sexta-feira, 9 de março de 2018

Perdão e Tentação

As "ofensas" são os erros que cometemos contra nossas pessoas queridas. Dissemos alguma coisa, fizemos alguma coisa ou pensamos alguma coisa. Nossas palavras, ações ou pensamentos fizeram a outra pessoa sofrer, e estas são as graves ofensas que cometemos. Como podemos viver de modo a perdoar todo dia os outros? Nós perdoamos porque eles não têm bastante mente alerta, bastante compreensão, bastante amor e porque ainda têm percepções erradas. Temos então de ser capazes de engolir nosso ressentimento, porque também nós cometemos erros da mesma natureza contra outras pessoas. Se quisermos que nosso Pai do céu nos perdoe, também devemos perdoar aos outros os erros, as ofensas que acumularam.

Em nossa vida, podemos ter cometido erros com relação a nossos pais, irmãos, irmãs e amigos e queremos ser perdoados. Assim devemos perdoar também os defeitos, as fraquezas, as grosserias, em primeiro lugar dos nossos familiares, de nossa família de sangue. Isto é uma prática, isto é uma oração que executamos com nossas ações e com nosso modo de vida. Lembremo-nos que foi o próprio Jesus que ensinou estas palavras a seus discípulos.

Já devemos ter rezado muito, mas talvez não tenhamos aprendido a arte mais profunda da oração. Quando temos um problema, invocamos o Buda, invocamos os bodhisattvas, invocamos a Deus para nos ajudar. Não há nada de errado nisto. Temos o direito de fazê-lo. Mas este tipo de oração não é feito com as palavras da maior das orações, isto é, rezar de tal forma a irmos além do nascimento e da morte.

Muitas vezes, quando rezamos, é para pedir a Deus, ou a Buda, que faça alguma coisa que nós não podemos: "Senhor Deus, meu ente querido N. está numa situação difícil. Por favor, livrai-o dessa condição perigosa". Enviamos a Deus mensagens como esta: "Senhor, meu irmão está com câncer. Por favor, cure-o". Em princípio, Deus sabe o que deve fazer. Mas em geral nós queremos simplesmente ditar a Deus o que ele deveria fazer. Procedemos como se Deus não soubesse o que é necessário, como se tivéssemos de dizer a ele claramente o que fazer. Mas, na verdade, esta mente una é bem mais sábia do que nós. Mais engraçado ainda é que às vezes barganhamos com o Buda ou com Deus: "Senhor Buda, se me concederes isto, vou raspar minha cabeça", ou: "serei vegetariano por três meses". Às vezes somos até mais específicos quanto ao preço: "Se meu filho, ou minha filha, passar no exame, farei oferendas a dez templos".

Mais de dez anos atrás ouvi minha querida amiga Irmã Chan Khong rezando de maneira semelhante. Ela dizia: "Senhor Buda, como pode ser possível para Thây viver mais tempo? Se Thây puder viver um longo tempo, muitas pessoas vão beneficiar-se de seus ensinamentos". (Thây era como me chamavam os meus alunos e amigos; significa "mestre" em vietnamita.) Mesmo nestas palavras da oração há uma idéia de barganha. Há muitas pessoas que querem gozar do benefício dos verdadeiros ensinamentos e da prática. O coração da Irmã Chan Khong era muito grande quando fez este tipo de oração. Achava que o ponto fraco do Buda era que ele queria que seus ensinamentos durassem por muito tempo e que muitas pessoas fossem libertadas por eles; por isso esses parâmetros: "Senhor Buda, se permitires que meu mestre viva por mais dez anos, inúmeras pessoas serão capazes de se beneficiar dos ensinamentos que ele dá". Isto não é uma forma de barganha?

Isto não é tão óbvio como a oração: "Se meu filho, ou minha filha, passar no exame, eu farei oferendas a dez templos", ou: "Eu rasparei minha cabeça"? Isto soa como se, quando raspamos a cabeça, Buda se beneficiará muito.

Se olharmos um pouco mais fundo na oração da Irmã Chan Khong, veremos algo que é muito encantador, mas que ela na verdade não disse: isto é, ela pensa que seu mestre é seu lugar de refúgio e que ela ainda não está sólida o suficiente, de modo que, se ele não existir mais, ela sentirá falta de algo. Por isso também a Irmã Chan Khong tem o mesmo estado de espírito de todas as outras monjas mais jovens, ela quer que seu mestre viva o maior tempo possível. Nesta oração há um pouco de egoísmo,

O desejo de não querermos ficar sozinhos(as), sem um mestre. Queremos que nosso lugar de refúgio esteja aqui o maior tempo possível. Não é verdade que os discípulos querem que seus mestres vivam o maior tempo possível de modo que muitas pessoas se possam beneficiar de seus ensinamentos e que todos os discípulos continuem a ter um lugar de refúgio?

Como é triste quando seu mestre morre tão logo você seja consagrado monge ou monja! Há, portanto, algo de simpático nas palavras desta oração e não há nada de errado nela. Mas se soubermos como olhar profundamente quando rezamos, seremos capazes de ver o que está acontecendo nas profundezas de nossa consciência. Rezar assim pode ser muito comovente, mas devemos olhar mais profundamente a fim de ver com clareza. Se formos budistas, cristãos ou de outra tradição religiosa, temos em nossa oração uma tendência geral de barganhar com Deus, com o Buda, ainda que barganhemos de maneira muito agradável?

"Tentação" significa nossa tendência à ganância, raiva, amargura, desconfiança, dúvida e luxúria. Alguns cristãos chamam isto de tentações do demônio. No budismo, chamamos isto as ações perniciosas do corpo, da linguagem e da mente, e as tentações dos cinco sentidos: visão, audição, olfato, paladar e tato. O budismo tem outra maneira de descrever a tentação: os três destinos perniciosos. Há o destino do reino do espírito faminto. Um espírito faminto é alguém perpetuamente com fome de compreensão e de amor, mas incapaz de recebê-los quando lhe são oferecidos. Há o destino da região do inferno. No budismo, estamos na região do inferno, quando ardemos de raiva, ódio, cobiça, inveja e outros estados perniciosos da mente. A tentação faz parte do destino do reino animal. É verdade que os seres humanos também são animais, mas o reino animal é o mundo daqueles que simplesmente seguem seus desejos instintivos e cujo coração de amor e de compreensão jamais teve chance de se desenvolver.

Minha experiência é que somos mais facilmente tentados nessas esferas quando estamos sós. Quando estamos com nossa comunidade, com nossos irmãos e irmãs, somos protegidos pela energia da sangha e não será tão fácil cair em tentação. E, assim, a oração pode traduzir-se em ação e não consistir apenas de palavras. Quando temos uma mente alerta, quando temos uma sangha, estamos numa posição bem mais sólida e não precisamos cair em tentação.

Quando o Buda ainda estava neste mundo, as pessoas começavam sua prática recitando: "Eu me refugio no Buda". Refugiar-se significa ligar-se ao que existe de mais saudável em nós e que nos apóia em nossas aspirações mais profundas. As pessoas não esperaram até o Buda morrer para praticar o "refugiar-se no Buda". Também naquela época já começaram a recitar: "Eu me refugio na sangha". Monges, monjas e pessoas leigas sentavam-se juntos e rezavam. Quando monges, monjas e pessoas leigas se sentam juntos e rezam, não são apenas mais capazes de resistir à tentação, mas também aumentam e fortalecem sua energia da mente alerta.

Hoje em dia, muitas pessoas vivem nas regiões do inferno das drogas, da solidão e do desespero. Há também aqueles que criam, de vários modos diferentes, o inferno para as pessoas ao redor delas. E há também aqueles que matam, roubam, seqüestram e estupram. Há tantos espíritos famintos vagando por aí, com fome de amor, de compreensão, de uma família, de um ideal.

Rezamos para não cair nesses três caminhos perniciosos. Nossa oração pode ser bem concreta, assim que tivermos descoberto um caminho a trilhar, assim que nos tivermos refugiado na sangha e assim que soubermos como seguir praticando um caminho espiritual. O desejo mais profundo nesta oração é afastar-se dos caminhos da tentação e animar-se a seguir nosso caminho espiritual. Isto é um desejo que todos nós podemos entender.

(Do livro “A energia da oração” – Thich Nhat Hanh)

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