Buda contou uma estória interessante sobre um mercador que
vivia com o filhinho dele. E a mãe do garotinho já não era viva. Portanto o
garotinho era muito precioso para o pai. Ele estimava o garotinho, e sentia que
não poderia permanecer vivo sem ele – e nós compreendemos isso. Um dia o pai se
ausentou numa viagem de negócios. Os bandidos vieram, incendiaram a vila e
seqüestraram as crianças, e seqüestraram o garotinho. Então quando o pai chegou
a sua casa, ficou desesperado. Ele procurava seu filhinho, mas não conseguia
achá-lo em lugar algum. Naquele estado de preocupação e desespero extremados,
ele viu o cadáver de uma criança queimada, e tomou como se fosse seu filhinho.
Ele acreditou que o seu filho estava morto. Em desespero ele se atirava no
chão, batia no peito, puxava os cabelos e se condenava por ter deixado o
garotinho sozinho em casa.
Depois de ter chorado por um dia e uma noite, ele se
levantou, reuniu o cadáver da criança e organizou uma cerimônia de cremação.
Depois, ele pegou as cinzas e as colocou num lindo saquinho de veludo, que ele
carregava consigo o tempo todo, porque ele amava tanto o garotinho. Quando você
ama muito algo ou alguém, você quer que aquela coisa ou pessoa esteja com você
o tempo todo, vinte e quatro horas por dia; e isso nós compreendemos. Agora,
porque ele acreditava que o garotinho estava morto e àquelas eram as próprias
cinzas dele, ele queria carregar os restos mortais do seu amado com ele. Seja
dormindo, comendo ou trabalhando ele sempre mantinha aquele saquinho com ele.
Uma noite, por volta das duas horas da manhã, o filho, que
tinha conseguido escapar, conseguiu ir para casa. Ele bateu na porta do seu
pai. Você pode imaginar o pobre pai deitado na cama, sem conseguir dormir,
ainda chorando com o saco de cinzas.
“Quem está batendo na minha porta?” gritou o pai.
“Sou eu, paizinho, é o seu filho.”
O jovem pai acreditava que isso era alguém tentando
enganá-lo, porque ele tinha certeza que seu filho já estava morto. Ele disse,
“Vá-se embora, criança perversa. Não perturbe as pessoas a esta hora da noite.
Vá pra casa. O meu filho está morto.” E o garoto insistia, mas ele continuava a
se recusar a reconhecer que àquele era o seu próprio filho que estava batendo
na porta. Finalmente, o garoto teve que ir embora, e o pai lhe perdeu para
sempre.
É claro que nós sabemos que o jovem pai não foi muito
sensato. Ele deveria ter sido capaz de reconhecer a voz do seu filho. Mas como
ele estava aprisionado numa crença, e a mente dele estava coberta de dor, desespero
e convicção, ele não foi capaz de reconhecer que era o seu próprio filho
batendo à sua porta. Por isso ele se recusou a abri-la, e perdeu o seu filho
para sempre.
Às vezes nós tomamos algo como verdadeiro, como a verdade
absoluta. Apegamos-nos àquilo; não conseguimos mais liberá-lo. E por isso
ficamos emperrados. Mesmo quando a verdade chega pessoalmente batendo a nossa
porta, nós recusamos abri-la. Nosso apego às nossas visões é um dos maiores
obstáculos a nossa própria felicidade.
Suponha que você está subindo uma escada. Se você chegar ao
quarto degrau e acreditar que este é o mais alto, não terá chance alguma de
subir até o quinto, que é, de fato, mais alto. A única maneira de você subir
mais alto é deixando o quarto para trás.
Um dia, Buda voltou da floresta para casa com uma mão cheia
de folhas. Ele olhou para os monges, sorriu e disse, “Queridos amigos, vocês
acham que as folhas na minha mão são tão numerosas quanto às folhas na
floresta?” E é claro que os monges disseram, “Querido professor, você está
segurando somente dez ou doze folhas, e na floresta existem milhões e milhões
delas.” E Buda disse, “É verdade, meus amigos, eu tenho muitas idéias, mas eu
não lhes digo. Porque o que vocês precisam é trabalhar para a sua própria
transformação e cura. Se eu lhes der muitas e muitas idéias, vocês ficam
aprisionados nelas, e assim não têm chance alguma de receptar os seus próprios
insights.
Então como perceber o mundo sem idéias preconcebidas? Como
olhar para o mundo com verdadeira consciência? Existem três naturezas que
descrevem como nós percebemos o mundo em graus de consciência variados: parikalpita,
paratantra e parinishpana. A primeira natureza é parikalpita,
a nossa construção mental coletiva. Nossa tendência é acreditar em um mundo
sólido, objetivo. Nós vemos coisas existindo fora uma das outras. Você está do
lado de fora de mim, e eu estou do lado de fora de você. O brilho do sol está
do lado de fora da folha e a folha não é a nuvem. As coisas estão foras umas
das outras. Esta é a maneira como a maioria de nós vê as coisas. Mas o que
tocamos, vemos e ouvimos é apenas uma construção mental coletiva. O que a
maioria de nós considera a natureza do mundo é apenas a natureza de parikalpita.
A pessoa do seu lado diz que vê e ouve a mesma coisa que você. Isso não se dá
porque tais coisas são as únicas e objetivas formas de ver o mundo, mas sim
porque aquela pessoa está muitíssimo constituída como você e percebe quase a
mesma coisa.
Nós sabemos que não vemos apenas com os nossos olhos. Os
nossos olhos apenas recebem a imagem que será traduzida na linguagem dos sinais
elétricos. Os sons que ouvimos também são recebidos e traduzidos em sinais
elétricos. Som, imagem, toque e cheiro, são todos traduzidos em sinais
elétricos que a mente consegue receber e processar.
No Sutra do Diamante, Buda disse, “Todos os darmas
(seres) se assemelham a um sonho, a objetos mágicos, a bolhas de água, a meras
imagens, uma gota de orvalho, um relâmpago...” Aquilo que concebemos como sendo
personalidades, pessoas, o que concebemos como sendo entidades, darmas, são
apenas construções mentais, evoluindo de várias maneiras, mas todas elas são
manifestações vindas da consciência. ** Cientes de que o mundo em que vivemos
é parikalpita, nós olhamos profundamente para dentro do mundo da
consciência mental e tocamos o segundo tipo de percepção: paratantra.
Paratantra significa “recostando-se um no outro, dependendo
um do outro para se manifestar.” Você sozinho não consegue ser você
mesmo, você tem que inter-existir com tudo o mais. Olhando para dentro
de uma folha, você pode ver a nuvem e o raio do sol; a unidade contém a
totalidade. Se retirarmos estes elementos da folha, não restará folha alguma.
Uma flor jamais conseguiria ser ela mesma sozinha. Uma flor
conta com muitos elementos que não são flor para poder se manifestar. Se
olharmos para a flor e virmos uma entidade separada, nós ainda estamos no reino
de parikalpita. Quando olhamos para uma pessoa, como o nosso pai, nossa
mãe, nossa irmã, nosso companheiro, se os virmos como um “eu” separado, atma,
então ainda estamos no mundo de parikalpita.
Para descobrir a natureza vazia das pessoas e das coisas,
você precisa da energia da consciência e da concentração. Você passa o seu dia
em estado de plena consciência. Qualquer coisa que você entra em contato com,
você olha para aquilo profundamente, e não é mais enganado pela aparência
daquilo. Olhando para o sol, você vê o pai, a mãe e os ancestrais, e você vê
que o filho não é uma entidade separada. Você se vê como uma continuação – isto
é, você ver tudo à luz da interdependência e da interexistência. Tudo está
baseado em tudo o mais para se manifestar. Se continuar praticando, a noção de
“um” e “muitos” desaparecerá.
O cientista nuclear David Bohm disse que um elétron não é
uma entidade em si mesma, mas está constituído de todos os outros elétrons.
Esta é uma manifestação da natureza de paratantra, a natureza da
interexistência. Não existem entidades separadas, existem somente manifestações
que se apóiam umas nas outras para serem possíveis. É como a direita e a
esquerda. A direita não é uma entidade separada que pode existir sozinha
apenas. Sem a esquerda, a direita não consegue existir. Tudo é assim.
Um dia o Buda disse ao seu querido discípulo Ananda,
“Qualquer pessoa que vê a interexistência, vê Buda”. Se tocarmos a natureza da
interdependência, tocamos Buda. Este é um processo de treinamento. Durante o
dia, enquanto estiver andando, sentando, comendo, asseando, você pode se
treinar a ver as coisas como elas são. Finalmente quando o treino estiver
concluído, a natureza de parinishpana, realidade, se revelará
inteiramente e o que você toca não mais é um mundo de ilusão, mas o mundo da
própria coisa.
Primeiro, nos tornamos cientes de que o mundo dentro do qual
vivemos está sendo construído por nós, pela nossa mente, coletivamente. Em
segundo lugar, estamos cientes de que se olharmos profundamente, se nós
soubermos usar a consciência plena e a concentração, poderemos começar a tocar
a natureza da interexistência. E, finalmente, quando a prática da mente atenta
tiver se aprofundado, a realidade absoluta da verdadeira natureza, desnuda de
noções, conceitos e idéias, até mesmo as idéias da “interexistência” e
“inexistência do eu”, pode ser revelada.
Os praticantes espirituais não usam instrumentos de pesquisa
sofisticados. Eles usam a sabedoria interior deles, a luminosidade deles. Uma
vez que estejamos livres do agarramento, de noções e conceitos, uma vez que
estejamos livres do nosso medo e da nossa raiva, então teremos um instrumento muito
brilhante com o qual podemos experimentar a realidade como ela é: livre de
todas as noções, noções de nascimento e morte, existência e inexistência, vir e
ir, igual e diferente. A prática da consciência plena, concentração e sabedoria
podem purificar a nossa mente e torná-la um instrumento poderoso com o qual
podemos olhar profundamente dentro da natureza da realidade.
No budismo, falamos em pares de opostos, como nascimento e
morte, vir e ir, existir e inexistir, igualdade e diversidade. Suponha que você
tem uma vela acesa, e sopra até apagar a chama. Ai você acende a vela novamente
e faz esta pergunta à chama: “Minha querida chamazinha, você é a mesma chama
que se manifestou antes ou você é uma chama totalmente diferente?” E ela dirá:
“Eu nem sou a mesma chama, nem sou uma chama diferente.” Nos ensinamentos de
Buda, isto é chamado de madhyamaka, o caminho do meio ou caminho
intermediário. O caminho do meio é extremamente importante, porque o caminho do
meio elimina os extremos, como existir e inexistir, nascimento e morte, vir e
ir, igual e diferente. E as descobertas da ciência já comprovam este tipo de
visão.
Quando você abre o álbum de família e vê um retrato da
criança de cinco anos que você era, você vê que está bem diferente daquele
garoto ou garota no álbum. Se a chama fosse lhe perguntar: “Querido amigo, você
é o mesmo garotinho do álbum?” você responderia tal como ela lhe respondeu,
“Querida chama, eu não sou o mesmo garotinho, mas eu também não sou uma pessoa
totalmente diferente.”
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