segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Os Quatro Pensamentos Imensuráveis (parte I)

No tempo de Buda, os brâmanes rezavam pedindo para que quando morressem pudessem ir para o Céu residir eternamente na companhia de Brahma, o Deus universal. Um dia um brâmane perguntou ao Buda: "O que posso fazer para ter certeza de que irei ter com Brahma quando morrer?" e o Buda respondeu: "Sendo Brahma para você a fonte de todo o Amor, para estar com ele você precisa praticar as 'Quatro Moradas de Brahma', (Brahmaviharas) ou Os Quatro Pensamentos Imensuráveis - Amor, Compaixão, Alegria e Equanimidade" (Amor em sânscrito é maitri; em páli é metta. Compaixão é karuna nas duas línguas. Alegria é mudita. Equanimidade é upeksha em sânscrito e upekkha em páli. Uma vihara é uma morada, ou um lugar de habitação). As Quatro Brahmaviharas são as quatro moradas do Amor Verdadeiro. Este é um endereço muito melhor para se morar do que um hotel cinco estrelas. É uma morada de mil estrelas. As Quatro Brahmaviharas são chamadas de "imensuráveis" porque quando são praticadas crescem todos os dias dentro de nós, até abraçarem o mundo todo. Nós nos tornamos mais felizes, e aqueles que estão ao nosso redor também se tornam mais felizes.

Buda respeitava o desejo das pessoas de praticar a própria fé, e por isso incentivou o brâmane em sua própria crença. Se você gosta de meditação caminhando, deve praticá-la. Se preferir meditação sentada, faça isso. Mas preserve suas raízes cristãs, judaicas ou muçulmanas. Esta é a melhor maneira de entrar em sintonia com o espírito de Buda. Se você cortar suas raízes, não conseguirá ser feliz. Se praticar amor, compaixão, alegria e equanimidade, saberá curar as doenças representadas por sentimentos tais como raiva, tristeza, insegurança, depressão, ódio, solidão e apegos doentios.

Alguns comentaristas dos sutras disseram que as Brahmaviharas não são o ensinamento mais elevado de Buda e que elas não conseguem colocar um fim no sofrimento nem nas aflições, mas isso não é correto. Certa vez, Buda disse a Ananda: "Ensine os Quatro Pensamentos Imensuráveis aos jovens monges, para que eles se sintam mais seguros, fortes e alegres, sem aflições no corpo ou na mente. Assim, durante toda a vida, eles estarão melhor equipados para praticar a vida pura de um monge."

Em outra ocasião, um grupo de discípulos do Buda visitava o mosteiro de uma seita vizinha, e os monges de lá perguntaram: "Ouvimos dizer que seu instrutor Gautama ensina os Quatro Pensamentos Imensuráveis do amor, compaixão, alegria e equanimidade. Nosso mestre também ensina isso. Qual é a diferença?" Os discípulos de Buda não sabiam responder. Quando voltaram ao mosteiro, o Buda lhes disse: "Quem pratica os Quatro Pensamentos Imensuráveis juntamente com os Sete Fatores do Despertar, as Quatro Nobres Verdades e o Nobre Caminho Óctuplo chegará sem dúvida à iluminação." Amor, Compaixão, Alegria e Equanimidade são a própria natureza da pessoa iluminada. São os quatro aspectos do verdadeiro amor dentro de nós, dentro das outras pessoas, e na verdade dentro de todas as coisas.

O primeiro aspecto do Amor Verdadeiro é justamente o Amor (maitri), que é a intenção e a capacidade de proporcionar alegria e felicidade. Para desenvolver essa capacidade, temos que praticar o enxergar e o ouvir em profundidade, para saber o que devemos fazer e não fazer para poder proporcionar felicidade aos outros. Se você oferecer à sua amada algo de que ela não precisa, isso não será maitri. Você tem que ser capaz de observar a verdadeira situação dela, senão suas ofertas correm o perigo de causar infelicidade.

No Sudeste da Ásia, muitas pessoas gostam de uma fruta grande e espinhosa chamada durian. Poder-se-ia inclusive dizer que são viciados em durian. O cheiro é muito forte, e algumas pessoas, quando acabam de comer essa fruta, colocam a casca embaixo da cama, para continuar a sentir seu cheiro. Eu, particularmente, acho horrível o cheiro de durian. Certa vez, quando eu cantava um sutra em meu templo no Vietnã, havia um durian sobre o altar, que havia sido oferecido a Buda. Eu tentava recitar o Discurso do Lótus, usando um tambor de madeira e um sino grande em forma de tigela como acompanhamento, mas tive dificuldades para me concentrar. Finalmente, levei o sino até o altar e o virei de boca para baixo por cima da fruta, para cobrir o durian, na esperança de conseguir cantar o sutra. Depois que terminei, fiz uma reverência diante de Buda e libertei o durian. Se você me dissesse: "Thây, eu o amo muito e gostaria que você comesse um pouco deste durian", eu sofreria. Se você me ama certamente vai querer que eu seja feliz, e, entretanto está me forçando a comer durian. Esse é um exemplo de amor sem compreensão. Sua intenção é boa, mas você não tem a compreensão correta.

Sem compreensão, o amor não é Amor Verdadeiro. É preciso observar em profundidade para poder enxergar e compreender as necessidades e aspirações, bem como o sofrimento daqueles que amamos. Nós todos precisamos de amor. Amor nos proporciona alegria e bem-estar. É natural como o ar que respiramos. Somos amados pelo ar, por isso precisamos de ar para ser felizes e nos sentir bem. Também somos amados pelas árvores, por isso necessitamos das árvores para nos manter saudáveis. Entretanto, para ser amados temos que amar, o que significa que precisamos compreender. Para que nosso amor possa se desenvolver, temos que escolher a ação ou a não-ação adequadas, de forma a proteger o ar, as árvores e aqueles que amamos.

Maitri pode ser traduzida como "amor" ou "bondade amorosa". Alguns mestres budistas preferem "bondade amorosa", porque acham que a palavra "amor" é uma palavra perigosa. Mas eu prefiro "amor". As palavras às vezes também adoecem, e nós temos que curá-las. Nós temos usado palavras que significam amor quando na verdade queremos dizer apetite ou desejo, como por exemplo, "eu amo hambúrgueres". Deveríamos usar a linguagem de uma forma mais cuidadosa.

"Amor" é uma linda palavra; seu verdadeiro sentido deveria ser restaurado. A palavra "maitri" tem o mesmo radical que a palavra "mitra", que significa amigo. No budismo, o sentido fundamental do amor é a amizade. Todos nós temos dentro de nós as sementes do amor. Podemos desenvolver essa fonte maravilhosa de energia, nutrindo o amor incondicional, aquele que não espera nada em troca. Quando chegamos a compreender alguém profundamente, inclusive alguém que nos prejudicou, não conseguimos deixar de amar essa pessoa. Shakyamuni Buda declarou que o Buda da próxima era se chamará "Maitreya, o Buda do Amor".

O segundo aspecto do Amor Verdadeiro é a Compaixão (karuna), a intenção e a capacidade de soltar e transformar o sofrimento, aliviando a tristeza. Karuna é geralmente traduzida como "compaixão", mas isso não é totalmente correto. "Compaixão" é uma palavra composta de com ("junto com") e paixão ("sofrimento"). Mas nós não precisamos sofrer para remover o sofrimento de uma outra pessoa. Os médicos, por exemplo, são capazes de aliviar o sofrimento de seus pacientes sem passarem eles mesmos pela doença. Se sofrermos demasiado seremos esmagados, tornando-nos incapazes de ajudar seja quem for.

Para conseguirmos desenvolver um grau maior de compaixão dentro de nós, devemos praticar a respiração consciente, e ouvir e enxergar com atenção plena. O Discurso do Lótus descreve Avalokiteshvara como o bodisatva que pratica olhando com os olhos da compaixão e ouvindo atentamente os gritos do mundo. A compaixão contém em si uma profunda preocupação pelo outro. Ao saber que o outro está sofrendo, você se senta perto dessa pessoa, observa-a em profundidade e ouve com atenção, para conseguir atingir sua dor. Isso é comunicação profunda, é comunhão com o outro, e é suficiente para proporcionar um enorme alívio a quem sofre.

Uma única palavra, ação ou pensamento compassivos de nossa parte têm o poder de aliviar o sofrimento de outra pessoa, trazendo alegria. Uma única palavra é capaz de proporcionar conforto e confiança, eliminar dúvidas, ajudar alguém a não cometer um erro, reconciliar um conflito, ou abrir a porta da libertação. Uma ação pode salvar a vida de alguém ou ajudar essa pessoa a aproveitar uma oportunidade rara. Um pensamento também tem o mesmo poder, porque os pensamentos sempre conduzem a palavras e ações. Quando existe compaixão no coração, qualquer pensamento, palavra ou ação são capazes de produzir milagres.

Quando eu era noviço, não conseguia entender por que o Buda tem um sorriso tão lindo se o mundo está repleto de sofrimento. Será que ele não se incomoda com tanta dor? Mais tarde, descobri que Buda tem em si grandes quantidades de compreensão, calma e força, razão pela qual o sofrimento do mundo não o aniquila. Ele consegue sorrir para o sofrimento porque sabe lidar com ele e transformá-lo. Precisamos ter consciência do sofrimento que existe no mundo, mas sem perder nossa clareza, nossa calma e nossa força, para que possamos ajudar a transformar as situações. Um oceano de lágrimas não nos afogará desde que haja karuna (compaixão). É por isso que o sorriso do Buda é possível.

(Do livro “A Essência dos ensinamentos de Buda” – Thich Nhat Hanh)
FONTE: http://sangavirtual.blogspot.com

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