segunda-feira, 25 de junho de 2018

A Prática da Felicidade

Para mim, ser feliz significa sofrer menos. Se não fôssemos capazes de transformar a dor que existe dentro de nós, a felicidade seria impossível. Muitas pessoas procuram a felicidade fora de si mesmas, mas a verdadeira felicidade precisa vir de dentro de nós. Nossa cultura tem muitas receitas de felicidade, e afirma que a atingimos quando possuímos uma grande quantidade de dinheiro, muito poder e uma elevada posição na sociedade. Mas, se você observar com cuidado, verá que numerosas pessoas ricas e famosas não são felizes. Até você já viveu esta experiência: depois de alcançar um bem material que desejava ardentemente, experimentou alegria durante um certo tempo, mas rapidamente voltou à insatisfação inicial, passando a desejar outra coisa. Este é um processo interminável e frustrante.

O Buda e os monges da época dele não possuíam nada, a não ser três mantos e uma tigela de comida, mas eram felizes porque tinham algo extremamente precioso: a liberdade. De acordo com os ensinamentos do Buda, a condição básica para a felicidade é a liberdade. Não estamos nos referindo aqui à liberdade política, e sim à liberdade que conquistamos quando nos libertamos da raiva, do desespero, do ciúme e das ilusões. Buda os descreve como venenos. Enquanto eles estão no nosso coração, é impossível ser feliz.

Estamos muito estruturados em nossos comportamentos. Vivemos num mundo violento e reproduzimos, desde muito cedo, sem nos darmos conta, essa violência nos pequenos gestos do cotidiano, na relação com nossos parceiros, filhos, família, companheiros de trabalho, pessoas com quem cruzamos na rua. Regamos abundantemente a semente da raiva existente dentro de cada um de nós, e nos descuidamos das sementes do amor, da compaixão, da doçura, da solidariedade. Solidificamos os hábitos agressivos e recebemos agressão de volta, num processo sem fim.

Para que essa estrutura seja desmanchada, para que as sementes positivas sejam nutridas e para que o hábito se transforme, é necessário ouvirmos muitas vezes os novos conceitos, as novas práticas, os novos ensinamentos. Por isso eles serão repetidos, para que impregnem o seu ser, condicionem uma nova consciência, comecem a se traduzir nas suas atitudes, e tragam, para você e para o mundo, a paz, a felicidade e a harmonia que todos buscamos.

Suponhamos que, numa determinada família, pai e filho estão com raiva um do outro. Eles não conseguem mais se comunicar e por isso sofrem muito: Nenhum dos dois quer permanecer preso à raiva que estão sentindo, mas não sabem como dominá-la.

Quando estamos com raiva, sofremos como se estivéssemos ardendo no fogo do inferno. Quando sentimos um grande desespero ou ciúme, estamos no inferno. Precisamos, nesses momentos, procurar um amigo ou uma amiga que nos ajude a transformar a raiva e o desespero que ardem em nós.

Ouvir com compaixão alivia o sofrimento. Quando as palavras de uma pessoa estão cheias de raiva, é sinal de que ela está sofrendo profundamente. Por sofrer tanto, ela fica cheia de amargura, torna-se agressiva e está sempre pronta a se queixar e culpar os outros por seus problemas. Por isso você acha muito desagradável escutar o que ela tem a dizer e procura evitá-la. Para compreender e transformar a raiva, precisamos aprender a ouvir com compaixão e usar palavras amorosas.

Compaixão não é pena, é solidariedade, é colocar-se no lugar do outro para compreender o que ele sente. Existe um Bodisatva um Grande Ser capaz de ouvir profundamente e com grande compaixão. Quando somos capazes de ouvir alguém com compaixão, como este Grande Ser, conseguimos aliviar o sofrimento e oferecer uma orientação concreta àqueles que nos procuram em busca de ajuda. Não tenha pressa. Fique tranqüilamente ao lado da pessoa durante o tempo que for necessário e escute o que ela tem a dizer, deixando que ela se expresse livremente. Repito, você poderá aliviar grande parte do sofrimento dela se mantiver viva a compaixão durante todo o tempo em que a estiver ouvindo.

Você precisa se concentrar bastante enquanto escuta, ouvindo com todo o seu ser: com os olhos, os ouvidos, o corpo a mente. Se você apenas fingir que está ouvindo e não se esforçar para prestar atenção com a totalidade do seu ser, a outra pessoa perceberá isso e o sofrimento dela não será aliviado. Não é fácil manter essa concentração, porque o nosso pensamento se evade muitas vezes. Mas se você respirar serena e profundamente e trouxer de volta a atenção sempre que ela se dispersar, com o desejo sincero de ajudar a pessoa a encontrar alívio, você será capaz de sustentar a compaixão enquanto estiver ouvindo. Ouvir com compaixão é uma prática muito profunda. Você não ouve para julgar ou culpar ninguém. Você só escuta porque quer que a outra pessoa sofra menos. Ela pode ser seu pai, seu filho, sua filha, seu companheiro ou alguém amigo. Ouvir a outra pessoa pode efetivamente ajudar a transformar a raiva e o sofrimento dela.

Conheço uma mulher católica que mora na América do Norte. Ela sofria muito porque seu relacionamento com o marido era extremamente difícil. O casal tinha uma formação acadêmica elevada, mas o marido estava em guerra com a mulher e os filhos, não conseguindo muitas vezes nem mesmo falar com eles. Todos na família procuravam evitá-lo, porque ele era como uma bomba prestes a explodir. A raiva dele era enorme, o que o fazia sofrer bastante. Ele achava que a mulher e os filhos o desprezavam, porque se afastavam dele. Não era desprezo o que a mulher e os filhos sentiam, era medo. Ficar perto daquele homem era perigoso, porque ele podia explodir a qualquer momento.

Certo dia, a esposa pensou em se matar porque não podia mais suportar a situação. Mas, antes de cometer suicídio, ela telefonou para uma amiga que era praticante do budismo e contou o que estava planejando. A amiga a havia convidado várias vezes para praticar a meditação, a fim de sofrer menos, mas ela sempre recusara o convite, explicando que, sendo católica, não poderia praticar ou seguir os ensinamentos budistas. Ao tomar conhecimento de que a amiga pretendia se matar, a mulher budista disse ao telefone: "Se você é de fato minha amiga, quero lhe fazer um pedido. Tome um táxi e venha até a minha casa." Quando a mulher chegou, a amiga insistiu para que ela ouvisse uma fita que continha uma palestra do darma que ensinava como restabelecer a comunicação com os outros, sobretudo os mais próximos. Deixou-a sozinha na sala e, quando voltou, uma hora e meia depois, a amiga passara por uma grande transformação.

Ela descobrira muitas coisas. Compreendera que era em parte responsável pelo próprio sofrimento e que também tinha causado um grande sofrimento ao marido, pois não fora capaz de ajudá-lo. Entendeu que a raiva do marido era causada por um grande sofrimento e que o fato de evitá-lo apenas aumentava sua dor. As palavras da fita a fizeram entender que, para ajudar a outra pessoa, ela tinha que ser capaz de ouvir com profunda compaixão. Deu-se conta de que não conseguira fazer isso nos últimos cinco anos.

Depois de ouvir a palestra do darma, a mulher sentiu um intenso desejo de ir para casa, procurar o marido e pedir-lhe que falasse de seus sentimentos, para ajudá-lo. Mas a amiga budista lhe disse:  "Não, minha amiga, você não deve fazer isso hoje, porque, para ouvir com compaixão, é preciso treinar durante pelo menos uma ou duas semanas." A budista convidou então a amiga católica para participar de um retiro, onde ela poderia aprender mais.

Quatrocentas e cinqüenta pessoas participaram do retiro, comendo, dormindo e praticando juntas durante seis dias. Praticaram a respiração consciente, permanecendo atentas ao ar que entrava e saía, para unir o corpo e a mente. Praticaram o andar consciente, concentrando-se em cada passo, e o sentar consciente, para se tornarem capazes de observar e abraçar o sofrimento à sua volta.

Além de ouvir palestras sobre o darma, todas praticaram a arte de escutar umas às outras e usar palavras amorosas. Tentaram ouvir profundamente o que a outra dizia para compreender seu sofrimento. A mulher católica entregou-se com muita seriedade e profundidade à prática, porque para ela se tratava de uma questão de vida ou morte.

Ao voltar para casa depois do retiro, ela se sentia muito calma, com o coração repleto de compaixão, querendo sinceramente ajudar o marido a desarmar a bomba que pulsava dentro dele. Ela se movia devagar, prestando atenção em seus passos e respirando lenta e conscientemente para permanecer calma e alimentar sua compaixão. O marido notou imediatamente a mudança e surpreendeu-se quando a mulher se aproximou e se sentou perto dele, algo que não fazia há cinco anos.

Ela ficou em silêncio durante talvez dez minutos e depois colocou delicadamente a mão sobre a dele, dizendo: "Querido, eu sei que você tem sofrido muito nos últimos cinco anos e sinto muito por isso. Sei que sou em grande parte responsável pelo seu sofrimento. Cometi muitos erros e lhe causei muita dor, mesmo sem desejar. Sinto de fato muitíssimo. Gostaria que você me desse a chance de recomeçar. Quero fazer você feliz, mas não tenho sabido como, e não quero mais continuar desse jeito. Por isso, querido, preciso que você me ajude a compreendê-lo melhor para poder amá-lo melhor. Por favor, me diga o que se passa no seu coração. Eu sei que você sofre muito, mas preciso conhecer seu sofrimento para não repetir os mesmos erros do passado. Se você não me ajudar, não posso fazer nada. Preciso da sua ajuda para parar de magoá-la. Tudo o que eu quero é amar você." Ao ouvi-la falando dessa maneira, ele começou a chorar. Chorou como uma criança.

Sua mulher estivera amarga durante muito tempo. Ela gritava o tempo todo, criticando-o, e suas palavras eram cheias de raiva e agressividade. Tudo o que eles faziam era brigar um com o outro. Há anos ela não falava com ele daquele jeito, com tanto amor e carinho. Quando ela viu o marido chorar, soube que tinha uma chance. A porta do coração do marido começava a se abrir de novo. Ela sabia que precisava ter muito cuidado e por isso continuou a praticar a respiração consciente. Disse apenas: "Por favor, meu querido, abra seu coração para mim. Quero aprender a fazer melhor as coisas para não continuar a cometer erros."

Toda a formação acadêmica dos dois não lhes ensinara a ouvir um ao outro com compaixão. Mas aquela noite foi um marco na vida daquele homem e daquela mulher, porque ela aprendera a ouvir com compaixão. Passaram muitas horas conversando, e este foi o início de uma feliz reconciliação.

Quando a prática é correta e adequada, poucas horas podem ser suficientes para produzir a transformação e a cura. A conversa daquela noite fez com que o marido se inscrevesse também em um retiro.

Esse retiro durou seis dias e também causou no marido uma grande transformação. Durante uma meditação do chá, ele apresentou a mulher aos outros participantes, dizendo: "Queridos amigos e companheiros, gostaria de apresentar a vocês um Bodisatva, um Grande Ser. Trata-se da minha mulher uma grande Bodisatva. Eu a fiz sofrer muito nos últimos cinco anos. Fui um completo idiota. Mas ela conseguiu mudar tudo. Ela salvou minha vida." A seguir, os dois contaram sua história e o que os levara a participar do retiro. Descreveram também como foram capazes de se reconciliar num nível profundo e renovar o amor que sentiam um pelo outro.


(Do livro “Aprendendo a lidar com a raiva”– Thich Nhat Hanh)

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