir. A raiva dele era enorme, o que o fazia
sofrer bastante. Ele achava que a mulher e os filhos o desprezavam, porque se
afastavam dele. Não era desprezo o que a mulher e os filhos sentiam, era medo.
Ficar perto daquele homem era perigoso, porque ele podia explodir a qualquer
momento.
Certo dia, a esposa pensou em se matar porque
não podia mais suportar a situação. Mas, antes de cometer suicídio, ela
telefonou para uma amiga que era praticante do budismo e contou o que estava
planejando. A amiga a havia convidado várias vezes para praticar a meditação, a
fim de sofrer menos, mas ela sempre recusara o convite, explicando que, sendo
católica, não poderia praticar ou seguir os ensinamentos budistas. Ao tomar
conhecimento de que a amiga pretendia se matar, a mulher budista disse ao
telefone: "Se você é de fato minha amiga, quero lhe fazer um pedido. Tome
um táxi e venha até a minha casa." Quando a mulher chegou, a amiga
insistiu para que ela ouvisse uma fita que continha uma palestra do darma que
ensinava como restabelecer a comunicação com os outros, sobretudo os mais
próximos. Deixou-a sozinha na sala e, quando voltou, uma hora e meia depois, a
amiga passara por uma grande transformação.
Ela descobrira muitas coisas. Compreendera que
era em parte responsável pelo próprio sofrimento e que também tinha causado um
grande sofrimento ao marido, pois não fora capaz de ajudá-lo. Entendeu que a
raiva do marido era causada por um grande sofrimento e que o fato de evitá-lo
apenas aumentava sua dor. As palavras da fita a fizeram entender que, para
ajudar a outra pessoa, ela tinha que ser capaz de ouvir com profunda compaixão.
Deu-se conta de que não conseguira fazer isso nos últimos cinco anos.
Depois de ouvir a palestra do darma, a mulher
sentiu um intenso desejo de ir para casa, procurar o marido e pedir-lhe que
falasse de seus sentimentos, para ajudá-lo. Mas a amiga budista lhe disse: "Não,
minha amiga, você não deve fazer isso hoje, porque, para ouvir com compaixão, é
preciso treinar durante pelo menos uma ou duas semanas." A budista
convidou então a amiga católica para participar de um retiro, onde ela poderia
aprender mais.
Quatrocentas e cinqüenta pessoas participaram
do retiro, comendo, dormindo e praticando juntas durante seis dias. Praticaram
a respiração consciente, permanecendo atentas ao ar que entrava e saía, para
unir o corpo e a mente. Praticaram o andar consciente, concentrando-se em cada
passo, e o sentar consciente, para se tornarem capazes de observar e abraçar o
sofrimento à sua volta.
Além de ouvir palestras sobre o darma, todas
praticaram a arte de escutar umas às outras e usar palavras amorosas. Tentaram
ouvir profundamente o que a outra dizia para compreender seu sofrimento. A
mulher católica entregou-se com muita seriedade e profundidade à prática,
porque para ela se tratava de uma questão de vida ou morte.
Ao voltar para casa depois do retiro, ela se
sentia muito calma, com o coração repleto de compaixão, querendo sinceramente
ajudar o marido a desarmar a bomba que pulsava dentro dele. Ela se movia
devagar, prestando atenção em seus passos e respirando lenta e conscientemente
para permanecer calma e alimentar sua compaixão. O marido notou imediatamente a
mudança e surpreendeu-se quando a mulher se aproximou e se sentou perto dele,
algo que não fazia há cinco anos.
Ela ficou em silêncio durante talvez dez
minutos e depois colocou delicadamente a mão sobre a dele, dizendo:
"Querido, eu sei que você tem sofrido muito nos últimos cinco anos e sinto
muito por isso. Sei que sou em grande parte responsável pelo seu sofrimento.
Cometi muitos erros e lhe causei muita dor, mesmo sem desejar. Sinto de fato
muitíssimo. Gostaria que você me desse a chance de recomeçar. Quero fazer você
feliz, mas não tenho sabido como, e não quero mais continuar desse jeito. Por
isso, querido, preciso que você me ajude a compreendê-lo melhor para poder
amá-lo melhor. Por favor, me diga o que se passa no seu coração. Eu sei que
você sofre muito, mas preciso conhecer seu sofrimento para não repetir os
mesmos erros do passado. Se você não me ajudar, não posso fazer nada. Preciso
da sua ajuda para parar de magoá-la. Tudo o que eu quero é amar você." Ao
ouvi-la falando dessa maneira, ele começou a chorar. Chorou como uma criança.
Sua mulher estivera amarga durante muito tempo.
Ela gritava o tempo todo, criticando-o, e suas palavras eram cheias de raiva e
agressividade. Tudo o que eles faziam era brigar um com o outro. Há anos ela
não falava com ele daquele jeito, com tanto amor e carinho. Quando ela viu o
marido chorar, soube que tinha uma chance. A porta do coração do marido
começava a se abrir de novo. Ela sabia que precisava ter muito cuidado e por
isso continuou a praticar a respiração consciente. Disse apenas: "Por
favor, meu querido, abra seu coração para mim. Quero aprender a fazer melhor as
coisas para não continuar a cometer erros."
Toda a formação acadêmica dos dois não lhes
ensinara a ouvir um ao outro com compaixão. Mas aquela noite foi um marco na
vida daquele homem e daquela mulher, porque ela aprendera a ouvir com
compaixão. Passaram muitas horas conversando, e este foi o início de uma feliz
reconciliação.
Quando a prática é correta e adequada, poucas
horas podem ser suficientes para produzir a transformação e a cura. A conversa
daquela noite fez com que o marido se inscrevesse também em um retiro.
Esse retiro durou seis dias e também causou no
marido uma grande transformação. Durante uma meditação do chá, ele apresentou a
mulher aos outros participantes, dizendo: "Queridos amigos e companheiros,
gostaria de apresentar a vocês um Bodisatva, um Grande Ser. Trata-se da minha
mulher uma grande Bodisatva. Eu a fiz sofrer muito nos últimos cinco anos. Fui
um completo idiota. Mas ela conseguiu mudar tudo. Ela salvou minha vida."
A seguir, os dois contaram sua história e o que os levara a participar do retiro.
Descreveram também como foram capazes de se reconciliar num nível profundo e
renovar o amor que sentiam um pelo outro.
(Do livro “Aprendendo a lidar com a raiva”–
Thich Nhat Hanh)
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