Não-desejo significa a natureza da realidade. Como temos
percepções erradas, a realidade não pode se revelar para nós. Os exercícios de
respiração 13 a 16 ensinados pelo Buda nos ajudam a remover nossas percepções
erradas de forma que a realidade é revelada. Como percepção é sempre uma
percepção de algo, precisamos perguntar sobre a natureza de nossa percepção e a
natureza da realidade como objeto da nossa percepção.
O Buda nos advertiu para olharmos a natureza de nosso desejo
de forma que a realidade possa se revelar fortemente, e então não mais seremos
capturados em percepções erradas. Cada um de nós tem objetos de desejo, de
ganância. Acreditamos que se não obtivermos o que queremos, não poderemos ser
felizes, e perseguimos esses objetos. O Buda nos adverte para olharmos em
profundidade para o objeto, usando plena consciência e concentração, de forma
que ele revele sua verdadeira natureza.
Este é o objetivo do exercício, “Experimentando não-desejo,
eu inspiro.” Podemos desejar riqueza, acreditando que se não tivermos muito
dinheiro, não podemos ser felizes. Aqueles de nós que tem muito dinheiro sabem
que ele pode nos fazer muito infelizes. Dinheiro não é um elemento de nossa
felicidade. Com dinheiro, podemos sentir que temos poder. Este poder pode nos
trazer muito sofrimento porque está freqüentemente ligado a noções de eu,
discriminação, desilusão e ignorância. Olhando em profundidade para o objeto de
nosso desejo, nossa ganância, vemos que não é realmente um objeto a se
perseguir.
Se somos viciados em álcool, pensamos que não podemos nos
sentir bem sem ele. Precisamos olhar em profundidade para a sua natureza; como
ele é feito, o que ele vai fazer conosco e com as pessoas ao nosso redor; qual
a relação entre a bebida e nosso fígado, coração, sentimentos e consciência. Se
olharmos com profundidade suficiente, veremos que o objeto de nosso desejo não
é um elemento de nossa felicidade. Podemos sofrer tremendamente devido ao
álcool ou morrer por causa dele, mas mesmo assim o perseguimos por um longo
tempo.
O Buda usou a imagem de um homem que está sedento e vê um
copo. A água parece muito fria, fresca e doce, mas há veneno nela. Alguém
alerta ao homem para que não beba da água, “Se você beber, poderá morrer ou
ficar a beira da morte. Não beba, eu te alerto. Procure alguma outra coisa para
beber. Use qualquer coisa para matar sua sede, mas não beba isso.” Mas o homem
está tão sedento e a água é tão apelativa que ele decide que beber está OK. Ele
bebe e pensa, “Eu morrerei depois.” E ele sofre.
Acontece o mesmo com riqueza, fama, sexo e comida. Se há
comida na mesa e você deseja muito, pensando que não pode ser feliz sem ela,
mesmo se alguém te disser que você morrerá ou sofrerá muito por comê-la, você
ainda a comerá. Você está tão faminto e pensa que a felicidade não é possível a
não ser que você coma. Você pensa: “Tudo bem, morrerei porque tenho que comer
isso.” Muitos de nós têm essa atitude.
Conheço uma mulher que recebeu os Cinco Treinamentos de
Plena Atenção alguns anos atrás. Depois ela conheceu um homem na universidade e
se apaixonaram. Ele disse a ela: “Não estou feliz com minha esposa, e quando te
vejo sei que você é tudo que quero”, e ele chorava. Ele era casado e tinha um
filho e mesmo assim queria ter um caso com ela. Ele não percebeu que se fosse
em frente, causaria muito sofrimento para ela, para ele mesmo, para sua esposa
e filho. Como a mulher tinha recebido e estava praticando o Terceiro
Treinamento, ela disse: “Não, eu não posso ter uma relação com você.” Mas ela
ainda queria ter muito essa relação. Finalmente, depois da graduação, ele
voltou ao seu país. Ela se sentiu sozinha e começou a odiar os Cinco
Treinamentos. Ela disse: “Devido aos Cinco Treinamentos de Plena Atenção eu não
tive um relacionamento com ele e era exatamente o que eu queria. Ambos ficamos
com consciências limpas, mas eu ainda odeio o Terceiro Treinamento.”
Eu estou certo que se ela fosse adiante e tivesse um
relacionamento com ele, teria criado muito sofrimento para ela mesma, para ele
e muitas outras pessoas. Como ela não experimentou esse sofrimento, era
possível para ela odiar o Terceiro Treinamento. Temos que olhar em profundidade
para o objeto do desejo para ver como ele acontece e o que ele fará conosco e
com as pessoas ao nosso redor. Se tivéssemos um insight real na sua origem e
resultado, não o quereríamos, porque veríamos que ele nos traria muito
sofrimento.
Intenção e desejo, volição, é o terceiro tipo de nutriente
que aprendemos. Como mencionei antes, o Buda ofereceu a imagem de um homem
carregado a força por dois homens fortes. O homem quer viver. Não deseja
morrer. Mesmo assim os dois homens o carregam a força e desejam jogá-lo em uma
fogueira. O homem grita: “Não, não, eu não quero morrer! Quero viver! Não me
joguem no fogo.” Mesmo assim os dois homens continuam e jogam-no na fogueira. O
Buda disse que esses dois homens fortes são nosso desejo, nossa volição. Você
não quer morrer, não quer sofrer, mas devido ao seu desejo, é arrastado para o
reino do sofrimento. Olhando em profundidade para a natureza do objeto de seu
desejo com plena consciência e concentração, você descobrirá a sua natureza
verdadeira e parará de persegui-la.
Nos dias de hoje as pessoas pescam com pesos de plásticos.
Elas não usam mais insetos vivos. O peixe vê a isca. É muito apelativa. Eles
mordem e o anzol escondido os corta. Nos comportamos do mesmo modo. Temos uma
percepção errada sobre o objeto de nosso desejo. Pensamos que a vida não terá
significado, e não seremos felizes se não tivermos aquele objeto. Há milhões de
maneiras de ser feliz, mas não sabemos como abrir a porta para que a felicidade
entre. Apenas perseguimos os objetos de nosso desejo. Muitos de nós
experimentaram a realidade que quanto mais perseguimos objetos de nosso desejo,
mais sofremos.
Tenho uma boa história para contar. Imagine um riacho
descendo do alto da montanha. Ele é muito jovem e quer correr. Seu objetivo é o
oceano. Quer chegar lá tão rápido quanto possível. Quando alcança as planícies
e o campo, fica mais lento. Se torna um rio. Fluindo lentamente, começa a
refletir as nuvens e o céu. Há muitos tipos de nuvens, com diferentes formas e
cores, e o rio passa todo o tempo as perseguindo, uma depois da outra. Mas as
nuvens não ficam paradas. Elas vêm e vão. O rio chora muito, porque nenhuma das
nuvens fica com ele para sempre. As coisas são impermanentes. Ele sofre devido
a sua atitude e comportamento.
Um dia um vento forte limpou todas as nuvens e o céu ficou
extremamente azul. Não havia absolutamente nuvens. O rio pensou que a vida não
valia a pena ser vivida mais. Ele não sabia como desfrutar do céu azul. Ele o
via como vazio, e sentia que a vida não tinha significado. Esta noite ele quis
se matar. Como pode um rio se matar? De alguém não é possível se tornar
ninguém. De algo não é possível se tornar nada. Durante aquela noite ele chorou
muito. Este é o som da água batendo nas margens. Esta foi a primeira vez que
ele voltou-se para si mesmo.
Até agora, ele tinha apenas corrido para fora de si mesmo.
Ele pensava que a felicidade estava fora, não dentro. A primeira vez que voltou
a si mesmo e ouviu o som de suas lágrimas, ele descobriu algo. Ele não sabia
que um rio era feito de elementos não-rio. Ele estava perseguindo nuvens,
pensando que não poderia ser feliz sem elas, e não percebeu que ele era feito
de nuvens. O que ele estava procurando já estava dentro dele. Felicidade é
assim. Se você sabe como voltar ao aqui e agora e perceber os elementos de sua
felicidade que já estão disponíveis, não precisa mais correr.
De repente o rio percebeu que havia algo refletido nele: o
céu azul. Ele vê o quão pacífico, sólido, livre e bonito o céu é. Ele não tinha
percebido antes. Ele sabe que sua felicidade deveria ser feita de solidez,
liberdade e espaço. Ele é preenchido de felicidade porque pela primeira vez soube
como refletir o céu. Antes, ele havia somente refletido as nuvens e ignorado
completamente o céu. Esta foi uma noite de transformações profundas. Todas as
lágrimas e sofrimento foram transformados em alegria, solidez e liberdade.
Na manhã seguinte não havia vento. As nuvens retornaram.
Agora ele as reflete sem apego com equanimidade. Ele diz “Oi” cada vez que uma
nuvem aparece. Quando a nuvem se vai, ele não fica triste. Ele achou a
liberdade. Ele sabe que a liberdade é a fundação da sua felicidade. Ele
aprendeu a parar e não correr mais. Naquela noite algo maravilhosos se revelou.
A imagem da lua cheia foi refletida. Ele está muito feliz dando as mãos para as
nuvens e a lua, praticando meditação caminhando para o oceano. Cada passo,
feito em conjunto com as nuvens e a lua traz ao rio muita felicidade.
Cada um de nós é um rio. Começamos como um regato descendo
do alto da montanha, querendo correr o mais rápido possível. Então aprendemos
como ficar mais lentos um pouco, e começamos a perseguir objetos de nosso
desejo. Sofremos. Às vezes sofremos tanto que não queremos nem mais existir.
Então temos a chance de voltarmos para nós mesmos e refletir profundamente.
Percebemos que o objeto de nosso desejo é a causa de nosso desespero e das
nossas aflições. Todos os elementos da felicidade estão disponíveis no aqui e
agora. Temos tudo que precisamos. De repente conseguimos o tipo de liberdade
que nunca tivemos e somos capazes de viver cada momento de nossa vida diária
profundamente. Como nos tornamos um rio feliz, podemos ajudar muitos rios a
nossa volta a se tornarem felizes também.
(Traduzido do livro “The Path of Emancipation” – Thich Nhat
Hanh – por Leonardo Dobbin)
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