No sutra das cem parábolas, o Buda
conta uma história sobre palavras e conceitos. Um homem tolo ficou doente e
quando o médico veio vê-lo, ele disse que apenas faisão poderia curar sua
doença. Depois que o médico saiu, o paciente repetiu a palavra “faisão” por
horas e horas e dia após dia. Meses se passaram, mas ele ainda não tinha ficado
curado. Um dia, um amigo veio visitá-lo e ouvindo o homem repetir a palavra
“faisão” repetidas vezes, perguntou a ele o porquê.
O homem doente disse ao amigo o que
o médico tinha dito e, com pena dele, seu amigo pegou um lápis e desenhou um
faisão. Ele mostrou ao homem tolo e lhe disse, “É com isto que um faisão se
parece. Você tem que comer isto se quiser curar sua doença. Apenas repetir a
palavra ‘faisão’ não é suficiente”.
Assim que o amigo saiu, o homem tolo
colocou o desenho do faisão na sua boca, mastigou e engoliu. Por não conseguir
um bom resultado com isso, ele contratou um artista que desenhou centenas de
outros faisões e ele mastigou e engoliu todos eles. Mas sua doença apenas
piorava e finalmente ele entrou em contato com o médico novamente.
Quando o médico viu o que havia
acontecido, ficou com muita pena. Ele pegou a mão do homem tolo e foi com ele
no mercado. Lá compraram dois faisões, ele acompanhou o homem até a sua casa, o
ajudou a preparar a refeição e pediu ao homem para comer na sua frente. Depois
disso o homem tolo ficou curado.
Quando ouvimos esta história podemos
pensar como o homem era incrivelmente estúpido. Mas quando olhamos com maior profundidade,
podemos ver que nós mesmos não somos muito melhores. Como nos falta
inteligência e habilidade, estudamos o Dharma e o discutimos por diversão ou
simplesmente para nos exibirmos. Não estamos determinados o suficiente para nos
libertarmos dos nossos sofrimentos mais profundos. Permanecemos apegados a
palavras e idéias, tanto nos nossos estudos quanto na nossa prática. Pode
também faltar inteligência e habilidade na maneira como contamos nossas
respirações, praticamos a meditação da bondade amorosa ou recitamos mantras.
Podemos ficar presos na forma. Não é fácil fazer surgir entendimento desperto.
Os ensinamentos do Buda não nos são
oferecidos como visões ou noções para nos agarrarmos, mas como instrumentos de
prática. Se ficarmos presos em visões e noções perderemos os verdadeiros
ensinamentos. O Sutra “Conhecendo a melhor maneira de segurar uma cobra” (*) é
um tipo de sino de plena consciência. Ele nos lembra de sermos cuidadosos,
atentos e abertos ao recebermos os ensinamentos do Buda, entendendo-os de forma
que possamos fazer uso deles de forma a nos transformar e nos ajudar a ter mais
paz, iluminação e liberdade.
Praticamos para ter alegria e
felicidade. Praticamos para trazer alívio para uma situação difícil. E quando a
plena consciência é poderosa o suficiente, nossa concentração será
significativa e poderá nos ajudar a ter insight, entendimento e sabedoria que
podem nos libertar da dor, lamento e medo. O propósito último da prática
budista é ganhar insight de forma a ter libertação das nossas aflições – nosso
medo, raiva, desejo e desespero. Trazer alívio é bom, sofremos menos, mas o
problema ainda permanece.
Apenas quando temos insight poderemos
verdadeiramente ser libertados. No budismo falamos de emancipação ou salvação
através do insight, não por graça, apesar de o insight ser uma espécie de
graça. Na aparência parece ser algo contraditório, mas se olharmos em
profundidade, veremos que o insight é um tipo de graça – o maior tipo de graça,
porque nos ajuda a nos libertar. O Buda disse que se não formos atentos, se não
trouxermos todo o nosso coração e mente, todo o nosso ser para o estudo dos
sutras e escuta do Dharma, poderemos entendê-los de uma maneira errada. A
libertação só é possível quando somos capazes de corrigir nossas impressões.
Ensinamentos, idéias são como um
fósforo. O fósforo gera a chama, que é o insight. Um ensinamento, uma noção,
não é insight. Mas se praticarmos, podemos produzir o insight vivo, a sabedoria
viva. Muitos de nós, incluindo muitos estudiosos budistas ficam presos a
palavras e conceitos. Apegamos-nos a palavras, doutrinas, ensinamentos e não
somos livres, nos tornamos dogmáticos. Mas uma vez que temos insight, ele
queima nossas idéias e noções, assim como a chama queima o fósforo que lhe deu
vida.
Nunca deveríamos considerar qualquer
ensinamento ou ideologia como a verdade absoluta, são apenas meios de ganhar
insight. Não deveríamos matar ou ser mortos por causa de uma idéia. Se nos
tornamos dogmáticos, poderemos nos tornar ditadores, querendo que todos aceitem
o que dizemos, acreditamos que temos a verdade e quem não concorda conosco é
nosso inimigo.
Isto cria mais guerra, conflito e
discriminação. A maioria das guerras nasceu do fanatismo a religiões ou
ideologias. Este ensinamento do Buda - desapego a visões - é uma prática
profunda de paz. Nós estamos prontos para soltar nossa visão de forma a ganhar
insight. Este também é o espírito da ciência. Se um cientista fica preso a uma descoberta
e pensa que é a verdade absoluta, não tem esperança de achar algo mais
profundo, algo superior. Temos que queimar todas as noções para que o insight
fique presente. Um verdadeiro praticante nunca é dogmático, nunca se apega a
idéias e noções, mas faz uso delas para produzir insights, a visão correta.
O sutra “Conhecendo a melhor maneira
de segurar uma cobra” nos lembra que práticas como os Três Selos do Dharma –
impermanência, não-eu e nirvana – são úteis, com a condição que você saiba como
aprendê-las. Caso contrário, estas noções se tornam muito perigosas e uma vez
que você é capturado por elas, é muito difícil sair. Há muitos budistas que
estão presos a idéias, palavras e conceitos. Eles perderam o budismo, apesar de
se dizerem verdadeiros budistas. Este sutra é um grande sino de plena
consciência para todos nós, nos lembrando para termos cuidado, sermos abertos e
não sermos dogmáticos e com a mente estreita de forma de termos uma chance de
entender e receber o verdadeiro ensinamento do Buda.
Os ensinamentos da impermanência,
não-eu e nirvana são comuns a todas as escolas de budismo. Estes ensinamentos
são suficientemente profundos. Se praticarmos inteligentemente, poderemos usar
estas noções para ganhar o insight que precisamos. Penso que este é o grande
presente do Buda. Ser capaz de receber ou não depende de cada um de nós.
Budismo não é uma filosofia ou uma
descrição da realidade. Budismo é apenas um conjunto de dispositivos, meios
hábeis que nos ajudam a praticar e ganhar o insight que precisamos para nossa
libertação e para nos soltar de nossas aflições. Se pudermos ajeitar nossa vida
para ficaremos menos ocupados, teremos uma chance maior de aprofundarmos nosso
entendimento do Dharma e o colocar em prática.
No budismo dizemos: a libertação é
possível através do insight. Impermanência, não-eu e nirvana são como ferramentas
nos dadas para limparmos o terreno e plantar a vegetação. A ferramenta não é
para ser colocada no altar para adoração, tem que ser usada. O sutra
“Conhecendo a melhor maneira de segurar uma cobra” é um lembrete gentil, mas
efetivo que os ensinamentos do Buda são ferramentas maravilhosas para nos
ajudar a nos trazer mais fundo no coração da realidade.
(Do livro “Thundering Silence”– Thich Nhat Hanh)
(Traduzido por Leonardo Dobbin)
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