segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Nossa Mente Distorcida

Buda contou uma estória interessante sobre um mercador que vivia com o filhinho dele. E a mãe do garotinho já não era viva. Portanto o garotinho era muito precioso para o pai. Ele estimava o garotinho, e sentia que não poderia permanecer vivo sem ele – e nós compreendemos isso. Um dia o pai se ausentou numa viagem de negócios. Os bandidos vieram, incendiaram a vila e seqüestraram as crianças, e seqüestraram o garotinho. Então quando o pai chegou a sua casa, ficou desesperado. Ele procurava seu filhinho, mas não conseguia achá-lo em lugar algum. Naquele estado de preocupação e desespero extremados, ele viu o cadáver de uma criança queimada, e tomou como se fosse seu filhinho. Ele acreditou que o seu filho estava morto. Em desespero ele se atirava no chão, batia no peito, puxava os cabelos e se condenava por ter deixado o garotinho sozinho em casa.

Depois de ter chorado por um dia e uma noite, ele se levantou, reuniu o cadáver da criança e organizou uma cerimônia de cremação. Depois, ele pegou as cinzas e as colocou num lindo saquinho de veludo, que ele carregava consigo o tempo todo, porque ele amava tanto o garotinho. Quando você ama muito algo ou alguém, você quer que aquela coisa ou pessoa esteja com você o tempo todo, vinte e quatro horas por dia; e isso nós compreendemos. Agora, porque ele acreditava que o garotinho estava morto e àquelas eram as próprias cinzas dele, ele queria carregar os restos mortais do seu amado com ele. Seja dormindo, comendo ou trabalhando ele sempre mantinha aquele saquinho com ele.

Uma noite, por volta das duas horas da manhã, o filho, que tinha conseguido escapar, conseguiu ir para casa. Ele bateu na porta do seu pai. Você pode imaginar o pobre pai deitado na cama, sem conseguir dormir, ainda chorando com o saco de cinzas.
“Quem está batendo na minha porta?” gritou o pai.
“Sou eu, paizinho, é o seu filho.”
O jovem pai acreditava que isso era alguém tentando enganá-lo, porque ele tinha certeza que seu filho já estava morto. Ele disse, “Vá-se embora, criança perversa. Não perturbe as pessoas a esta hora da noite. Vá pra casa. O meu filho está morto.” E o garoto insistia, mas ele continuava a se recusar a reconhecer que àquele era o seu próprio filho que estava batendo na porta. Finalmente, o garoto teve que ir embora, e o pai lhe perdeu para sempre.

É claro que nós sabemos que o jovem pai não foi muito sensato. Ele deveria ter sido capaz de reconhecer a voz do seu filho. Mas como ele estava aprisionado numa crença, e a mente dele estava coberta de dor, desespero e convicção, ele não foi capaz de reconhecer que era o seu próprio filho batendo à sua porta. Por isso ele se recusou a abri-la, e perdeu o seu filho para sempre.

Às vezes nós tomamos algo como verdadeiro, como a verdade absoluta. Apegamos-nos àquilo; não conseguimos mais liberá-lo. E por isso ficamos emperrados. Mesmo quando a verdade chega pessoalmente batendo a nossa porta, nós recusamos abri-la. Nosso apego às nossas visões é um dos maiores obstáculos a nossa própria felicidade.

Suponha que você está subindo uma escada. Se você chegar ao quarto degrau e acreditar que este é o mais alto, não terá chance alguma de subir até o quinto, que é, de fato, mais alto. A única maneira de você subir mais alto é deixando o quarto para trás.

Um dia, Buda voltou da floresta para casa com uma mão cheia de folhas. Ele olhou para os monges, sorriu e disse, “Queridos amigos, vocês acham que as folhas na minha mão são tão numerosas quanto às folhas na floresta?” E é claro que os monges disseram, “Querido professor, você está segurando somente dez ou doze folhas, e na floresta existem milhões e milhões delas.” E Buda disse, “É verdade, meus amigos, eu tenho muitas idéias, mas eu não lhes digo. Porque o que vocês precisam é trabalhar para a sua própria transformação e cura. Se eu lhes der muitas e muitas idéias, vocês ficam aprisionados nelas, e assim não têm chance alguma de receptar os seus próprios insights.

Então como perceber o mundo sem idéias preconcebidas? Como olhar para o mundo com verdadeira consciência? Existem três naturezas que descrevem como nós percebemos o mundo em graus de consciência variados: parikalpita, paratantra e parinishpana. A primeira natureza é parikalpita, a nossa construção mental coletiva. Nossa tendência é acreditar em um mundo sólido, objetivo. Nós vemos coisas existindo fora uma das outras. Você está do lado de fora de mim, e eu estou do lado de fora de você. O brilho do sol está do lado de fora da folha e a folha não é a nuvem. As coisas estão foras umas das outras. Esta é a maneira como a maioria de nós vê as coisas. Mas o que tocamos, vemos e ouvimos é apenas uma construção mental coletiva. O que a maioria de nós considera a natureza do mundo é apenas a natureza de parikalpita. A pessoa do seu lado diz que vê e ouve a mesma coisa que você. Isso não se dá porque tais coisas são as únicas e objetivas formas de ver o mundo, mas sim porque aquela pessoa está muitíssimo constituída como você e percebe quase a mesma coisa.

Nós sabemos que não vemos apenas com os nossos olhos. Os nossos olhos apenas recebem a imagem que será traduzida na linguagem dos sinais elétricos. Os sons que ouvimos também são recebidos e traduzidos em sinais elétricos. Som, imagem, toque e cheiro, são todos traduzidos em sinais elétricos que a mente consegue receber e processar.

No Sutra do Diamante, Buda disse, “Todos os darmas (seres) se assemelham a um sonho, a objetos mágicos, a bolhas de água, a meras imagens, uma gota de orvalho, um relâmpago...” Aquilo que concebemos como sendo personalidades, pessoas, o que concebemos como sendo entidades, darmas, são apenas construções mentais, evoluindo de várias maneiras, mas todas elas são manifestações vindas da consciência. ** Cientes de que o mundo em que vivemos é parikalpita, nós olhamos profundamente para dentro do mundo da consciência mental e tocamos o segundo tipo de percepção: paratantra.

Paratantra significa “recostando-se um no outro, dependendo um do outro para se manifestar.” Você sozinho não consegue ser você mesmo, você tem que inter-existir com tudo o mais. Olhando para dentro de uma folha, você pode ver a nuvem e o raio do sol; a unidade contém a totalidade. Se retirarmos estes elementos da folha, não restará folha alguma.

Uma flor jamais conseguiria ser ela mesma sozinha. Uma flor conta com muitos elementos que não são flor para poder se manifestar. Se olharmos para a flor e virmos uma entidade separada, nós ainda estamos no reino de parikalpita. Quando olhamos para uma pessoa, como o nosso pai, nossa mãe, nossa irmã, nosso companheiro, se os virmos como um “eu” separado, atma, então ainda estamos no mundo de parikalpita.

Para descobrir a natureza vazia das pessoas e das coisas, você precisa da energia da consciência e da concentração. Você passa o seu dia em estado de plena consciência. Qualquer coisa que você entra em contato com, você olha para aquilo profundamente, e não é mais enganado pela aparência daquilo. Olhando para o sol, você vê o pai, a mãe e os ancestrais, e você vê que o filho não é uma entidade separada. Você se vê como uma continuação – isto é, você ver tudo à luz da interdependência e da interexistência. Tudo está baseado em tudo o mais para se manifestar. Se continuar praticando, a noção de “um” e “muitos” desaparecerá.

O cientista nuclear David Bohm disse que um elétron não é uma entidade em si mesma, mas está constituído de todos os outros elétrons. Esta é uma manifestação da natureza de paratantra, a natureza da interexistência. Não existem entidades separadas, existem somente manifestações que se apóiam umas nas outras para serem possíveis. É como a direita e a esquerda. A direita não é uma entidade separada que pode existir sozinha apenas. Sem a esquerda, a direita não consegue existir. Tudo é assim.

Um dia o Buda disse ao seu querido discípulo Ananda, “Qualquer pessoa que vê a interexistência, vê Buda”. Se tocarmos a natureza da interdependência, tocamos  Buda. Este é um processo de treinamento. Durante o dia, enquanto estiver andando, sentando, comendo, asseando, você pode se treinar a ver as coisas como elas são. Finalmente quando o treino estiver concluído, a natureza de parinishpana, realidade, se revelará inteiramente e o que você toca não mais é um mundo de ilusão, mas o mundo da própria coisa.
                                                                                
Primeiro, nos tornamos cientes de que o mundo dentro do qual vivemos está sendo construído por nós, pela nossa mente, coletivamente. Em segundo lugar, estamos cientes de que se olharmos profundamente, se nós soubermos usar a consciência plena e a concentração, poderemos começar a tocar a natureza da interexistência. E, finalmente, quando a prática da mente atenta tiver se aprofundado, a realidade absoluta da verdadeira natureza, desnuda de noções, conceitos e idéias, até mesmo as idéias da “interexistência” e “inexistência do eu”, pode ser revelada.

Os praticantes espirituais não usam instrumentos de pesquisa sofisticados. Eles usam a sabedoria interior deles, a luminosidade deles. Uma vez que estejamos livres do agarramento, de noções e conceitos, uma vez que estejamos livres do nosso medo e da nossa raiva, então teremos um instrumento muito brilhante com o qual podemos experimentar a realidade como ela é: livre de todas as noções, noções de nascimento e morte, existência e inexistência, vir e ir, igual e diferente. A prática da consciência plena, concentração e sabedoria podem purificar a nossa mente e torná-la um instrumento poderoso com o qual podemos olhar profundamente dentro da natureza da realidade.

No budismo, falamos em pares de opostos, como nascimento e morte, vir e ir, existir e inexistir, igualdade e diversidade. Suponha que você tem uma vela acesa, e sopra até apagar a chama. Ai você acende a vela novamente e faz esta pergunta à chama: “Minha querida chamazinha, você é a mesma chama que se manifestou antes ou você é uma chama totalmente diferente?” E ela dirá: “Eu nem sou a mesma chama, nem sou uma chama diferente.” Nos ensinamentos de Buda, isto é chamado de madhyamaka, o caminho do meio ou caminho intermediário. O caminho do meio é extremamente importante, porque o caminho do meio elimina os extremos, como existir e inexistir, nascimento e morte, vir e ir, igual e diferente. E as descobertas da ciência já comprovam este tipo de visão.

Quando você abre o álbum de família e vê um retrato da criança de cinco anos que você era, você vê que está bem diferente daquele garoto ou garota no álbum. Se a chama fosse lhe perguntar: “Querido amigo, você é o mesmo garotinho do álbum?” você responderia tal como ela lhe respondeu, “Querida chama, eu não sou o mesmo garotinho, mas eu também não sou uma pessoa totalmente diferente.”

(Do livro Buddha Mind, Buddha Body: Walking toward Enlightenment, de Thich Nhat Hanh)
(Tradução para o português: Tâm Vân Lang)

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