Vivo no Ocidente há trinta anos e nos últimos dez dirigi retiros sobre a mente alerta na Europa, Austrália e América do Norte. Durante esses retiros, meus alunos e eu ouvimos muitas histórias de sofrimento e ficamos consternados ao constatar que muito desse sofrimento é resultado de alcoolismo, uso de drogas, abuso sexual e comportamentos semelhantes que são passados de geração em geração.
Há um profundo mal-estar na sociedade. Quando colocamos um jovem nesta sociedade sem um mínimo de proteção, ele recebe violência, ódio, medo e insegurança todo dia e pode até ficar doente. Nossas conversas, programas de TV, propagandas, jornais e revistas, todos regam as sementes do sofrimento nos jovens, bem como nas pessoas não tão jovens. Sentimos uma espécie de vácuo dentro de nós e tentamos preenchê-lo comendo, lendo, conversando, fumando, bebendo, vendo TV, indo ao cinema ou mesmo trabalhando demais. Refugiar-se nestas coisas só nos faz sentir-nos mais famintos e menos satisfeitos, e queremos consumir cada vez mais.
Precisamos de algumas diretrizes, de uma medicina preventiva para nos proteger, para que possamos ser sadios novamente. Temos de encontrar uma cura para a nossa doença. Temos de encontrar alguma coisa que seja boa, bonita e verdadeira na qual possamos nos abrigar.
Quando dirigimos um carro, devemos seguir certas leis para não provocar acidentes. Há dois mil e quinhentos anos, o Buda ofereceu certas diretrizes a seus alunos leigos para ajudá-los a viver uma vida de paz, plenitude e felicidade. Eram os Cinco Treinamentos para a Mente Alerta, e na base de cada um desses treinamentos está a plena atenção. Com a plena atenção estamos cientes do que está acontecendo com nossos corpos, nossos sentimentos, nossas mentes e com o mundo, e evitamos ferir a nós mesmos e os outros. A plena atenção nos protege, protege a nossa família e a nossa sociedade e garante um presente seguro e feliz e um futuro também seguro e feliz. (...)
Este tipo de discernimento não nos é imposto por uma autoridade exterior. É fruto da nossa própria observação. Praticar os treinamentos para a mente alerta ajuda-nos, pois, a ser mais calmos e concentrados e traz mais discernimento e iluminação, que tornam a nossa prática dos treinamentos para a mente alerta mais sólida.
(...)Até recentemente eu usava o termo "preceitos" em vez de "treinamentos para a mente alerta". Mas muitos amigos ocidentais me disseram que a palavra "preceitos" evocava neles um forte sentimento de bem e mal, ou seja, que se os preceitos fossem "quebrados", sentiriam que haviam fracassado completamente. Preceitos são diferentes de "mandamentos" e "regras". São as ilações tiradas da observação consciente e da experiência direta do sofrimento. São as diretrizes que nos ajudam em nosso treinamento para vivermos de forma a protegermos a nós mesmos e aqueles que estão ao nosso redor. À medida que avançamos no treinamento, nossa compreensão e prática dos preceitos se aprofunda. Ninguém consegue ser perfeito logo no começo do treinamento nem mesmo durante o treinamento. Os preceitos são a expressão mais concreta da prática da mente alerta. Por isso é apropriado e útil descrevê-los como "treinamentos para a mente alerta".
(...) Qual é a melhor maneira de praticar os treinamentos para a mente alerta? Eu não sei. Ainda estou aprendendo, junto com vocês. Eu gosto da expressão usada nos treinamentos para a mente alerta: "aprender maneiras". Não sabemos tudo. Entretanto, podemos minimizar nossa ignorância. Confúcio disse: "Saber que você não sabe é o começo do saber." Penso que esta é a maneira de praticar. Devemos ser modestos e estar abertos para podermos aprender juntos. Precisamos de uma Sangha, de uma comunidade que nos apoie. Precisamos estar em sintonia com nossa sociedade para praticar bem os treinamentos para a mente alerta. Muitos dos problemas de hoje não existiam na época de Buda. Por isso, devemos juntos observar profundamente para desenvolver os discernimentos que ajudarão a nós e os nossos filhos a encontrar maneiras melhores de viver uma vida proveitosa, feliz e sadia. (...)
Primeiro Treinamento - Consciente do sofrimento causado pela destruição da vida, eu me comprometo a cultivar a compaixão e a aprender maneiras de proteger a vida das pessoas, animais, plantas e minerais. Estou determinado a não matar, a não deixar que outros matem e a não tolerar qualquer ato de matança no mundo, no meu pensamento e no meu modo de viver.
A vida é preciosa. Ela está em toda parte, dentro de nós e em volta de nós; ela tem muitas formas. O primeiro treinamento para a mente alerta nasceu da constatação de que a vida está sendo destruída em toda parte. Vemos o sofrimento causado pela destruição da vida e nos comprometemos a cultivar a compaixão e a usá-la como fonte de energia para a proteção das pessoas, animais, plantas e minerais. O primeiro treinamento para a mente alerta é um treinamento de compaixão, karuna a habilidade de remover o sofrimento e transformá-lo. Quando vemos o sofrimento, nasce em nós a compaixão.
É importante que estejamos em contato com o sofrimento do mundo. Precisamos nutrir esta consciência através de vários meios: sons, imagens, contato direto, visitas e assim por diante, para manter a compaixão viva dentro de nós. Mas devemos ser cuidadosos para não absorver demais. Qualquer remédio deve ser administrado na dosagem certa. Precisamos estar em contato com o sofrimento apenas o suficiente para não esquecê-lo, para que a compaixão flua dentro de nós e seja uma fonte de energia para nossas ações. Se usarmos a raiva contra a injustiça como fonte de nossa energia, podemos fazer algo prejudicial, algo de que nos arrependeremos mais tarde. De acordo com o budismo, a compaixão é a única fonte de energia que é útil e segura. Com a compaixão, a sua energia nasce do discernimento; não é uma energia cega.
Nós, humanos, somos feitos inteiramente de elementos não humanos como plantas, minerais, terra, nuvens e luz do sol. Para que a nossa prática seja profunda e verdadeira devemos incluir o ecossistema. Se o ambiente é destruído, os humanos serão destruídos também. Não é possível proteger a vida humana sem proteger a vida dos animais, plantas e minerais. O ‘Sutra do Diamante' nos ensina que é impossível distinguir os seres sensíveis dos não sensíveis. Este é um dos muitos textos budistas antigos que nos ensinam ecologia profunda. Cada praticante budista deveria ser um protetor do meio ambiente. Também os minerais têm vida própria. Nos mosteiros budistas cantamos: "Tanto os seres sensíveis quanto os não sensíveis vão atingir a iluminação plena". O primeiro treinamento para a mente alerta é a prática da proteção de todas as formas de vida, incluindo a dos minerais.
Estou determinado a não matar, a não deixar que outros matem e a não tolerar qualquer ato de matança no mundo, no meu pensamento e no meu modo de viver. Não podemos apoiar nenhum ato de matança; nenhuma matança pode ser justificada. Mas não matar não é o bastante. Devemos também aprender meios de impedir que outros matem. Não podemos dizer: "Eu não sou responsável. Foram eles que o fizeram. Minhas mãos estão limpas". Se você tivesse vivido na Alemanha durante a época do nazismo, não poderia dizer: "Foram eles que o fizeram. Não fui eu". Se, durante a guerra do Golfo, você não disse ou não fez nada para tentar impedir a matança, você não estava praticando este treinamento. Mesmo que o que você tenha dito ou feito não tenha conseguido acabar com a guerra, o importante é que você tentou, usando seu discernimento e compaixão.
Não é apenas não matando com o seu corpo que você observa o primeiro treinamento para a mente alerta. Se em seu pensamento você permite que a matança continue, você também está violando este treinamento. Devemos estar determinados a não tolerar a matança nem mesmo em nossas mentes. De acordo com o Buda, a mente é a base de todas as ações. É sumamente perigoso matar dentro da mente. Quando você acredita, por exemplo, que o seu caminho é o único a ser seguido pela humanidade e que toda pessoa que segue outro caminho é seu inimigo, milhões de pessoas poderão ser mortas por causa dessa idéia.
O pensamento é a base de tudo. É importante ficar de olhos abertos para cada um de nossos pensamentos. Sem a compreensão correta de uma situação ou de uma pessoa, nossos pensamentos podem desvirtuar-se e criar confusão, desespero, raiva ou ódio. A nossa tarefa mais importante é desenvolver uma visão correta. Se observarmos profundamente a natureza da interexistência, de que todas as coisas "intersão", vamos parar de acusar, discutir e matar, e nos tornaremos amigos de todos. Para praticar a não-violência devemos em primeiro lugar aprender modos de lidar pacificamente conosco mesmos. Se criarmos uma harmonia verdadeira dentro de nós mesmos, saberemos como lidar com a família, os amigos e os companheiros.
Quando protestamos contra uma guerra, por exemplo, podemos simular que somos pessoas pacíficas, representantes da paz, mas isto pode não ser verdade. Se olharmos profundamente, vamos observar que as raízes da guerra estão na forma irresponsável com que levamos a vida. Não temos semeado sementes de paz e compreensão suficientes em nós mesmos e nos outros; portanto somos co-responsáveis: "Por eu ter sido assim, eles são daquele jeito". Uma abordagem mais holística é o caminho do "interser": "Isto é assim, porque aquilo é daquela forma". Este é o caminho da compreensão e do amor. Com esta concepção podemos ver claramente e ajudar nosso governo a ver claramente. Então poderemos ir a uma manifestação e dizer: "Esta guerra é injusta, destrutiva e indigna de nossa grande nação".
Isto é muito mais eficaz do que condenar iradamente os outros. A raiva só aumenta o estrago. Todos nós, até mesmo os pacifistas, carregamos dor dentro de nós. Ficamos chateados e frustrados, e precisamos de alguém disposto a nos escutar, que seja capaz de entender nosso sofrimento. Na iconografia budista há um bodhisattva chamado Avalokitesvara que possui mil braços e mil mãos e tem um olho na palma de cada mão. Mil mãos representam ação, e o olho em cada mão representa compreensão. Quando você compreende uma situação ou uma pessoa, qualquer ação que você faz ajuda e não causa mais sofrimento. Quando você tem um olho em sua mão, saberá como praticar a verdadeira não violência.
Para praticar a não violência, em primeiro lugar temos que praticá-la dentro de nós mesmos. Em cada um de nós há certa parcela de violência e certa parcela de não violência. Dependendo do nosso estado de espírito, nossa reação às coisas será mais ou menos não violenta. Ainda que orgulhosos de ser vegetarianos, por exemplo, devemos saber que a água na qual cozinhamos os vegetais contém muitos microrganismos. Não podemos ser completamente não violentos, mas, sendo vegetarianos, estamos indo no caminho da não violência. Se queremos ir para o Norte, podemos usar a Estrela Polar como guia, mas é impossível chegar à Estrela Polar. Nosso esforço é apenas seguir naquela direção.
Qualquer um pode praticar alguma não violência, mesmo os generais militares. Eles podem, por exemplo, conduzir suas operações de modo a evitar matar pessoas inocentes. Para ajudar os soldados a agir de forma não violenta, devemos entrar em contato com eles. Se dividirmos a realidade em dois lados, o violento e o não violento, e ficarmos em um lado enquanto atacamos o outro, o mundo nunca terá paz. Estaremos sempre culpando e condenando aqueles que julgamos responsáveis pelas guerras e pela injustiça social, sem reconhecer o grau de violência em nós mesmos. Devemos agir sobre nós mesmos e também sobre aqueles que condenamos, se quisermos obter um impacto verdadeiro.
Traçar uma linha e repudiar pessoas como inimigas, mesmo aquelas que agem de forma violenta, nunca vai ajudar. Temos de aproximarmos deles com amor no coração e fazer o melhor para ajudá-las a caminhar na direção da não violência. Se trabalharmos pela paz movidos pela raiva nunca teremos sucesso. A paz não é um fim. Ela não pode estabelecer-se através de meios não pacíficos.
O mais importante é tornar-se não violência, para que, quando a situação aparecer, não criarmos mais sofrimento. Para praticar a não violência precisamos direcionar brandura, gentileza amorosa, compaixão, alegria e serenidade a nós mesmos, aos nossos sentimentos e às outras pessoas. Com a mente alerta à prática de paz podemos começar trabalhando para transformar as guerras dentro de nós mesmos. Existem técnicas para fazer isto. A respiração consciente é uma delas.
Cada vez que nos sentimos irritados, podemos parar o que estamos fazendo, abster-nos de dizer qualquer coisa e inspirar e expirar diversas vezes, conscientes de cada inspiração e de cada expiração. Se ainda continuarmos irritados, podemos fazer meditação andando, conscientes de cada passo lento e de cada respiração que fizermos. Cultivando a paz dentro de nós, trazemos paz para a sociedade. Isso depende de nós. Praticar a paz dentro de nós é minimizar o número de guerras entre este e aquele sentimento, ou entre esta e aquela percepção, e assim podemos estar em verdadeira paz com os outros, incluindo os membros de nossa própria família.
Freqüentes vezes me perguntam: "E se você estiver praticando a não violência e alguém entrar em sua casa e tentar seqüestrar sua filha ou matar seu marido? O que deve fazer? Deve ainda agir de forma não violenta?" A resposta depende do seu estado de espírito. Se estiver preparado pode reagir calma e inteligentemente, da forma mais não violenta possível. Mas, estar preparado para reagir com inteligência e não violência exige treinamento prévio. Pode levar dez anos ou mais. Se você esperar até a hora da crise para fazer a pergunta, será tarde demais. Neste momento crucial, mesmo sabendo que a não violência é melhor que a violência, se a sua compreensão for apenas intelectual e não de todo o seu ser, você não vai agir de forma não violenta. O medo e a raiva dentro de você vão impedir que você aja da forma mais não violenta possível.
Devemos vigiar-nos dia após dia para praticar bem este treinamento. Cada vez que compramos ou consumimos algo podemos estar tolerando alguma forma de matança.
Ao praticar a proteção dos seres humanos, animais, plantas e minerais, sabemos que estamos protegendo a nós mesmos. Sentimo-nos em contato permanente e amoroso com todas as espécies da terra. Estamos protegidos pela mente alerta e pelo cuidado amoroso do Buda e das muitas gerações de Sanghas que também praticam este treinamento para a mente alerta. Esta energia da gentileza amorosa nos traz a sensação de segurança, saúde e alegria, e isto se torna real no momento em que tomamos a decisão de receber e praticar o primeiro treinamento para a mente alerta.
Sentir compaixão não é o suficiente. Temos que aprender a expressá-la. É por isso que o amor deve andar junto com a compreensão. A compreensão e o discernimento nos mostram como agir. Nosso inimigo real é o esquecimento. Se cultivarmos a mente alerta todo dia e regarmos as sementes da paz dentro de nós e em volta de nós, tornamo-nos cheios de vida e poderemos ajudar a nós mesmos e os outros a realizar a paz e a compaixão.
A vida é muito preciosa e, no entanto, em nosso dia-a-dia, somos freqüentemente levados pelo esquecimento, pela raiva e pelas preocupações, perdidos no passado, incapazes de entrar em contato com a vida no momento atual. Quando estamos verdadeiramente cheios de vida, tudo o que fazemos ou tocamos é um milagre. Praticar a mente alerta é retornar à vida no momento presente. A prática do primeiro treinamento para a mente alerta é uma celebração da reverência à vida. Quando apreciamos e honramos a beleza da vida, fazemos tudo ao nosso alcance para proteger toda a vida.
(Do livro “Os cinco treinamentos para a mente alerta” – Thich Nhat Hanh)
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