A plena consciência tem duas
funções. A primeira é entrar em contato com todas as coisas maravilhosas e
bonitas que estão ao nosso redor. A segunda é entrar em contato com as emoções
difíceis, como raiva, medo, dor e tristeza dentro de nós e a nossa volta. Plena
consciência pode nos ajudar a reconhecer estas dificuldades e transformá-las.
Não é apenas o paraíso que está disponível no aqui e agora, o inferno também
está disponível no aqui e agora. A prática da plena consciência nos ajuda a ter
contato com ambas, as maravilhas para nos nutrirmos e o sofrimento para nos
curarmos e nos transformarmos.
As pessoas tendem a achar que seu
verdadeiro lar é um lugar onde não há sofrimento, apenas felicidade. Mas este
pensamento vai contra a sabedoria do interser. Não podemos fazer crescer uma
flor de lótus sem lama. Para cultivar vegetais, precisamos composto. Qualquer
jardineiro orgânico sabe por que guardamos os restos da nossa comida e o lixo
do jardim. Este lixo é orgânico e com ele podemos fazer composto para nutrir
flores e vegetais. Sofrimento e felicidade são também orgânicos. Podemos
transformá-los em bem-estar. Este é o ensinamento do Buda sobre não-dualidade.
A flor de lótus não é possível sem a
lama. Entendimento e compaixão não são possíveis sem sofrimento. Eu nunca
gostaria de estar em um lugar onde não houvesse sofrimento, porque em tal lugar
eu não teria a chance de aprender como entender e ser compassivo. É tocando o
sofrimento que temos a chance de entender as pessoas e seu sofrimento. É entendendo
nosso próprio sofrimento e o sofrimento dos outros, que começamos a saber o que
é ser compassivo. É apenas contra o pano de fundo do sofrimento que podemos
reconhecer nossa felicidade.
Eu lembro que durante a Guerra do
Vietnã queríamos desesperadamente apenas ter um cessar-fogo por 24 horas – 24
horas sem bombas caindo, sem ninguém sendo morto. Mas se não tivéssemos vivido
em uma guerra, não saberíamos como apreciar 24 horas de paz, 24 horas sem os
horrores da guerra. Portanto, precisamos de sofrimento para reconhecer as
condições que temos para sermos felizes. Nenhuma flor pode existir sem lama.
Minha definição de lar não é um lugar onde não há sofrimento, mas um lugar onde
eu posso cultivar a compaixão.
Mesmo quando vemos muita violência,
discriminação, ódio, ciúme e ganância, se estamos equipados com entendimento e
compaixão, não sofremos. Sabemos como fazer uso do lixo de forma a nutrir as
flores e vegetais. Estamos tornando a vida mais bonita e com mais significado
através do poder do entendimento e compaixão em nós.
Entendimento e compaixão também nos
protegem. Mesmo se outros estão com raiva, são violentos e nos discriminam, não
temos que sofrer, porque entendemos e o entendimento traz a tona a compaixão.
Onde quer que haja violência, discriminação, ódio e ganância, se estamos
equipados com a Visão Correta, a sabedoria do interser e da não-discriminação,
não temos que sofrer. A dor é inevitável, mas o sofrimento é opcional.
Quando estamos protegidos pelo
entendimento e compaixão, não somos mais vítimas. Os outros podem ainda ser
vítimas de sua própria ignorância e discriminação. Estas pessoas são o objeto
da sua prática. Temos que viver de forma que possamos remover e transformar a
ignorância, discriminação, ganância e ódio deles.
Durante a Guerra do Vietnã, muitos
de nós tentaram expressar nossas preocupações. Não queríamos esta guerra onde
irmãos e irmãs se matavam com armas e ideologias estrangeiras. Ambas as forças,
comunistas e não comunistas, nos davam armas e ideologias e nos impeliam a
lutar e nos matar. Alguns de nós que éramos estudantes de Budismo começamos um
movimento chamado “Não mate seu irmão”, e nossas vozes eram silenciadas por
ambos os lados que lutavam. Tentamos falar alto, tentamos dizer ao mundo que
não queríamos a guerra, não queríamos nos matar, mas estávamos sendo forçados a
fazê-lo.
Muitos de nós que praticavam a plena
consciência, entendimento e compaixão queríamos a reconciliação, mas nossas
vozes eram silenciadas. Alguns tiveram que se imolar com fogo de forma a
transmitir nossa mensagem. Thich Quang Duc se imolou um dia. Eu estava em Nova
York quando eu vi a foto na primeira página do New York Times. Ele era um amigo
meu.
Nhat Chi Mai, uma de minha alunas,
se imolou clamando por reconciliação. Ela foi ao Templo Tu Nghiem muito cedo,
cerca de 2 ou 3 horas da manhã. Ela colocou uma estátua da Virgem Maria e a
estátua de Quan Yin, o bodosatva da compaixão, em frente dela e deixou para
trás um conjunto de cartas para o presidente do Vietnã do Norte, para o presidente
do Vietnão do Sul e para todos, para que se juntassem e parassem de se matar.
Então ela jogou gasolina no corpo e acendeu o fogo. Eu estava em Paris. Ela
deixou uma carta para mim que dizia, “Thay, não se preocupe, a paz virá. Não
sofra muito.” Ela estava na iminência de morrer, mas tentava confortar a mim,
seu professor.
Embora a maioria das pessoas não
quisesse a guerra, ela continuava. Meu livro de poesia de paz – eu gosto de
chamar poesia de paz e não poesia anti-guerra – foi condenada pelo Norte e
confiscada pelo Sul. Portanto quando a Universidade de Cornell me convidou para
ir aos Estados Unidos para uma série de palestras eu aproveitei a oportunidade
e fui para poder clamar pela paz.
Quando estamos verdadeiramente no
momento presente, podemos encontrar partes da vida que são refrescantes e
curadoras. Mas podemos encontrar também guerra, sofrimento, violência, ódio,
medo e discriminação. Quando isto acontece, podemos sentir a raiva subir. Mas
aqueles que criam a discriminação e o ódio são vítimas do medo. É o medo que é
o obstáculo. No Vietnã, naquela época e ainda hoje, quero ajudar as pessoas a
se libertarem do medo. Aqueles que lutaram no Vietnã, aqueles que lutam agora
no Iraque e no Afeganistão não são meus inimigos. Eles são aqueles que quero
ajudar. Eles são objetos da minha prática de compaixão e entendimento.
Eu não tenho inimigos.
(Do livro “Together we are one”– Thich Nhat Hanh)
(Traduzido por Leonardo Dobbin)
Nenhum comentário:
Postar um comentário